Um dos temas centrais do discurso da direita, em particular do setor mais extremado, que funda boa parte do apelo de massas, é a ordem. A extrema direita promete esmagar o crime, restaurar as hierarquias e silenciar os movimentos contestatórios. Autoridade e disciplina garantiriam o bom funcionamento da sociedade. Na Itália de Mussolini, os trens partiam no horário: como certa vez escreveu Fernando Pessoa, “os fascistas matam seu pai, mas você tem a certeza que, metendo-se no comboio, chega a tempo para o enterro”. No Brasil, no entanto, um ano e meio de governo Bolsonaro nos empurraram na direção do caos. A pandemia global do novo coronavírus, que recebeu do presidente e de seu entourage uma resposta não apenas incompetente ou negligente, mas francamente criminosa que acelerou um processo já em curso.
Herdeiro indesejado do golpe de 2016, cujos líderes projetavam uma saída “civilizada” à direita, com alguém com o perfil de um Geraldo Alckmin, Bolsonaro se mostrou instrumental para o trabalho de destruição (dos direitos, das políticas sociais, da ordem constitucional pactuada em 1988), ao qual foi capaz de imprimir ritmo ainda mais veloz do que Temer. Mas o governo é congenitamente inapto para promover uma pacificação, seja entre os grupos integrantes da coalizão golpista, seja na relação com os grupos dominados. Para tanto, contribuem o comportamento belicoso e o etos machista que são centrais na identidade do bolsonarismo, a falta de traquejo político do núcleo do governo e, em especial, o descompasso entre as prioridades algo paroquiais do círculo íntimo de Bolsonaro e os projetos ambiciosos dos grupos que se aliaram a ele, vindos da aristocracia financeira, do agronegócio e do lavajatismo.
Continuidade insustentável
Com a crise sanitária, tornou-se insustentável a continuidade do governo Bolsonaro. A cada dia, ela se conta em mais mortes. Os esforços do sistema de saúde são sabotados por palavras, por exemplos, por omissões e por ações. As tensões com os outros poderes se transmutaram em conflito aberto. Sérgio Moro, que era surrealmente o principal ativo de credibilidade do governo, demitiu-se. Mesmo economistas conservadores admitem que o fundamentalismo de mercado esposado por Guedes é impróprio para enfrentar a nova situação. A Rede Globo e outros grandes veículos de imprensa passaram a advogar pela retirada do presidente. Diante disso, impõe-se a pergunta: por que Bolsonaro não cai?
O primeiro fator a ser considerado é a manutenção de uma considerável, ainda que cada vez mais minoritária, base popular. Comentaristas políticos e jornalistas têm difundido uma suposta “lei” sociológica, de que um processo de impeachment só vinga caso as pesquisas de opinião detectem menos de 15% de apoio ao presidente. Não creio que seja algo tão mecânico, muito menos que as respostas a uma enquete resolvam a questão.
O fato de que uma proporção tão expressiva de pessoas ainda avalie positivamente um governo tão grotesco merece atenção. Uma parcela tende a aprovar qualquer governo, por servilismo introjetado ou por confundir apoio ao presidente de plantão com “torcer pelo país”. Outra, é vítima da confusão, sabidamente usual, entre Estado e governo assim, o auxílio emergencial de R$ 600 durante a pandemia, obtido pela oposição no Congresso contra forte resistência de Guedes, turbinou a popularidade de Bolsonaro. Por fim, há a fatia do “bolsonarismo raiz”, cativada pelo discurso de ódio e de reafirmação das hierarquias sociais e prisioneira dos circuitos de desinformações próprios da chamada “pós-verdade”.
O confronto como métrico
Mais importante do que a quantidade de adeptos, porém, é o ânimo aguerrido da base bolsonarista. Desde o começo do governo, mas crescentemente conforme sua posição fica mais incerta, Bolsonaro alimenta entre os seguidores a disposição para o confronto. Nos últimos tempos, tem estimulado a formação de grupos armados, o que converge para a antiga suspeita de uma relação íntima com milicianos do Rio de Janeiro. A radicalização se completa com os acenos, sempre encobertos, mas cada vez mais frequentes, a grupos neonazistas e supremacistas brancos, por parte de Bolsonaro e de seu círculo íntimo. A estratégia, portanto, é de intimidação.
Converge para ela o segundo fator a ser considerado, o apoio das Forças Armadas e das polícias. Bolsonaro fala diretamente às praças, suboficiais e oficiais inferiores do Exército, assim como aos policiais. São setores sensíveis ao discurso pró-violência, contrário aos direitos humanos e às minorias. Não é algo fortuito. Como observou Poulantzas, os dispositivos repressivos do Estado capitalista parecem em geral agir de forma “falha”, com excesso de brutalidade, racismo e viés de classe escancarado. Eles deixam sistematicamente de cumprir a lei pela qual deveriam zelar, mas é essa falha que permite que eles estejam sempre disponíveis nos momentos em que as classes dominantes decidem caminhar no rumo da fascistização.
