Alexandre Araújo Costa
Em dezembro do ano passado, aconteceu a COP21 (21ª “Conferência das Partes”), a cúpula da ONU cujo objetivo era elaborar um documento de acordo que tratasse da crise climática. Embora manifestações populares estivessem proibidas em Paris, às vésperas da Conferência centenas de milhares de pessoas foram às ruas de diversas cidades do mundo todo.
O acordo foi celebrado pelos “líderes mundiais” e até por parte do movimento social e ambiental. Mas se de um lado ele admite a necessidade de manter o aquecimento global “bem abaixo de 2°C”, reconhecendo os graves riscos apontados pelos cientistas, de outro, não há quase medidas práticas. Mas, afinal, o que de fato está em jogo?
Clima: maior e mais urgente desafio
Com 402 partes por milhão de CO2 na atmosfera, um aumento de 44% em relação aos tempos pré-industriais, uma quantidade formidável de calor equivalente à explosão de 4 bombas de Hiroshima a cada segundo tem se acumulado em nosso planeta.
As primeiras consequências desse processo já podem ser sentidas, especialmente em anos como o de 2015, quando esse calor, em grande parte estocado nos oceanos, é redistribuído no sistema climático terrestre. Além do recorde histórico de temperatura média global, uma onda de calor mortífera que vitimou quase 4000 pessoas na Índia e Paquistão, secas recorde da Califórnia à Síria e ao Nordeste brasileiro, a formação do Patrícia (maior furacão já registrado) e 22 furacões e tufões de categoria 4 ou 5 (superando de longe o recorde anterior, de 18 tempestades deste calibre em 2009). Registre-se: 2016 começou nessa mesmíssima balada.
Há um consenso científico nítido sobre as causas do aquecimento global: a junção de queima de combustíveis fósseis para geração de eletricidade e transporte; desmatamento; emissões da agropecuária (como a fermentação no processo digestivo dos rebanhos bovinos gigantescos); processos industriais, como a produção de cimento e gases de refrigeração. E há também uma forte concordância sobre o caráter extremo dos riscos envolvidos. Muitos cientistas são taxativos ao falar de riscos extremamente severos já com 2 graus acima das temperaturas pré-industriais, e mesmo da desintegração da civilização humana em cenários de aquecimento de 4 ou mais graus.
Mas aí é que o quadro se mostra no mínimo desolador. Em dois dos quatro principais cenários analisados pelo painel de cientistas organizado pela ONU (o tipicamente cauteloso IPCC), a mitigação é insuficiente. No pior deles, o de “business as usuais” (em que nenhuma medida é tomada e se continua a queima de combustíveis fósseis como se não houvesse amanhã), projeta-se um aquecimento planetário devastador de 4,5 a mais de 6 graus ao final do século XXI, com tendência a aquecer ainda mais. Somente um dos cenários nos dá boas chances de mantermos o aquecimento global dentro de limites seguros: nele, a maior parte dos modelos climáticos prevê um aquecimento entre 1,3 e 1,9°C ao final do século XXI, com indícios de estabilização das temperaturas médias globais em maiores não muito acima dessa faixa. Acontece que esse cenário, que recebe a nomenclatura de “RCP2.6”, demandava que as emissões de gases de efeito estufa tivessem praticamente se estabilizado em 2010 para sofrerem redução significativa a partir de 2020 e não inventaram máquina do tempo para corrigir o estrago que foi o aumento dessas emissões de 2010 até agora.
O motivo da “urgência urgentíssima”, portanto, é nítido. Deixamos as emissões crescerem demais, construímos uma base “produtiva” gigantesca para atender à hiper demanda de consumo, esmagadoramente dependente da queima de combustíveis fósseis como fonte de energia. A cada ano que adiamos o início das mudanças na matriz elétrica e de transporte, essas emissões, mesmo quando não crescem de um ano para o outro, se mantêm em níveis muito elevados, o suficiente para acumular 2 ppm de CO2 (ou mais) por ano. A mensagem que a comunidade científica envia há anos é direta: quanto mais alto esse pico de emissões, mais pesados terão de ser os esforços para puxá-lo para baixo; quanto mais demorarmos para iniciar esse processo, por conta do efeito cumulativo, menor será a janela de tempo que teremos para fazê-lo. Isso se essa janela não se fechar simplesmente, o que já está no horizonte das próximas duas décadas.
A COP21 não trouxe as respostas necessárias
Diante de um problema grave, não basta reconhecer sua existência. É preciso apontar claramente os caminhos para solucioná-los.
No caso da questão climática, é preciso em primeiro lugar incidir diretamente sobre as causas. Se é verdade que o documento de Paris menciona o desmatamento, é vergonhoso que ele não cite em nenhuma linha sequer a causa maior do aquecimento global, a queima de combustíveis fósseis e, obviamente, tenha eliminado a proposta de texto que indicada a “descarbonização” da economia como rumo necessário. Além do necessário fim do desmatamento (e replantio/recuperação de áreas de floresta e demais biomas), é necessário defender o fim do uso dos combustíveis fósseis. A ciência preconiza que, na verdade, 90% dos estoques certificados de carvão, petróleo e gás natural precisam permanecer intactos, a fim de que não tornemos a desestabilização do clima um processo irreversível. Isso pressupõe uma revolução no modo como geramos eletricidade, nos transportamos e até como nos alimentamos. Uma revolução cujas escolhas e tecnologias já estão à mão.
