‘’Se a devastação ambiental não for detida, a maior floresta tropical do mundo pode chegar a um ponto de nãoretorno em seu processo de extinção. A busca do lucro sem freios coloca em risco não apenas a biodiversidade, mas populações inteiras que dependem de rios e matas para existirem’’
-Priscilla Cardoso Rodrigues Mônica Xavier de Medeiros
Na tarde do dia 19 de agosto de 2019, o céu da cidade de São Paulo escureceu. O encontro de uma frente fria com nuvens de queimadas vindas da floresta amazônica formou um fenômeno que fez a tarde virar noite. Com isso, as queimadas na Amazônia ganharam visibilidade na imprensa, fazendo com que o mundo inteiro voltasse os olhos para a maior floresta tropical. Ela comporta um terço de toda a biodiversidade, forma a principal reserva de carbono e representa quase metade de todas as florestas tropicais remanescentes da Terra. Tais fatores, entretanto, não impedem que o Brasil também seja um dos maiores emissores planetários de gases de efeito estufa por desmatamento, sendo responsável pela derrubada de mais de 2 milhões de hectares anuais de florestas somente na Amazônia.
A sanha exploratória
O desmatamento na Amazônia brasileira começou a crescer após a implementação de projetos econômicos e de infraestrutura realizados pela ditadura civil-militar (décadas de 1960-70), que colocou o “desenvolvimento econômico” da região amazônica na ordem do dia. O lema “integrar para não entregar”, engendrado a partir da lógica de Segurança Nacional, via a região como um imenso vazio demográfico, presa fácil aos grupos guerrilheiros que lutavam nos países fronteiriços. Para “salvar” a Amazônia, a ditadura organizou a abertura da Floresta à exploração predatória por meio da promoção do crescimento populacional, da migração, invasão e ocupação de territórios indígenas, e da expansão do latifúndio e do subsídio aos projetos ligados à pecuária, extração de madeira, mineração, construção de hidrelétricas e estradas. A Amazônia começou a queimar com a articulação das atividades madeireira e pecuária: desmatava-se a floresta, retirava- -se toda a madeira de valor e, finalmente, vinha o fogo a preparar a terra para a formação de pasto
Agronegócio e grandes projetos
Adotando o agronegócio como a principal fonte de riquezas do Brasil, mesmo após a democratização, nas décadas de 1980-90, os diversos governos que se seguiram nada fizeram para mudar a política para a Amazônia. Até mesmo durante os 13 anos de governos petistas, os chamados “grandes projetos” continuaram sendo implementados, tendo a hidrelétrica de Belo Monte, construída no governo Dilma Rousseff, como marca indelével da submissão da natureza às ordens do capital. A floresta amazônica continuou sendo mercantilizada, enquanto os modos de vida e trabalho dos moradores foram sistematicamente alijados. Mais especificamente em relação às queimadas, desde 2009, cidades amazônicas como Manaus e Rio Branco têm o cotidiano afetado por nuvens de fumaça que transformam o dia em noite. Em 2015, formou-se um corredor de fumaça gigantesco que ia da região do baixo-Amazonas no estado de mesmo nome até o Pará. Esse corredor de fumaça era tão grande que podia ser detectado por satélites. Aeroportos fechados por falta de visibilidade e as pessoas da região lotam os postos de saúde devido a problemas respiratórios. Um estudo de 2017 demonstrou que a fumaça das queimadas na Amazônia causa danos ao material genético e morte das células pulmonares, podendo os efeitos se estenderem por toda a América do Sul. Além disso, milhares de plantas e animais que compõem a rica biodiversidade amazônica estão sob ameaça de extinção devido às queimadas e os efeitos do desmatamento para o aquecimento global têm atingido toda a humanidade.
O que mudou com Bolsonaro?