Com a cúpula militar, em especial da força terrestre, a relação é mais complexa, embora haja forte concordância no autoritarismo, no anticomunismo e mesmo no alinhamento automático aos Estados Unidos. Cabe observar que o vice-presidente, Hamilton Mourão, que é razoável ver como um dos principais representantes do generalato no governo, mudou de postura. Se no início do mandato fez movimentos para se apresentar como alternativa a Bolsonaro, adotando um discurso mais conciliador e mais racional, hoje marca distância de maneira muito mais sutil e não poupa ocasiões para afirmar de público sua lealdade e solidariedade.
Generalato e governo
Embora sejam reportadas tensões internas e constrangimento com atitudes e declarações, o generalato parece ter decidido cerrar fileiras com Bolsonaro. Isso tem tomado a feição de frequentes notas e declarações, cifradas e não tão cifradas, indicando que qualquer tentativa de deposição do presidente, por decisão do Legislativo ou do Judiciário, enfrentará oposição militar. Em interpretações mais ousadas, o sistema constitucional de controles é equiparado a um confronto entre poderes, que exigiria uma intervenção moderadora papel que as forças armadas atribuíram a si mesmas em muitos momentos da história brasileira. Cumpre lembrar que, tendo adotado um perfil discreto durante a deflagração do golpe de 2016, os militares passaram a uma exposição maior já durante o governo Temer. Basta pensar no tuíte do general Villas-Boas ameaçando o STF no caso da prisão de Lula e do agradecimento “misterioso” que Bolsonaro fez a ele durante a transmissão do cargo de ministro da Defesa.
Muitas vezes a questão se coloca como sendo definir o quanto há de blefe nesses pronunciamentos e o quanto há de disposição efetiva para uma intervenção de força. Creio que, apresentada dessa forma, a questão está deslocada. O blefe, sobretudo quando surte efeito e quando não leva a uma punição, já é uma forma de intervenção. E permite tanto que os limites do papel político dos militares sejam paulatinamente distendidos quanto que um novo golpe seja construído como possibilidade dentro do generalato. As escaramuças entre ministros do Supremo e porta-vozes militares do governo sobre a interpretação do artigo 142 da Constituição de fato um texto ambíguo, fruto ele próprio da pressão castrense já mostra uma situação anômala. Afinal, pelo nosso ordenamento institucional não cabe dúvida de que a palavra final sobre a interpretação do texto constitucional caberia à corte máxima do país. Assim, a estratégia de intimidação toma com clareza a feição de uma chantagem, pela qual a continuidade do governo, a despeito das evidências que sustentam as iniciativas tanto para a cassação da chapa quanto para o impeachment, seria o preço a pagar para que não ocorra um novo golpe.
Aceita a chantagem, a democracia brasileira, que nos últimos anos sofreu tantos reveses que é difícil justificar a permanência do rótulo, torna-se definitivamente tutelada. Partindo do entendimento de que a disposição das forças armadas para uma nova intervenção de força, nos moldes de 1964, não está formada, fica claro que a ameaça só será debelada com uma resposta vigorosa das instituições e da sociedade civil. A nova pergunta que se impõe, então, é por que a reação às ameaças do bolsonarismo se mostra tão pífia. Creio que aqui se torna central o terceiro e mais importante fator a ser considerado: o fato de que, entre os grupos dominantes do país, tanto no empresariado como na elite política, a necessidade de retirar Bolsonaro na presidência é sentida, sobretudo, dada a irracionalidade no combate à pandemia, mas contrabalançada por outras considerações.
A inflexão do golpe
Para entender isso, é necessário ter em mente que o grande momento de inflexão da política brasileira recente não foi a eleição de Bolsonaro, mas o golpe de 2016. Este colocou em marcha a criminalização da esquerda, a macarthização da vida política, a instrumentalização aberta do aparelho repressivo de Estado e a tolerância ou mesmo o estímulo à agressividade da direita radicalizada, elementos sem os quais não seria possível a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018. Seu sentido final foi fazer com que o campo popular deixasse de ser admitido como interlocutor legítimo no debate político, permitindo a retirada unilateral, sem qualquer espaço para negociação, de tantas conquistas históricas.
Bolsonaro foi, de certa maneira, um acidente de percurso. Programada para ser uma coadjuvante, a tropa de choque acionada nos momentos necessários, a extrema direita ganhou o proscênio quando o eleitorado mostrou que se recusaria a cumprir o papel no script, elegendo para a presidência um conservador civilizado como Alckmin. Ao optarem pelo então candidato do PSL, em vez de por um moderado disposto a negociar como Fernando Haddad, as classes dominantes deixaram claro que não estavam dispostas a recuar um milímetro no programa de redução de direitos vitorioso com o golpe.
Os excessos do ex-capitão eram desagradáveis, mas Guedes entregava as “reformas” desejadas e os movimentos populares eram mantidos na defensiva. A pandemia alterou o quadro. Bolsonaro está empurrando o país para um desastre sanitário inimaginável e mesmo Guedes, cuja incompetência como gestor econômico não pode mais ser disfarçada, ficou menos atraente.
