Gonzalo Berrón
Tenho 47 anos e nasci na cidade de Santa Fé, Argentina. Foram vários os ciclos políticos que me coube vivenciar desde que ouso dizer, tenho consciência política. Passei pela redemocratização (1983), pelo menemismo (1989-99), pelo impasse da Alianza/De la Rúa (1999-2001), pelo kirchnerismo (2003-15) e, agora, por essa lenta agonia do fraco “macrismo”. Foram ciclos díspares, três deles de euforia e desencanto: as promessas frustradas da redemocratização e a saída apressada de Raúl Alfonsín (1989); os “espelhinhos coloridos” do neoliberalismo menemista; e a dramática saída da conversibilidade com mortes e o final de Fernando De la Rúa fugindo de helicóptero da Casa Rosada. Mais uma década perdida, diriam após o término do interlúdio aliancista.
Depois, uma novidade: a tentativa de remediar as dívidas sociais e econômicas das duas décadas perdidas e de lidar com frustrações democráticas em relação à justiça e à história argentina. Foram os tempos de Néstor e Cristina Fernández de Kirchner, ciclo que não acabou em desencanto é importante dizer que diferentemente dos dois primeiros, o ciclo do casal K não acabou em frustração, mas sim em polarização política e grieta. Trata-se de palavra em espanhol que significa fenda, fissura ou fosso usada para denominar as manifestações cotidianas dessa polarização.
Conflito de classe
Trata-se de uma aberta divisão social e conflito de classe, recriando, por assim dizer, a velha antinomia da política argentina entre simploriamente “peronistas” e “gorilas”. Ou seja, há uma recriação da amálgama dos três peronismos definidos pelo sociólogo Ricardo Sidicaro (o das elites políticas, o dos sindicatos e o da juventude). Ela se materializa na oposição entre Néstor e Cristina, duas lideranças de poderoso carisma, versus a velha e sempre recriada aliança entre elites econômicas (majoritariamente agropecuárias e financeiras) e os setores médios que perderam com o ciclo redistributivo dos governos Kirchner.
É grande o contraste com o ciclo atual de Mauricio Macri. Temos um período que, segundo as pesquisas, parece desembocar no tom de “frustração” ou desencanto como nos dois primeiros ciclos da era pós-ditadura (Menem e De la Rúa). Se isso significará ou não a volta de Cristina e a extensão, em consequência, das políticas soberanistas, só as urnas de outubro dirão.
Analiso, a seguir, três dimensões (econômica, política e social) interligadas da realidade Argentina. Tento compreender o teor do problema atual e avaliar possíveis caminhos, assim como os impactos que podem ter para a região e para o Brasil, em particular, de uma perspectiva de construção do campo popular.
- Economia
Mauricio Macri chegou à presidência da Argentina com um discurso abertamente neoliberal e de crítica aos pilares da gestão econômica kirchnerista, baseada no que aqui chamo de soberanismo. No jargão dos economistas, isso significa um conjunto de medidas heterodoxas inspiradas por um desenvolvimentismo nacional com forte preocupação social (na Argentina, diferentemente do Brasil, o elemento ambiental ainda é menos desenvolvido).
O final do período CFK, há quatro anos, coincide com a aceleração da recessão nos países da região, queda dos preços das commodities e dificuldades para recuperar níveis sustentáveis de crescimento econômico, forte pressão cambial, ameaças de inflação e desaceleração econômica em geral.
O novo presidente, eleito pela legenda Cambiemos, prometeu a redução das “retenções às exportações” (eliminar o imposto de exportação de trigo, milho e carne e reduzir de 35% para 30% o da soja), a liberação do câmbio, a negociação com os “fundos abutres” (Lei nº 27.249) e a “volta da Argentina ao mundo”. Além disso, alardeou a eliminação de entraves para as importações, o fim dos subsídios aos serviços públicos e a criação de um ambiente favorável para uma onda de investimentos externos no país. Macri prometeu e cumpriu.
Porém, as medidas não deram certo e as garantias oferecidas ao capital para ir à Argentina nunca foram suficientes para reativar a economia.
Fracasso do receituário
Se há uma coisa que a Argentina de Macri prova é que o receituário neoliberal de desregulação e de Estado mínimo fracassa na tentativa de redinamizar uma economia. O panorama se vê agravado por serem medidas de altíssimo custo social que, no caso, não foi compensado pelo suposto crescimento sistêmico da economia.
No início do mandato, a transição para um regime de câmbio flutuante significou uma primeira desvalorização do peso argentino da ordem de 30%. Em 2018 uma nova crise cambial produziu uma queda recorde do peso, de cerca de 50%. A corrida contra a moeda nacional só foi detida mediante a queima de reservas pelo governo e, finalmente, a entrada vigorosa do FMI com um empréstimo stand by ou seja, com as tradicionais condicionalidades do Fundo de U$56 bi, o maior da história do FMI.
