Por Carlos Eduardo Martins
Desde a pós-guerra, em 1945, a reeleição presidencial foi a norma nos Estados Unidos. Apenas quatro vezes um presidente estadunidense não conseguiu a reeleição. O primeiro foi Richard Nixon, eleito em 1972, que sofreu o impeachment numa conjuntura crítica de derrota no Vietnã, ascensão dos movimentos sociais e escândalo de Watergate. O segundo foi Gerald Ford, o vice e sucessor de Nixon, derrotado em 1976. Jimmy Carter, que vencera Ford, perdeu para Reagan em 1980, no contexto das revoluções iraniana, nicaraguense e da elevação dos preços internacionais do petróleo. Por fim, George Bush pai, eleito em 1988, foi superado por Bill Clinton em 1992, beneficiado pela candidatura antiglobalista e conservadora do multimilionário Ross Perot, que atingiu 18,9% dos votos.
Todavia, o colapso da globalização neoliberal, disparado pela pandemia da Covid-19, atinge em cheio a economia estadunidense, criando um novo cenário na conjuntura política, social e ideológica dos Estados Unidos. Isso se manifesta no decrescimento agudo do comércio e dos fluxos internacionais de capital, do produto mundial, e no abandono das políticas de austeridade e em favor das políticas sociais e de sustentação do setor produtivo. Tal colapso, que pode ser provisório, é o resultado, entretanto, de movimentos profundos. Nossa hipótese é a de que expressa a combinação entre o esgotamento da fase A, do ciclo de Kondratiev, iniciada em 1994; a entrada numa fase aguda da crise de hegemonia dos Estados Unidos; e a crise ambiental, função de sua incapacidade para desenvolver uma nova etapa da revolução científico-técnica, centrada num paradigma biotecnológico, intensivo em saúde pública, preservação e regeneração ambientais1 .
Sobreposição de crises
A globalização neoliberal já vinha em acelerado processo de desgaste nos anos 2010. A recuperação econômica da crise de 2008-09 foi medíocre nos Estados Unidos e na União Europeia. O comércio internacional não se projetou à frente do crescimento do PIB, e os fluxos internacionais de capitais entraram em declínio, a partir de 2015, sem alcançar os níveis de 2007.
A eleição de Donald Trump representou a reação à estratégia neoliberal de inserção dos Estados Unidos na economia mundial que acelerou a desindustrialização, os déficits comerciais, o endividamento público com estrangeiros, a desigualdade, a pobreza e o desemprego. Sua pretensão é a de reverter o declínio industrial e tecnológico dos Estados Unidos, em especial, em favor dos novos polos de poder como a China, no plano econômico, e a Rússia, no plano militar. Para isso, lançou um imperialismo unilateral e chauvinista, que descartou a articulação do consenso neoliberal e as políticas de hegemonia e reivindicou a força do Estado norte-americano para desmontar as pressões competitivas da globalização, usando-a não apenas contra adversários, como China e Rússia, mas também contra aliados, como os países da União Europeia, México e Canadá, ou organismos multilaterais como a OMC e a OMS.
Guerra comercial
Trump abriu uma guerra comercial contra a China, impôs sanções contra suas empresas, pressionando outros Estados a replicarem-nas para isolá-la na disputa sobre a fronteira tecnológica. Ao fazê-lo aproximou-a da Rússia, a quem impôs dezenas de sanções, para conter seus projetos geopolíticos, fortalecendo indiretamente as aspirações de um projeto eurasiano. Todavia, ele não rompeu com a globalização financeira e nem com diversas dimensões do neoliberalismo: removeu parte das regulações estabelecidas no governo Obama sobre o setor financeiro e os rentistas, reduziu a carga tributária sobre as grandes corporações, ampliou os gastos militares, elevou as taxas de juros e ampliou o déficit público.
Os resultados alcançados por Trump foram muito limitados. Ele não impediu que avançasse a deslocalização das empresas estadunidenses, que as chinesas as superassem na lista das 500 da revista Fortune e que a pequena redução do déficit comercial norte-americano se desse às custas de um profundo desgaste de sua liderança mundial e de uma escalada de conflitos internos com o segmento mais transnacional do setor produtivo.
