‘’David Harvey, um dos mais criativos pensadores heterodoxos da atualidade, analisa nesta entrevista quem ganhou e quem perdeu com a crise global, o crescimento da China, os problemas na Amazônia e o avanço da extrema direita no mundo’’
Francisvaldo Mendes
O geógrafo britânico David Harvey é citado entre os principais geógrafos em atividade no mundo, mas nada em suas atitudes e observações reforça o estereótipo do “grande professor” ou do “acadêmico tradicional”. Pose e arrogância são comportamentos banidos de seu dia a dia. Talvez a trajetória intelectual explique muito de sua atitude. Ele iniciou a carreira acadêmica pelos estudos literários. A opção pelo marxismo foi “tardia”. Dele só passou a se valer quando já estava bem adiantado na carreira de pesquisador. Buscava ferramentas que permitissem uma compreensão plena dos fenômenos da urbanização e dos ciclos de acumulação de capital. Atualmente, é professor na City University of New York. Ao lado de títulos mais conheci dos como Os limites do capital, Condição pós-moderna, breve história do neoliberalismo, O novo imperialismo, Espaços de esperança, Espaços do capital, entre muitos outros Harvey publicou em 2003 um livro cativante Paris, capital da modernidade em que lança mão de todo o estoque de recursos intelectuais para analisar a remodelação da capital francesa no século 19. As reformas urbanas, conduzidas pelo barão Hausmann e por Napoleão III, são examinadas a partir de Balzac, Flaubert e Marx, ao lado de cartuns e caricaturas do período, que se entrecruzam com estatísticas e interpretações de plantas e mapas, instrumentos típicos do ferramental do geógrafo. No Brasil, suas obras são lançadas pela Boitempo Editorial
Há mais de vinte anos o senhor desenvolve o “Projeto Marx”. Qual a atualidade do pensamento de Marx numa época de grandes transformações e de crise do capitalismo? Há quarenta anos, comecei a suspeitar que a economia convencional não estava fornecendo explicações corretas sobre o que acontecia no mundo. Comecei a ler Marx e a pensar como reconstruir o pensamento e ajustá-lo às condições contemporâneas. Ao chegar nos anos 2007-08, fiquei totalmente convencido de que os estudos da economia convencional não tinham nada a oferecer para esclarecer nossos problemas reais. Ali, o topo da pirâmide social emergiu da crise mais rico do que antes. Era possível constatar que a economia política focava naquele 1% mais rico ou então no 0,1% mais rico. É uma espécie de socialismo para os influentes, para os bancos e para o mercado financeiro, enquanto a austeridade era destinada aos demais. Então, refleti e pensei: “Nós precisamos de outro arcabouço teórico para compreender o que está acontecendo”. Dediquei bastante tempo estudando Marx e percebi que a teoria econômica que conseguiria abordar tudo aquilo foi proposta por ele. Marx, obviamente, estava incompleto, não teve tempo de fazer tudo em seu temp0 de vida. Minha missão foi reler Marx a altura das circunstâncias contemporâneas e fazer a pergunta do que ele poderia dizer. O objetivo seria pegar aquilo que nós conhecemos de Marx e criar um marxismo muito vibrante, lidando com as circunstâncias atuais. O arcabouço teórico que Marx fornece é algo a ser amplamente compreendido. E, por isso, tento escrever textos que promovam essa compreensão. Nós que estamos nos envolvendo nesse projeto de trazer Marx para pessoas comuns o tempo inteiro, temos uma grande missão.
