Guilherme Prado Almeida de Souza
Na batalha contra o covid-19, enquanto as figuras políticas de alto escalão do sistema desejam criar um Leviatã sanitário como bem classifica a socióloga argentina Maristella Svampa, na busca por devolver uma situação de estabilidade para o sistema, algo impossível, nossa tarefa deve ser diferente. É preciso situar a importância do covid-19 como resultado e como ponto agravante de dois problemas que o atual sistema histórico em declínio enfrenta em sua dissipação. Ambos se denominam os limites do crescimento capitalista e seus limites ecológicos. Ao fazê-lo temos mais possibilidades de eleger reais alternativas sistêmicas.
Os limites do crescimento capitalista e a emergência do capitaloceno
Revisitando os “peakists”, como Richard Heinberg, intelectuais que consideram os picos de recursos e limites ecológicos em suas análises, lembramos que as possibilidades para a volta do crescimento estável como nos ditos “anos dourados” do século XX, parecem acabadas. Podemos elencar principalmente três dos limites para o crescimento tal qual conhecíamos:
O esgotamento de recursos minerais e fósseis ou escassez de suas fontes de fácil extração (que são mais rentáveis), além da instabilidade nos preços dessas commodities. Mercados tranquilos e que favorecem o crescimento “sustentável” são aqueles nos quais os preços sobem devagar.
A proliferação de impactos ambientais negativos devido à exaustão dos ecossistemas, o que consumirá cada vez mais o orçamento dos Estados e a produtividade das empresas. Os EUA desde 1980 possuem gastos com desastres climáticos que excedem US$ 1.1 trilhão. Só no ano de 2016, foram gastos US$ 46 bilhões.
Crises financeiras, como a que aconteceu em 2008. Elas poderão ser motivadas inclusive por fenômenos climáticos, como o relatório “The Green Swan”, de atores desse mercado. Como tais afirmações antecipam, estamos também diante de limites ecológicos, como:
. A maior taxa de perda de biodiversidade já registrada.
. Os impactos do aquecimento global que mata, por exemplo, 5 indianos por dia em eventos relacionados às chuvas.
. A queda generalizada de 23% da produtividade das terras agricultáveis no mundo.
. Uma pegada ecológica global de 1,75, ou seja, que torna necessário quase dois planetas por ano para sustentar o atual metabolismo econômico.
Tal cenário crítico fez o geógrafo britânico Jason W. Moore afirmar estarmos diante do capitaloceno, era geológica na qual as forças produtivas do capitalismo forças destrutivas, como diz Michael Löwy, alteram o destino da vida na Terra. Ele inclusive complementa a teoria criada pelo grande sociólogo Immanuel Wallerstein, dizendo que não há apenas um sistema mundial com uma economia regente, há também uma ecologia-mundo. Vermos ecologia e economia em unicidade nos ajuda a entender melhor a atual crise.
Covid-19: um vírus que piora os sintomas do Capitalismo
Em ligação com essa perspectiva, o marxista argentino Enrique Dussel defende que dentro desse cenário dramático, o coronavírus inaugura um momento único. Seria a primeira vez na história de 300 mil anos do homo sapiens que todas as sociedades do mundo se concernam ao mesmo tempo sobre o mesmo acontecimento, com tamanho grau de mobilização e impacto econômico.
Isso revela o lado nefasto e regressivo da globalização criada pela modernidade capitalista. Ela exporta cada vez mais rapidamente prejuízos, doenças, desemprego e perdas para a maioria. Consequentemente, não é culpa de nossos coabitantes da terra o fato de 70% das novas doenças em humanos terem origem animal, mas do sistema histórico que nos rege.
Do ponto de vista ecológico, portanto, essa é mais uma das epidemias zoonóticas que se somam à gripe aviária, suína, e tantas outras decorrentes, dentre outros motivos, do modo capitalista industrial de produzir, e de nossa intrusão ou destruição dos ecossistemas de animais silvestres. Esses espaços se encontram cada vez mais restritos pela urbanização ou expansão das fronteiras das commodities.