Todavia, a diminuição do desemprego, iniciada no segundo mandato de Obama, apesar de um leve crescimento na desigualdade, dava-lhe a dianteira nas pesquisas eleitorais e um protagonismo político centrado em torno do eleitorado branco conservador e da defesa violenta de suas prerrogativas contra a competição exercida pelo imigrante e pelo multiculturalismo sobre os postos de trabalho e a hegemonia cultural norte-americana. Tal cenário foi suplantado pela Covid-19 que transformou os Estados Unidos no novo epicentro de uma crise mundial, evidenciando as debilidades estruturais de sua economia, a gestão desastrada e a liderança incauta política de Trump, acelerando o declínio de seu poder no sistema mundial.
Alto endividamento
O alto nível de endividamento do Estado norte-americano e de suas empresas contrastam com o baixo nível do chinês e suas empresas estatais, o que amplia o espaço de atuação e a eficiência do regime de acumulação sinocêntrico em relação ao estadunidense, cada vez mais pressionado pela contradição da desproporção da expansão entre os ativos financeiros e o PIB. Tal desproporção foi financiada, desde o giro neoliberal dos Estados Unidos, nos anos 1980, com expansão do endividamento público e privado internacional, o que se manifestou no crescimento mais que proporcional dos pagamentos ao resto do mundo que das receitas, reciclados em novas entradas pela financeirização.
Entretanto, se é correta a hipótese de que estamos em um ponto de inflexão para uma fase B de um ciclo de Kondratiev, que atingirá especialmente os Estados Unidos, a eventual ruptura desse esquema de financiamento pode colocar em questão o protagonismo do dólar, principal cidadela de um poder cada vez mais parasitário. Um novo período longo de recessão provavelmente impulsionará o aumento secular do gasto público em relação ao PIB no mundo, o que deverá reduzir o volume das reservas internacionais, ampliar o controle do balanço de pagamentos e expandir o investimento interno sob a pressão dos movimentos sociais.
Além disso, a liderança militar dos Estados Unidos está cada vez mais sendo desafiada pelos constrangimentos que o endividamento coloca para a expansão dos seus gastos militares, que em 2000 representavam 6,5 vezes o orçamento de Rússia e China juntos, mas em 2019, apenas 2,2 vezes.
Estado e planejamento no Oriente
no Oriente A China parece muito mais capacitada para enfrentar o novo período recessivo que os Estados Unidos. A forte presença do Estado, do planejamento central e de suas empresas estatais permite a manutenção de altas taxas de investimento com baixas taxas de lucro. A liderança no desenvolvimento de tecnologias limpas, o papel central nas tecnologias de saúde, que produzem 80% dos componentes ativos dos antibióticos fabricados nos Estados Unidos, a nova orientação estratégica da política de Estado para uma sociedade de serviços de alta tecnologia e o consumo interno, bem como a política internacional de projeção do arco de desenvolvimento para a Eurásia e o Sul Global via BRICS, a colocam como vértice da construção de um novo eixo geopolítico, que prioriza espaços territoriais e demográficos deprimidos pelo desenvolvimento desigual imposto pelo imperialismo anglo-saxão e europeu.
As eleições estadunidenses se dividirão em dois projetos:
- A) O DE TRUMP E DA EXTREMA DIREITA ESTADUNIDENSE, que se lança em rumos cada vez mais neofascistas, buscando a utilização da força do Estado norte-americano para reverter o declínio. Esse projeto aumenta o nível de tensões e conflitos internacionais, tende a retomar a médio e longo prazo o complexo industrial-militar como centro do gasto público em alternativa à financeirização e a proposta de repatriação do capital estadunidense só pode se viabilizar sob brutal repressão da classe trabalhadora norte-americana para restabelecer internamente a taxa de lucro que se alcança fora. Essa política se projeta sobre a América Latina ameaçando relançar a Doutrina do Destino Manifesto, de intervenções militares diretas ou indiretas, e golpes de Estado. Aparentemente, derrotado nas eleições, apesar da gestão desastrosa da pandemia da COVID-19, Trump foi beneficiado pelos programas anticrise de ajuda social que combinados à queda intensa do PIB, reduziram a desigualdade e a pobreza nos Estados Unidos, o que pode lhe dar combustível e competitividade nas eleições de novembro.