Em seu livro As 17 contradições e o fim do capitalismo (Boitempo), o senhor trata da questão dos juros compostos sobre a dívida e a incapacidade de o capital manter o crescimento exponencial infinito. A emissão de dinheiro na crise de 2008 deu fôlego para as grande corpo rações e para o sistema como um todo. Essa nova turbulência pode ser reduzida com mais emissão de dinheiro-papel? E se puder, até quando? Sem que se desemboque num gigantesco “crash”? A única forma que o capital pode crescer sem nenhum tipo de limite físico é a forma dinheiro. Num determinado momento da história, especialmente na época de Marx, a forma dinheiro era limitada pelo padrão – -ouro e a quantidade de ouro no mundo era limitada. Mas, em 1971, a relação dólar ouro foi rompida e se começou a focar no sistema financeiro desmaterializado. Sem esse vínculo, você pode criar quantos dólares desejar. Um dos responsáveis da crise de 2007-08 foi o que hoje nós chamamos de flexibilização quantitativa, que é simplesmente adicionar “zeros” à oferta monetária global, que se expandiu dramaticamente naquele momento. A ideia é que ao criar dinheiro, criando liquidez, esse dinheiro iria fluir e revitalizar o sistema. Infelizmente, isso não aconteceu e parte do dinheiro foi para o mercado da bolsa de valores e de terras. E ele não foi, portanto, para atividades produtivas, mas para atividades especulativas. As emissões reforçaram o poder e a capacidade do 1% mais rico. Como aumentou o valor do mercado de ações, então o dinheiro foi para aqueles que tinham uma parte das ações. E aí, causa-se uma inflação muito grande e isso suscita a pergunta: como controlar a inflação? Para fazer isso, é necessário manter o consumo reprimido ou então manter o consumo focado no crédito. Isso levou a um rápido aumento da dívida pública global. Recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) tornou público um relatório falando que a dívida global está no nível de cerca de 230% do PIB do planeta. O que vai acontecer? Há cálculos a sugerir que cada habitante do mundo está endividado em US$ 80 mil. Como vamos gerenciar essa dívida? Como ela vai ser reduzida? E uma das formas possíveis é fazer como na Grécia, a partir de 2014-15. Lá houve austeridade selvagens. Cancelamento da aposentadoria das pessoas e anulação do bem-estar. Não é algo possível politicamente num país grande como os EUA, haveria revoltas e sublevações muito rapidamente, com certeza. Outra possibilidade é uma grande inflação. E grandes inflações já aconteceram no passado. Acho que em algum momento volta remos a ter grande inflação. Se estiver de vendo US$ 80 mil, talvez consiga em alguns anos pagar essa dívida, mas a maior parte das pessoas provavelmente não conseguiria. Imagina se você fosse à favela e falasse: “você tem US$ 80 mil de dívida, pague-nos agora”. Obviamente, haveria uma revolução nas ruas.
A mídia tem ressaltado e diversos economistas vêm anunciando que es – tamos entrando numa nova recessão mundial. O senhor acredita que isso pode levar a uma exacerbação da luta de classes na China? Há uma grande coisa acontecendo no mundo hoje em dia que é falar mal da China e culpá-la de tudo. Eu quero destacar que em 2007-08 a China, sozinha, salvou o capitalismo global do colapso. Ela fez isso por meio de um projeto de investimento vasto na reconstrução das infraestruturas e na construção de novas cidades. O que fizeram foi fenomenal. Os chineses estão numa situação muito interessante. Houve uma formação muito grande da classe trabalhadora global nos últimos 40 anos. Ela aumentou em um bilhão de pessoas desde 1980. São basicamente chineses. Aconteceu também a entrada de mulheres na força de trabalho. E a proletarização das mulheres também é um grande aspecto do capitalismo contemporâneo. A pergunta é: o que essa classe trabalhadora está fazendo? Nos EUA houve desindustrialização e em parte da Europa também. A classe trabalhadora da manufatura diminuiu em número e poder e passou da produção de carros para a produção de hambúrgueres, coisas desse tipo. Houve uma reconstrução dos formatos de emprego em muitas das economias ocidentais. Já na China nós vemos um crescimento da classe trabalhadora convencional. A Fox Comp, por exemplo, que produz iPhones e computadores da Apple, emprega 1,5 milhão de pessoas somente na China. Há dificuldades, pois quando o mercado dos EUA colapsou, eles precisaram reorientar a produção. Estavam também com falta de mão de obra. Logo, os salários começaram a crescer dramaticamente. E a classe trabalhadora que não tinha consciência de classe, começou se tornar uma força de trabalho em si. E começou a acontecer luta de classe. Mas a China não é uma economia capitalista comum. Houve sinais de repressão a movimentos, mas por outro lado tem também uma legislação muito mais antiliberal e anticapitalista do que outros países, como os EUA e os da Europa. O que vai acontecer com a China em termos da configuração de classe e como os partidos comunistas vão se relacionar com isso? É uma das grandes perguntas em aberto do futuro. Há particularidades sérias lá. Os quatro maiores bancos do mundo são chineses. Mas, todos os bancos chineses pertencem ao Estado, eles seguem as políticas públicas do Estado. Eles não pegam dinheiro e levam para o topo da pirâmide. Eles seguem as instruções do partido e levam dinheiro onde há uma maior necessidade social.
