Leda Maria Paulani
Em meio a dias sombrios, de confinamento e impotência, é uma felicidade poder escrever sobre Celso Furtado (1920- 2004). É como se despertássemos de um pesadelo e pudéssemos voltar a sonhar. Mas ao mesmo tempo, o desalento e a tristeza nos invadem.
O que acontece com nosso país desde 2016 o está transformando no oposto daquilo que Celso Furtado esperava. Nascido há 100 anos, esse homem público de rara grandeza de espírito, jurista de formação, mas economista por opção, pensava que este florão da América não poderia ser pequeno. Para Furtado, um país qualquer, sem autonomia, geopoliticamente sem importância, esse destino tão mixo não combinava com a imensidão do território, a abundância de recursos naturais, o imenso mercado potencial do país.
No grandioso imaginário nacional de meados do século XX, era outro, sem dúvida, o futuro que para o Brasil se entrevia: o de um país forte, dono e senhor de seu destino, com economia e cultura próprias e com um lugar ao sol no comando dos rumos mundiais. E Furtado acreditava nesse destino. Mas acreditava também que, para efetivá-lo, seria preciso, durante algum tempo, preservar o país das forças cegas do mercado, completar o processo de industrialização, planejar a redução das desigualdades regionais e de renda, e fortalecer a sociedade civil no sentido da preservação das instituições democráticas. O golpe militar de 1964 foi um enorme banho de água fria nesse sonho, mas a esperança ficou com Celso Furtado até quase o final de sua vida.
Um encontro animador
Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente. Em 1997, com a Revista de Economia Aplicada dando os primeiros passos, o editor e colega, o professor Carlos Roberto Azonni convidou-me para entrevistar o grande economista. Numa iniciativa muito bem-vinda, o professor Azonni inaugurara na jovem revista uma seção chamada Como eu pesquiso, cuja finalidade era entrevistar grandes nomes da economia para que eles contassem de que modo haviam escrito seus livros mais famosos. No caso de Furtado, tratava-se, é claro, da Formação econômica do Brasil. Não é preciso dizer que fiquei felicíssima com o convite e aceitei na hora.
O caráter inequivocamente gratificante da tarefa, ficou-me evidente mesmo antes de ir ao Rio de Janeiro, em companhia do professor Armênio de Souza Rangel, também da Faculdade de Economia e Administração da USP, realizar a entrevista. Sabendo que eu iria, Celso Furtado disse a seu interlocutor (professor Roberto Smith, encarregado pelo professor Azzoni de contatá-lo) que ficava muito contente de que fosse eu uma das pessoas a entrevistá-lo. Quando o professor Armênio me pôs a par disso, fiquei espantadíssima, pois não fazia a menor ideia de que ele me conhecia. Depois de muito matutar concluí que ele guardara meu nome por conta da polêmica que, um ano antes, eu travara com Gustavo Franco (então diretor da área externa do Banco Central) nas páginas da Folha de São Paulo, acerca de um texto que ele escrevesse sobre a inserção externa do Brasil e que o presidente FHC tornara muito famoso ao dizer que, com ele, Franco “tinha feito a revolução copernicana na economia”.
O texto era um pastiche formalizado (ou seja, transformado em modelo matemático) das máximas neoliberais então em alta, e basicamente colocava no processo de substituição de importações e nas “veleidades nacionais” (essa preocupação com industrialização e com mercado interno, essa insistência em ter o Estado no planejamento e controle de tudo) como os grandes culpados pelo atraso do país.
Dado o tema e o contexto dessa polêmica, concluí que só podia ser essa a explicação do fato de Furtado, que dividia o tempo entre o Rio e Paris, conhecer o nome de uma professora de economia iniciante que ensinava em São Paulo, e de ter gostado de saber que eu iria entrevistá-lo. Concluí isso, mas fiquei sem saber se estava certa, pois não tive coragem de perguntar quando da realização da entre – vista, que foi interessantíssima.
Lucidez e esperança
Sua figura impressionava não só pela lucidez e raciocínio arguto, mas também pela esperança, que, apesar de tudo, continuava a demonstrar na realização, um dia, do futuro majestoso que julgava ser possível para o país.