Indicadores preocupantes
Ao mesmo tempo, e como parte do círculo vicioso que a desvalorização gera, os índices de inflação medidos pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) cresceram de 24% ao ano em dezembro de 2017 para 54% registrados em março de 2019. O risco país do JP Morgan chegou, em abril passado, a 1100 pontos, até se estabilizar em 900. Isso implica que a colocação de títulos da dívida argentina em dólares paga um juro anual de mais de 12%, uma cifra estratosférica. O risco país só é superado, na região, pelo da Venezuela. O do Brasil é de 252 pontos.
As únicas medidas que aumentaram a entrada de capitais e não necessariamente para investimentos produtivos foram as de “branqueamento” de capitais de origem argentina não declarados no exterior, mediante uma lei específica aprovada em 2016 (Lei nº 27260).
Ou seja, a economia argentina mais uma vez entra num caos e apresenta pouquíssimas ferramentas para uma virada.
Ao que tudo indica, segurar o dólar com base nas reservas cambiais mostra-se arriscado, pois o volume disponível não é alto e o dinheiro do FMI opera só como garantia. Vale frisar que 2020 será um ano de pagamentos bilionários de dívida.
Na instabilidade, só capitais especulativos têm lucros inéditos em dólares. Investimentos produtivos acabaram nunca chegando à Argentina, apesar das medidas que visaram favorecê-los às custas da capacidade do setor público em traçar políticas e do empobrecimento geral da população.
- Situação social
Recessão econômica mais inflação formam o coquetel perfeito para o aprofundamento da pobreza e para a piora das condições dos já pobres. Entre 2016 e 2018, segundo o Indec, a população que se encontra abaixo da linha de pobreza passou de 21,5% para 23,4%. A indigência passou de 4,5% para 4,8%. Isso significa que quase 11 milhões de pessoas não têm rendimento domiciliar suficiente para cobrir necessidades mínimas de alimentação, moradia e vestimenta (linha da pobreza) ou nem conseguem ter uma renda que satisfaça as necessidades alimentares básicas. O desemprego foi de 7,2% em 2017 para 9,1% no final de 2019, quase a mesma proporção dos subempregados, que passaram de 10,2% para 12%.
Em termos de salários, a população perdeu poder de compra efetivo. Na comparação anual entre fevereiro de 2018 e fevereiro de 2019, os salários cresceram em uma média de 34,6%, contra 50% de inflação, uma diferença significativa de pouco mais de 15 pontos porcentuais (Indec fev/2019).
O desafio da pobrez
No ano final do mandato, Macri, que prometeu “pobreza zero” na campanha de 2015, enfrentou um tremendo desafio. Nos primeiros tempos do governo, ele explicou a situação crítica das condições socioeconômicas como produto da herança de “70 anos de estatismo louco” e, na metade do mandato, atribuiu-as a choques externos. Segundo uma pesquisa recente, 72% dos entrevistados consideravam que as causas da atual crise são locais e, apenas, 6% externas.
Como assinala Monica Hirst, brasileira e professora da Universidade Nacional de Quilmes, o “desdém” das elites locais no contexto de condições macroeconômicas desastrosas soma-se a uma concepção de política social limitada à operação do Ministério do Desenvolvimento Social e à perda de relevância de áreas como, por exemplo, o Ministério do Trabalho ou as áreas de Saúde e Educação. A resolução da “questão social” é transferida para os governos subnacionais, segundo afirma Roxana Mazzola, da Flacso.
Macri reduziu a destinação de verbas para obras públicas nas províncias de U$ 407 per capita na era Cristina, para U$ 216 até o terceiro trimestre de 2018, quando o montante caiu para U$ 123. A Capital Federal berço político do presidente foi a mais favorecida, assim como as províncias governadas por seu partido. A população tem sido exposta a uma onda de pobreza e sofrimento social comparável ao fechamento do ciclo menemista e do caos final do governo De la Rúa.
- Política
Este é mais um ano quente na política argentina. O calendário eleitoral espalha-se ao longo do ano e inclui disputas para governador em todas as províncias e para chefe de governo na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Haverá eleições gerais em 27 de outubro o que inclui a presidencial. O segundo turno é previsto para 24 de novembro.
Em todos os cantos do país, a coalizão governista do Cambiemos (Proposta Republicana/PRO, União Cívica Radical/ UCR, e Aliança Cívica, o partido da Deputada Lilita Carrió) colocará à prova o que parecia há pouco tempo uma hegemonia crescente. Nos pleitos eleitorais decisivos até hoje, cambiemos acumulou uma série de vitórias que a consolidaram como força nacional estável.