Nesse sentido, estudos mostraram que o surgimento do ebola, por exemplo, está relacionado com os morcegos. Esses animais, também ligados a outras epidemias, já voam para as cidades em busca de comida devido ao desmatamento de suas florestas, entrando em contato com seres humanos. Assim, como nos antes raríssimos extremos climáticos, as epidemias graves têm se tornado cada vez mais comuns e letais. Apesar de tudo isso, de Alberto Fernndez, na Argentina, a López Obrador, no México, provavelmente não apareceu nenhuma palavra sobre a questão ecológica até agora.
Nascido na China, o coronavírus resultou em medidas drásticas do governo local, visando isolamento social e fechamento de empresas. Uma das consequências foi a redução da poluição do ar, o que pode ter poupado cerca de vinte vezes mais vidas do que as perdidas pela doença. Esses dados mostram que, longe de dizer que o vírus tenha impacto ambiental positivo, o caos sistêmico já estava instalado muito antes de seu primeiro caso ter sido constatado.
Na questão mais estritamente econômica, ele acentua as tendências já mostradas antes de sua ascensão. Para a pesquisadora estadunidense Gail Tverberg, que há tempos estuda as taxas declinantes do crescimento econômico, se a redução na produção do petróleo já foi de cerca de 1,6% em 2019, o impacto do vírus pode ser muito mais terrível do que estamos vendo.
Queda dos preços do petróleo
Em pouco mais de dez anos o petróleo bateu seus mais altos índices de preço da história (US$ 147 por barril em 2008), e também os mais baixos, chegando recentemente a preços negativos. Tamanha.
instabilidade pode tornar a produção em alguns lugares um total prejuízo, além de levar produtores até a desativar poços. Tal quadro tornaria ainda mais complicado o casamento entre oferta e demanda. Como estamos diante de um capitalismo fóssil, onde grande parte dos bens e serviços que acessamos para sobreviver é profundamente dependente de energia suja, essa instabilidade deve levar a grandes impactos.
Se antes muitos economistas analisam uma crise financeira, a queda ainda maior do crescimento, ou mesmo o encolhimento da economia mundial, tornará insolúvel o mercado financeiro. Somando-se ao endividamento das famílias e empresas, teremos pilhas de dívida estatal ainda maiores, feitas para combater os impactos do coronavírus.
No terreno social, vemos a incapacidade dos sistemas de seguridade em lidar com o novo cenário de crises e pandemias constantes que enfrentaremos. Os benefícios geralmente são cedidos apenas mediante a alguma condicionalidade às pessoas, sejam elas contribuintes ou pobres o bastante. É por isso que o debate sobre renda básica deve se manter para além da atual crise, tendo em vista superar o falido Estado de bem-estar social.
Nos EUA, um chefe executivo regional do FED diz que os níveis de desemprego podem chegar a 30% e o PIB cair incríveis 50%. Muito menos que isso já tornaria possível uma depressão bem mais séria que a de 1929, quando a economia mundial era muito menos globalizada.
Mas o que isso tudo representa, sabendo-se que ondas de coronavírus podem manter em alguma proporção parte do isolamento e do fechamento de empresas até 2022?
Crescimento contínuo
A atual economia é feita para não parar de crescer. Assim, paradas intermitentes se tornam caóticas. Se olharmos para o caos global, constatando que o desabastecimento de máscaras produzidas na China ou o de cartelas de ovo na Inglaterra são resultado de uma globalização nefasta, tiraremos algumas lições. Talvez uma economia viciada em dogmas como eficiência e escala, onde mais segurança consiste em maior produção e produção concentrada em um local com menos custos, terá que dar lugar a resiliência em comunidade e diversidade produtiva local.
Os tempos de coronavírus nos darão mostra de que conexões locais e circuitos cooperativos e solidários terão maior capacidade de absorção de choques que esta velha economia nos dá. Talvez estejamos diante de um fenômeno maior, de uma grande transição sistêmica que só nos daremos conta mais adiante. Resta-nos construir o caminho para o lado mais democrático e igualitário na bifurcação diante de nós.