O governo Bolsonaro representou um salto de qualidade na mercantilização da Floresta Amazônica. Setores da burguesia ligados ao agronegócio, à mineração e ao capital internacional ocuparam cargos-chave no aparelho de Estado que deveriam elaborar políticas públicas de proteção ambiental, demarcação de terras indígenas e quilombolas, reforma agrária e apoio à agricultura familiar e, inclusive, programas de prevenção e combate às queimadas. Isso levou ao enfraquecimento de políticas e de órgãos estatais fundamentais para a defesa da Floresta como o Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, ICMBIO, FUNAI, INCRA – e de programas como o Prev. Fogo. Se isso não fosse o suficiente para colocar a Floresta em risco, o discurso anti-índíge na e anti-ambientalista de Bolsonaro deu força a atividades criminosas realizadas por agropecuaristas, grileiros, madeireiros e garimpeiros. Sentindo-se poderosos ao verem o presidente como aliado, e na certeza da impunidade em relação aos crimes ambientais, fazendeiros do sudoeste do Pará promoveram o “Dia do Fogo” em agosto, que consistiu na organização criminosa de incêndios florestais na região por meio de convocação feita por meio de mensagens de WhatsApp. Como resultado, de acordo com o INPE, as queimadas na Amazônia aumentaram 196% naquele mês, comparadas ao mesmo mês do ano passado.
Desmatamento recorde
O desmatamento aumentou exponencialmente no governo Bolsonaro e isso foi fundamental para a ampliação dos focos de incêndio na Amazônia e em todo o Brasil. A nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental na Amazônia (IPAM), divulgada em agosto de 2019, revelou que a estiagem deste ano pode ser considerada suave, portanto, não se pode apontar a falta de umidade como principal causa das queimadas. A nota técnica também concluiu que os dez municípios da Amazônia que tiveram as maiores taxas de desmatamento foram justamente aqueles que apresentaram mais focos de incêndio, o que revela que “a concentração de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem branda, representa um forte indicativo do caráter intencional dos incêndios: limpeza das áreas recém-desmatadas”.
Os povos da floresta
Quilombolas, indígenas, ribeirinhos e trabalhadores rurais amazônicos têm maneiras próprias de conviver com a floresta. Os rios, lagos, terras, árvores são dimensões de sociabilidade, na qual plantas, animais e seres humanos formam uma rede bastante frágil de relações das espécies entre si e com o meio ambiente, de cujo equilíbrio dependem o clima, a qualidade da água, o solo, a reciclagem de nutrientes e demais serviços ecossistêmicos fornecidos por esse bioma. Entretanto, desde o golpe e de 2016 e, de forma mais acentuada, desde o início do governo Bolsonaro, esse equilíbrio tem sido ameaçado em decorrência do avanço do agronegócio e da mineração em larga escala sobre os territórios desses povos tradicionais, especialmente dos povos indígenas. Além de o Presidente retirar a proteção governamental das áreas protegidas da Amazônia (terras indígenas e unidades de conservação), também tem feito pronunciamentos propondo a abertura dessas áreas para a produção capitalista, provocando aumento dos casos de queimadas, ocupação e garimpo ilegal, bem como a desestruturação dos modos de vida e trabalho desses povos.
Golpe na reforma agrária
No mesmo sentido, a reforma agrária também sofreu um duro golpe com a aprovação da Lei nº 13.465/2017 (apelidada Lei da Grilagem), que legalizou a mercantilização de terras, transformando-as em ativo comercial, tendo adotado, como principais medidas, a antecipação da emancipação dos assentamentos para que os lotes estivessem disponíveis mais cedo para a venda no mercado de terras e a legalização da grilagem. Soma-se a isso a ampliação para 2.500 hectares o limite de regularização de terras públicas devolutas no âmbito do programa Terra Legal na Amazônia. O grande problema é que, como qualquer outro ecossistema, a Amazônia também tem um ponto limite que, se ultrapassa – do, impedirá para sempre a recuperação: “Muitos cientistas temem que a floresta inicie um processo irreversível em direção a savanas se o desmatamento atingir 40% do território. As implicações dessa transformação para o aquecimento global, ciclos hidrológicos e biodiversidade seriam catastróficas’’. Portanto, só conseguiremos entender melhor o contexto do aumento das queimadas que chamou a atenção do mundo ao escurecer o céu de São Paulo no meio da tarde e os reais efeitos desses fenômenos para os brasileiros e para toda a humanidade se compreendermos que ele se encontra inserido num contexto mais amplo de desestruturação de direitos territoriais e ambientais duramente conquistados pelos movimentos sociais desde a queda da ditadura civil-militar. Tais direitos têm sido, por décadas, as principais armas dos povos amazônicos para a proteção e defesa da floresta, dos territórios ancestrais e da sobrevivência física e cultural.
Desde o golpe de 2016 e, de forma mais acentuada, desde o início do governo Bolsonaro, o equilíbrio ecológico tem sido ameaçado em decorrência do avanço do agronegócio e da mineração em larga escala.