Há, então, um movimento duplo. Por um lado, tenta-se usar o que resta da institucionalidade derivada da Constituição de 1988 para impor limites ao bolsonarismo no poder. O Supremo, o Congresso Nacional e, em alguma medida, os governadores estaduais têm agido nesse sentido. É um caminho, no entanto, restrito, dados os amplos poderes que nosso arranjo legal confere ao presidente da República. Bolsonaro pode ser contido, mas não tutelado: sua margem de manobra permanece ampla.
Por outro lado, tenta-se garantir que a eventual saída de Bolsonaro do cargo não implicará a perda do terreno conquistado pelas classes dominantes com o golpe. É o objetivo que preside a construção de uma “frente ampla” que não coloque em questão a retração de direitos, o desmonte do Estado social ou mesmo a aberta instrumentalização política de seu aparato repressivo.
Bode na sala
A necessidade imperiosa de imprimir uma direção menos irracional ao combate à crise sanitária, que dá sentido de urgência à retirada do ex-capitão da presidência, tornou tentadora a ideia da frente. A velha hierarquização das lutas, em que a obtenção das liberdades democráticas tem prioridade sobre a defesa dos direitos da classe trabalhadora e de outros grupos dominados, foi de novo posta em cena. Não cabe aqui discutir o equívoco dessa hierarquização, apoiada numa leitura redutora da separação histórica entre o político e econômico, esposada em geral por pessoas objetivamente privilegiadas pelo padrão de desigualdades vigente no Brasil. Basta anotar que, caso essa compreensão triunfe, Bolsonaro está pronto para cumprir o último serviço aos golpistas de 2016: ser o bode na sala.
A solução para a crise, de acordo com o projeto da nova oposição de centro-direita, é retirar Bolsonaro e manter o Brasil do pós-golpe. Violência estatal menos escancarada, menos irracionalidade no poder e aceitação ritual dos direitos humanos. Tiramos Bolsonaro e seguimos em frente, com CLT despedaçada, desigualdades ampliadas, Estado subfinanciado, conspiração judicial contra a esquerda. Em especial, a disputa política continua tutelada de maneira a excluir, de antemão, o campo popular e, portanto, deixar caminho aberto para o aprofundamento de todas as desigualdades. O paralelo com as Diretas Já, evocado no manifesto do “Juntos” publicado nos jornais brasileiros no dia 30 de junho, é equivocado. As Diretas Já foram um movimento amplo em busca de um objetivo pontual, a volta das eleições diretas para presidente, que visava alargar e democratizar a disputa política. Para que isso ocorra hoje não basta retirar Bolsonaro da presidência. É preciso, no mínimo, restaurar a plena vigência da Constituição de 1988, o que, por sua vez, requer o desfazimento do golpe. Trata-se de reabrir caminhos para a luta popular e para a construção de um Brasil menos injusto e menos violento. Abrir mão de assumir esse discurso é abrir mão da disputa política e aceitar os limites que a direita impõe.
As classes dominantes apresentam essa plataforma limitada de ação conjunta como “pegar ou largar”. Ela negocia em condições de força não é à toa que exibe o adjetivo “dominante”. Mostra que pode se acomodar com Bolsonaro, se nós não aceitarmos todas as suas condições. Não por acaso, no momento em que crescentes setores da esquerda demonstraram relutância em aderir à “frente ampla”, o presidente do PSDB, deputado Bruno Araújo, anunciou em entrevista que seu partido defendia a permanência de Bolsonaro e Mourão no cargo até o final do mandato.
Há, porém, limites na possibilidade dessa acomodação com Bolsonaro. Se ela fosse tão tranquila, os acenos à derrubada não estariam nem sendo feitos. O Brasil está se tornando um pária no sistema internacional. Está caminhando para o colapso, com a gestão obtusa e criminosa da crise sanitária e econômica e, embora as palavras sejam fortes, não há nelas exagero retórico.
Objetivos e diferenças
A classe dominante tem mais condições de pretender que pode prosseguir com essa situação indefinidamente do que de fato estendê-la. Por isso, submeter-se a seu programa não é a única alternativa. É possível afirmar a disposição por ação conjunta em relação a um objetivo pontual derrubar Bolsonaro sem deixar de reafirmar as diferenças profundas e irreconciliáveis, sem silenciar as reivindicações democráticas e igualitárias do campo popular, sem compactuar com a normalização dos retrocessos. Na verdade, a campanha do “fora, Bolsonaro”, articulando as premências do momento com um programa igualitário e democrático, tem condições de renovar o protagonismo do campo popular e de recolocá-lo do centro do tabuleiro político.
O momento é desafiador para o campo popular, que acumula derrotas históricas nos últimos anos. A democracia eleitoral sob o capitalismo, como se sabe, une o voto como forma de legitimação política com o veto real da classe burguesa à ação do Estado. No Brasil, esse veto se estendeu tanto que passou a interditar até mesmo o “reformismo fraco” do petismo no poder. Se o poder de veto não for contido, o que depende da força do movimento popular, o poder do voto será sempre irrelevante.