- B) O DOS DEMOCRATAS, LIDERADOS POR JOE BIDEN e Kamala Harris, que, caso vitoriosos, tenderão a retomar o consenso universalista neoliberal estadunidense, por meio das bandeiras do livre-comércio e livres fluxos de capitais por meio de acordos hemisféricos, multilaterais e organismos internacionais. Eles terão, entretanto, o objetivo de conter a China e a Rússia, e não desmontarão completamente o nível de agressividade apresentado por Trump.
Para a América Latina esse projeto pode retomar processos inovadores como o de desmonte do embargo a Cuba. Evitará intervenções militares diretas, mas estará articulando guerras híbridas e cercos, com o qual pretenderá impor sua hegemonia sobre a região e tomar controle da Venezuela. A indicação de Kamala aponta a intenção de atrair o apoio dos movimentos sociais, afroamericanos e latinos mas, dificilmente, colocará as políticas sociais acima das de financeirização.
Oligarquia bélica
Senador por Delaware, de 1973 a 2009, Joe Biden representa a tradicional oligarquia centrista democrata tendo apoiado o bombardeamento do Kosovo e a guerra contra o Iraque, e buscará cooptar os movimentos sociais para aceitarem a política do establishment liberal. Trata-se de um importante limite de mobilização social, uma vez que o êxito da política antirracista depende do enfrentamento da superexploração dos trabalhadores que se desenvolve nos Estados Unidos desde os anos 1980. Como demonstram Adolph Reed Junior e Walter Been Michaels (2020), 77% das disparidades de renda entre brancos e negros estão entre os 10% mais ricos de cada segmento e apenas 3% entre os 50% mais pobres. Tal contradição fragiliza essa ofensiva e os resultados eleitorais. Porém, a crise da democracia norte-americana é profunda. Os vínculos históricos com o racismo, resultado das relações de longa duração com o imperialismo, com o colonialismo e com a escravidão, tornam o seu êxito muito vinculado à ideologia da prosperidade, que tende a ser desafiada pela recessão e pelo declínio.
Provavelmente, assistiremos nos próximos anos a forte atuação dos movimentos sociais em busca de formas de expressão política e influência sobre o Estado norte- -americano que unifiquem a classe trabalhadora em sua diversidade étnico-racial e de gênero contra o imperialismo e brutal expansão da desigualdade, que limitaram a expansão da renda dos 50% mais pobres a 3% do crescimento econômico entre 1980-2014 (Piketty et alli, 2018).
Referências bibliográficas
Martins, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo, Boitempo, 2011.
Michaels, Walter Been e Reed, Adolph (2020) The trouble with despair. Acesso em nonsite.org/the-trouble-with-disparity/
Piketty, Thomas et alli (org) (2018) World Inequality Report. Acesso em wir2018.wid.world/ files/download/wir2018-summary-english.pdf
Carlos Eduardo Martins é professor associado do IRID/ UFRJ e PEPI/UFRJ. Pesquisador do Clacso e Coordenador do LEHC/UFRJ.
1 Para uma análise mais detalhada do assunto veja- -se o nosso Globalização, dependência e neoliberalismo na América (2011), publicado pela Boitempo, que foi ampliado e atualizado na versão em inglês publicada pela Brill em 2020. Os ciclos de Kondratiev se vinculam ao surgimento de novos paradigmas tecnológicos e crise dos obsoletos e dividem-se em fases A e B, de aproximadamente 25 a 30 anos de expansão ou recessão, entendida não necessariamente como decrescimento, mas principalmente como uma taxa de expansão significativamente abaixo da média da longa duração. Surgem nos países mais industrializados europeus na primeira metade do século XIX e passam a afetar o os ritmos da economia mundial desde 1870.