Esperança, por sinal, foi o nome que o professor Luís Carlos Bresser Pereira decidiu colocar na coletânea de artigos por ele organizada sobre Celso Furtado por ocasião de seus 80 anos, completados em 2000 (A grande esperança em Celso Furtado, São Paulo, Editora 34, 2001). O professor Bresser me contatara em meados de setembro desse ano para saber se eu escreveria um artigo para esse livro que ele estava organizando. Claro que disse sim, pois teria até fevereiro do ano seguinte para escrevê-lo, mas me arrependi depois.
Antes que eu conseguisse levar a cabo a tarefa, a qual planejara para janeiro de 2001, veio o convite do professor João Sayad, meu colega de departamento na FEA, para assessorá-lo na Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, para onde ele iria a convite de Marta Suplicy (então no PT), recém-eleita prefeita da cidade.
Sabedora do tamanho do desafio que teria pela frente, pois pegaríamos as finanças municipais em difícil situação, depois de oito anos da dupla Maluf/Pitta, julguei que não teria condições de escrever o artigo. Minha intenção era conseguir terminar de ler a trilogia autobiográfica de Furtado, publicada alguns anos antes (Fantasia organizada, fantasia desfeita e Os ares do mundo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997) para melhor embasar minhas considerações sobre a obra e sua importância. Com aquele inesperado e gigantesco desafio pela frente, sem contar com as atividades na universidade (aulas, orientações) que não paravam, percebi que isso seria quase impossível, e escrever qualquer coisa eu não queria.
Tentei recusar, mas o professor Bresser não aceitou; deu-me um pouco mais de tempo, disse que fazia questão do artigo. Fiquei sem alternativa e me desdobrei trabalhando alguns fins de semana e noites a fio para conseguir terminar de ler a citada trilogia (leitura deliciosa, por sinal) e escrever algo que eu julgasse à altura do homenageado.
Melhores ideias
Editado o volume, tive uma recompensa muito maior por esse esforço do que a mera publicação de mais um artigo. Para minha surpresa, recebo um dia, pouco tempo depois do lançamento do livro, uma mensagem eletrônica de Celso Furtado, dizendo que tinha gostado muitíssimo de meu artigo e que, pela primeira vez, alguém tinha conseguido colocar, em cerca de 20 páginas, de uma forma sistematizada, todas as melhores ideias que ele tinha tido na vida. Vindo dele era um elogio e tanto.
Essa mensagem ficou como um troféu por muito tempo em meu computador, sem que eu tivesse a ideia de imprimi-la e guardá-la fisicamente. Em tempos em que se trabalhava com editor de mensagens e computação em nuvem ainda estava fora do horizonte, um belo dia, um vírus destruiu o HD da máquina e a mensagem se perdeu para todo o sempre no paraíso virtual, impedindo-me de comprovar a história. De qualquer maneira é com esse aval dado pelo próprio Celso Furtado, que vou tentar alinhavar, nos poucos parágrafos que me restam, a forma como conectei algumas de suas considerações teóricas, focando em seu diagnóstico de nosso país e nas possibilidades de sua construção como Nação.
Os anos na Cepal
Na Fantasia Organizada, Celso Furtado conta que “descobriu o Brasil” no final da década de 1940, escrevendo um ensaio que viria a ser publicado na Revista Brasileira de Economia e que daria origem, dez anos depois ao Formação. Já muito influenciado pelas ideias do economista argentino Raúl Prebisch (1901-1986), com quem viria a trabalhar na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e sem dar ouvidos à admoestação de Eugênio Gudin (1886-1986), que dissera que ele apelava demais para a imaginação em suas análises, e que deveria ter sido romancista, não economista, nosso autor estava então obcecado pela ideia de compreender o Brasil, particularmente as causas clamorosas atraso.