Depois da vitória de Macri em 2015 sobre Daniel Scioli, o candidato do peronismo/ kirchnerismo, o Cambiemos atingiu um novo patamar político em 2017, ao derrotar a própria Cristina. Ela era a grande figura na eleição legislativa na província de Buenos Aires, o maior distrito eleitoral da Argentina, pela qual se elegeu senadora nacional, cargo que ostenta até à atualidade. Até 2017, o macrismo conseguiu manter a ideia de que a pobreza e a crise econômica ainda faziam parte da pesada herança dos governos K.
Enquanto isso, o kirchnerismo atravessava o período mais turbulento da história, tendo a quase maioria das principais lideranças, incluindo Cristina e a família K, sendo objeto de inúmeros processos judiciais por corrupção ou problemas derivados da gestão.
Peronismo dividido
E o peronismo segue dividido atrás da figura de CFK, seja pelas contradições com algumas das lideranças provinciais, seja por diversos rachas enfrentados ao longo da gestão. O mais importante deles é encabeçado pelo ex-ministro Sergio Massa (Frente Renovadora) e pela curiosa divisão do peronismo na província de Buenos Aires, na qual Cristina participou das eleições na chapa de um partido novo, chamado Unidad Ciudadana, enquanto a Frente Justicialista foi como tal, com o candidato Florêncio Randazzo (Cristina obteve 37%, Randazzo 5% e Sergio Massa 11,3%).
Segundo o professor Juan Carlos Torres, assim como em outros momentos-chave da história argentina, “desde 2002 o peronismo se comportou quase como um subsistema político”. Ou seja, o conflito político geral se equacionava dentro do “movimento” que o peronismo sempre foi.
No entanto, apesar dos inúmeros esforços sistêmicos para eliminar a ex-presidenta do mapa que envolvem como no Brasil um papel ativo da Justiça, ela tem demonstrado uma resiliência eleitoral extrema. A aparente dispersão peronista poderá se resolver via um novo alinhamento político em torno da candidata.
A saída de Cristina da Presidência e do peronismo do poder representou de alguma forma seu fracasso para garantir a continuidade do projeto. A ausência de Néstor como o grande articulador, as condições frágeis de saúde dela no fim do mandato e a perda de figuras de peso são causas e sintomas da crise da coalizão.
Transição de lideranças
Muitos concordam que a transição de Cristina para outra liderança identificada com o kirchnerismo não foi bem-sucedida. A figura de Daniel Scioli ex-vice-presidente, ex-governador da província de Buenos Aires e candidato derrotado em 2015 – nunca conseguiu transmitir o engajamento genuíno com o campo peronista. É bom lembrar que Scioli entrou na política a convite de Carlos Menem, nos anos 1990. Scioli não representava nitidamente nem o kirchnerismo nem o peronismo, o que tornou as chances de vencer Mauricio Macri uma missão impossível.
Por enquanto, parece muito difícil quebrar a polarização eleitoral, mas também social e política que divide a Argentina. A Frente Progressista de Santa Fé, que há quase duas décadas se mantém à margem dessa disputa e que já apresentou Hermes Binner como candidato a presidente, não consegue sair da província e ganhar dimensão nacional. A novidade parece ser, neste 2019, um fortalecimento da figura do economista Roberto Lavagna, ministro das Finanças na gestão Néstor Kirchner que conseguiu trazer a economia argentina de volta para os trilhos. Mas sem estrutura e carisma, é provável que não consiga passar para o segundo turno. A Frente de Izquierda y los Trabajadores (FIT), que juntou os trotskistas do Partido Obrero (PO), a Esquerda Socialista e o Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS), mesmo tendo uma atuação melhor do que em outras épocas, ainda não consegue sair de patamares eleitorais muito minoritários.
A Argentina perene
Para alguns, a saída política da Argentina deveria se situar na quebra da polarização entre Macri e CFK. Para estes, Roberto Lavagna é visto como a única liderança capaz de unir elementos dos dois lados da “grieta” e transitar para um governo de pacto nacional.
A Argentina perene, porém, não parece abrir mão do DNA e teima seguir na velha polarização. Para este humilde observador, as transformações estruturais, à esquerda e à direita, sobretudo aquelas que acarretaram benefícios para as maiorias sociais, deram-se como produto da amálgama política tecida dentro do “movimento peronista”. Entendo que é nesse polo da equação, abonado com as vozes mais genuínas do pensamento e da ação social, que há maiores chances de a Argentina recuperar estabilidade, crescimento e justiça social.