O senhor falou muito da classe trabalhadora da China. Especialistas indicam que em vinte anos metade dos empregos atuais serão substituídos por robôs e novas tecnologias. O que será da classe trabalhadora que, hoje, já enfrenta desemprego e dispersão? Eu entendo que haverá uma reorganização radical das possibilidades de emprego por meio da aplicação da inteligência artificial. Com a automação e com a robotização, muitas corporações industriais reduzirão os postos de trabalho dramaticamente por causa disso. Por exemplo, quando cheguei à cidade de Baltimore, nos EUA, em 1959, havia grandes siderurgias que empregavam 30 mil pessoas. Trinta anos depois, o número de empregados caiu para 5 mil, produzindo a mesma quantidade de aço. Hoje, ela nem mais existe, pois a produção de aço desapareceu pela concorrência com a Coreia do Sul e com o Japão. Vamos ver a mesma coisa acontecendo em muitas áreas. Nos Estados Unidos, nos anos 1970, a maior parte das pessoas cozinhava em casa. Hoje, pelo menos 2/3 da população tem pelo menos metade das refeições sendo fornecida por terceiros. Naquela época a gente nunca poderia imaginar que isso se transformaria numa indústria tão grande. Atualmente, a indústria alimentícia, tornou-se integrante da economia e boa parte dessa indústria se estabeleceu por meio dos aplicativos nos telefones celulares. Vejo a luta de classes na China como um processo muito dinâmico. E, provavelmente, vai crescer porque ela acontece atualmente em locais isolados. Em geral, os municípios dão suporte para as empresas porque desejam que elas permaneçam no território. Mas, atualmente, o governo fala que não se deve dar suporte somente às empresas, mas aos trabalhadores. Portanto, existe um foco em cuidar da população trabalhadora. Houve um crescimento de estruturas de bem-estar social na China, que ajudarão a resolver o problema que a classe trabalhadora irá enfrentar com a inteligência artificial. Há bastante literatura sendo patrocinada pelo pessoal do Vale do Silício (EUA), sobre a perda do emprego. Com isso, as pessoas não terão dinheiro para comprar nada. Há um medo dos capitalistas diante do fato de os trabalhadores não terem renda para manter o ciclo da demanda. O pessoal do Vale do Silício tem uma visão do futuro, no qual todos nós receberíamos dinheiro suficiente para assinar o Netflix e ficar sentado o dia inteiro no sofá. É algo horroroso.
Como o senhor vê o perigo que a floresta Amazônica está correndo hoje? A questão ambiental está se tornando muito crítica. No passado eu falava que era importante, mas não tão crítica, porque o capital, historicamente, sempre encontrava formas de variar a fonte de recursos e, até certo ponto, o clima não era tão problemático para o capitalismo porque quando havia furacões, havia reconstruções da cidade. As empreiteiras vinham e o capitalismo fazia negócios. Agora, estamos em outro patamar. É interessante perceber que a cobertura florestal no hemisfério norte está aumentando por várias razões e na floresta tropical, ela está sendo desmatada, como na floresta Amazônica e na África. E o que isso representa é que nós estamos diminuindo um dos principais mecanismos de manter o dióxido de carbono dentro da terra. Nós teríamos que expandir a Amazônia e aumentar o reflorestamento. A Amazônia é, realmente, uma parte muito importante na questão global da mudança climática. Ela deve ser não somente protegida, mas expandida de uma forma que a agricultura ao redor dela seja a agricultura que absorva o carbono. Temos um acordo global a respeito das práticas de agricultura e também a respeito da proteção das partes do planeta terra que funcionam como um pulmão da economia global. A Amazônia com certeza é essencial, e o que está acontecendo é terrível.