Mas, ao invés de trabalhar com a ideia prebischiana de periferia, Furtado optou por fazer a análise a partir da ideia de economia colonial, que lhe permitia inserir o país num quadro histórico. Assim, a famosa deterioração dos termos de troca, conceito chave da economia cepalina, vai aparecer como um corolário natural da vinculação metrópole-colônia, constituindo dessa forma um aspecto particular da tendência geral do capitalismo de concentrar renda. Ele já vislumbrava aí o famoso mecanismo de socialização das perdas, que marcava os períodos de contração cíclica de nossa economia, e cuja dinâmica ele vai detalhar na Formação. Mas o que ele descobre sobre o comportamento da economia brasileira nas fases de prosperidade tem talvez ainda mais importância: dada a elevada propensão a importar das camadas superiores, a demanda efetiva aumentada desses períodos, ao invés de reverter para dentro, gerando produto e emprego e elevando a renda monetária, vazava para fora, gerando uma pauta de compras e vendas externas e tudo favorável à perpetuação do mecanismo de transferência de renda ao exterior. De outro lado, a oferta de mão de obra fortemente elástica tampouco contribuía para o fomento ao mercado interno, pois, mesmo nos momentos de ascenso cíclico, os salários não cresciam.
Dinâmica aprisionada
Esses dois elementos percebidos por Furtado (a abundância de mão de obra e a propensão a importar das camadas superiores) compuseram um movimento que por longo tempo aprisionou nossa evolução econômica numa dinâmica determinada completamente de fora, pelo vaivém dos ciclos de exportação. Esse círculo vi – cioso só vai ser quebrado com a grande crise dos anos 1930, que coloca em marcha o processo de substituição de importações e faz a indústria crescer de importância, deixando de ser mero apêndice do setor primário-exportador. É só a partir daí, afirma Furtado, que se pode efetivamente falar em industrialização no Brasil.
É esse o Brasil que Furtado descobre, com sua economia nacionalmente constituída (a consolidação do mercado interno colara os cacos herdados de ciclos exportadores anteriores), com seu centro dinâmico deslocado de fora para dentro do país e com o vasto território economicamente integrado, graças à geração cada vez mais intensa de renda monetária em função do fortalecimento do mercado interno.
Jogou-se, a partir daí, no colo do país, a possibilidade histórica de se constituir como Nação soberana, já que o centro dinâmico da evolução material passara a ser a economia doméstica. Mas, coerente com a percepção de que o subdesenvolvimento é um tipo específico de desenvolvimento capitalista (e não uma etapa na história econômica dos países), Furtado considerava que, para essa possibilidade se transformar em realidade seria preciso planejadamente tomar as providências elencadas no início deste artigo: completar o processo de industrialização, planejar a redução das desigualdades regionais e de renda, e fortalecer a sociedade civil no sentido da preservação das instituições democráticas. Caberia a nossas elites dar conta dessa tarefa.
A construção interrompida
Mas a história não caminhou nesse sentido. As elites escolheram a tutela militar, que produziu um processo de crescimento econômico com retrocesso de desenvolvimento social, e depois disso foram seduzidas pelas promessas da globalização, e do discurso (neo) liberal que a acompanhou. Para Furtado, esse movimento viria interromper o processo de construção da Nação. Num pequeno livro lançado em 1992 (Brasil: a construção interrompida, Rio de Janeiro, Paz e Terra), Furtado escrevia: “Interrompida a construção de um sistema econômico nacional, o papel dos líderes atuais seria o de liquidatários do projeto de desenvolvimento que cimentou a unidade do país e nos abriu uma grande opção histórica”. Apesar de reconhecer “que o tempo histórico se acelera e que a contagem desse tempo se faz contra nós”, ele mantinha a esperança. Falava ainda em “projeto nacional” e se referia ao Brasil como um “país em formação”. É só no ano 2000 que Furtado parece finalmente ter sido tomado pelo desalento. Numa entrevista ao jornal Valor ele afirma: “Agora o Brasil chegou ao extremo (…) O triste é imaginar que um país em construção fosse entregue ao mercado.”
Furtado não viveu o suficiente para testemunhar o sucesso, ainda que temporário, de um projeto reformista que, a despeito de fomentar a riqueza financeira e andar na contramão do que ele prescrevia com relação à importância da indústria e à necessidade de reverter o desenvolvimento tecnológico dependente, ao menos buscou combater com vontade e perseverança a miséria e a desigualdade. Tampouco teve o dissabor de ver nossa democracia e as instituições erigidas pela alvissareira constituição de 1988 serem destruídas por um golpe jurídico-civil-midiático, que teve como consequência a ascensão de um governo protofascista, além de ultraliberal.
Furtado como todo bom nordestino, era antes de tudo, um forte. Mas se ele já estava desalentado pela entrega do país ao mercado, este último desfecho lhe causaria com certeza um desgosto infinito.