O segundo ponto é o do financiamento. O “fundo verde para o clima” de 100 bilhões de dólares proposto para 2025 é pífio, especialmente se compararmos com o insuspeito dado do FMI, recentemente divulgado pelo periódico britânico The Guardian, de que 5,3 trilhões de dólares em subsídios são transferidos anualmente para a indústria de combustíveis fósseis por meio de mecanismos variados: benefícios fiscais; garantia de preço e outros mecanismos monopolistas; pesquisa cientifica e desenvolvimento tecnológico; prospecção de jazidas e construção de infraestrutura física com recursos públicos; não-cobrança por impactos ambientais… Ou, se compararmos com os 40 trilhões estimados como investimentos necessários para promover a transição energética global em sua plenitude.
Sem operar sobre as causas, o Acordo de Paris é virtualmente inefetivo. Aposta nas intenções, na sorte, em algum improvável milagre tecnológico ou em alguma solução mirabolante a gosto do grande capital, do tipo geo-engenharia que, em todos os estudos científicos sérios realizados até agora, tem se mostrado um remédio tão danoso quanto a doença. Daí, é preciso desvendar o que está realmente por trás da incapacidade das COPs em apresentar saídas efetivas para a crise climática.
O domínio do capital está eliminando as possibilidades de reestabilizar o clima
A expansão do capitalismo no século XXI e a pegada brutal do neo-extrativismo têm levado a conflitos territoriais. O crescimento do capital requer mais espaço tanto para obter novas matérias-primas, minérios, combustíveis etc., quanto para dispor seus rejeitos. E isto inclui o “direito” pretendido pela indústria fóssil de tratar a atmosfera como esgoto a céu aberto, em lado oposto ao direito, este sim legítimo, de mantermos sua composição química como condição para a estabilidade climática e para a própria saúde humana. A atmosfera da Terra, como terrenos na zona costeira, como as florestas, como o local habitado por povos indígenas e comunidades tradicionais, virou território em disputa.
Segundo o “ranking” da Fortune, das 12 maiores companhias do mundo em faturamento, nada menos que 8 atuam no ramo petroquímico (com as duas estatais chinesas equiparando-se ou até superando as 4 irmãs: Shell, Exxon, BP e Chevron). Somam-se a elas a empresa chinesa de energia (ligada às termelétricas a carvão) e duas montadoras de automóveis. São dados que demonstram a dominância da indústria de combustíveis fósseis na base “produtiva” do sistema capitalista, que, como se sabe, é estreitamente vinculado ao setor financeiro e aos bancos. O faturamento anual de cada uma dessas companhias é comparável ao PIB de países como Áustria ou Argentina.
Numa situação em que as corporações detêm um poder econômico descomunal, influenciando diretamente as políticas dos estados nacionais, o mecanismo proposto de solução da crise climática, de Contribuições Pretendidas Nacionalmente Determinadas (Intended Nationally Determined Contribution, ou INDCs), mostra-se pífio. Segundo esse mecanismo, os países voluntariamente apresentam metas de redução das emissões, mas o próprio documento da COP21 “reconhece com preocupação” que “os níveis de emissões agregadas de gases de efeito estufa em 2025 e 2030 resultantes das contribuições pretendidas nacionalmente determinadas” não estão dentro de cenários compatíveis com o objetivo de limitar o aquecimento “bem abaixo de 2°C”, chegando a mencionar o balanço de carbono apropriado.
Resumo da ópera: enquanto o comércio internacional é estritamente normatizado a partir de regras rígidas, e a Organização Mundial do Comércio e outras entidades preveem penalidades severas contra os Estados nacionais que a descumprirem, quanto ao clima, esses mesmos Estados têm “liberdade” (na verdade, atendem ao lobby do grande capital) para apresentar metas que, em seu conjunto, não fecham a conta… e ninguém está sujeito à menor sanção que seja, mesmo que opte deliberadamente por manter uma rota irresponsável de elevadas emissões, como nos casos da Rússia, Japão, Austrália e Canadá, para citar apenas alguns que conseguiram a façanha de apresentar metas ainda mais tímidas não só do que a União Europeia, mas até que China e EUA.
A demanda de lucro das petroquímicas e demais empresas ligadas aos combustíveis fósseis, bem como dos bancos a que estão associadas, é a prima-irmã da irracional demanda de energia e matéria para produção em larga escala de produtos descartáveis, fúteis, cuja obsolescência é programada. A espiral de acumulação capitalista está intrinsecamente ligada a tragédias como o vazamento de óleo da BP no Golfo do México, a destruição do delta do Niger pela Shell, a catástrofe de Mariana e do Rio Doce, o iminente caos climático global. Em outras palavras, só é possível salvar o sistema climático terrestre e evitar o aprofundamento da crise socioambiental em escala planetária incidindo sobre a base da matriz energética de todo o sistema econômico vigente.
Clima não rima com lucro. Por isso, é ao mesmo tempo estranho e lamentável que boa parte da esquerda não tenha acordado para a urgência e relevância da questão. Que permaneça presa a ilusões de progresso, produtivismo e crescimento econômico indefinido e não perceba que é preciso revolucionar das relações humanas às próprias forças produtivas, inspirando-se na própria natureza como exemplo de processo produtivo fechado, de ciclos e fluxos. Se não somos algo à parte, mas elemento integrante desta natureza, precisamos entender que não poderá haver socialismo em terra arrasada.
Alexandre Araújo Costa é Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará e militante do PSOL.