Por fim, a que se deve o retorno de governos protofascistas como os casos de Bolsonaro e Trump? No meu livro sobre as 17 contradições, eu termino com três delas que julgo fatais. A primeira é a da impossibilidade do crescimento exponencial infinito do capital; a segunda é a questão ambiental; e a terceira é aquilo que nós chamamos de “alienação universal”. É uma ideia compilada do que Marx desenvolveu em diversos contextos. Basicamente, nós nos sentimos separados e alienados de nós mesmos, do meio ambiente, do mundo ao nosso redor. Nós nos sentimos impotentes, nós sentimos que não há nada que possamos fazer para mudar o mundo. E populações alienadas tendem a se comportar de modo passivo, que não se importa com nada, que a política é horrorosa etc. A outra atitude é aquela que as pessoas ficam muito irritadas, elas vão para a rua e quebram tudo. Também é reação de uma população alienada, com um comportamento agressivo. Nos últimos trinta, quarenta anos, o neoliberalismo prometeu muito em termos de liberdade individual. Por um certo tempo, pareceu que o neoliberalismo continha algo como possibilidade de uma individualização e uma liberdade e que, ao mesmo tempo, iria trazer um desenvolvimento econômico positivo, saudável e robusto. Mas com a crise de 2007-08, começamos a perceber que essa liberdade só era oferecida para aqueles 1% mais ricos. O crescimento que havia sido prometido não se cumpriu. Houve uma perda de legitimidade do neoliberalismo. Havia tempo, eu achava que isso iria acontecer e que o neoliberalismo para sobreviver deveria incorporar formas autoritárias de governança. Os governos começaram a ficar mais autoritários e, nesse momento, as populações descontentes começaram a falar “bom, se a gente vai ter um governo autoritário, vamos ter então”. Daí, houve a abertura para movimentos fascistas e acho que Bolsonaro e Trump entraram nesse momento. E agora há esse crescimento global de governos protofascistas e autoritários, no mundo inteiro. E a culpa de todos os problemas é direcionada para, por exemplo, imigrantes e estrangeiros. Deram à população alienada a chance de expressar o descontentamento e o ódio por meio de comportamentos violentos contra as minorias e contra a esquerda. Esta tem um desafio real de “como lidar com as populações alienadas”, fornecer alguma saída e restaurar a relação com elas, no sentido de confiança na política para que possam ver na esquerda uma possibilidade. Estou otimista neste momento, não acho que Bolsonaro ou Trump irão durar. E vejo na Europa, na América Latina e no México um renascimento da esquerda. Porém, ela tem que voltar de forma diferente do passado. Isso diz respeito, especialmente a não se colocar como uma “elite intelectual”, para ditar as políticas para as massas. Uma organização, como o PSOL, que está baseado em movimentos de massa, é crucial. Não se deve perder a ligação com os movimentos sociais, mas vê-los como uma vanguarda que vai jogar luz no caminho a seguir. Não deveria falar contra a elite intelectual, pois sou um intelectual da elite, da esquerda. Ao mesmo tempo, sou a última pessoa que está buscando algum tipo de poder político. Não confiem em mim para esse tipo de tarefa.
‘’Populações alienadas tendem a se comportar de modo passivo, não se importando com nada e achando a política é horrorosa etc. A outra atitude é aquela na qual as pessoas ficam muito irritadas e vão para a rua quebrar tudo. Também é reação de uma população alienada, com um comportamento agressivo’’
‘’Eu estou otimista nesse momento e não acho que Bolsonaro ou Trump irão durar. E vejo na Europa, na América Latina e no México um renascimento da esquerda. Porém, a esquerda tem que voltar de forma diferente do passado’’