Por Ingrid Ribeiro
Diante da crise sanitária que atingiu o mundo no início deste ano, as atividades escolares presenciais foram suspensas em diversos países do mundo. Segundo dados da Unesco, cerca de 90% da população estudantil mundial foi atingida pelo “fechamento” das escolas1 durante a pandemia. No Brasil, o primeiro caso do novo coronavírus foi notificado em fevereiro e as escolas tiveram suas atividades presenciais suspensas em março, como parte do isolamento, que interrompeu a realização de diversas atividades presenciais, para conter a propagação do vírus.
O denominado ensino remoto foi adotado para minimizar os efeitos da suspensão das atividades escolares presenciais por muitas redes de ensino públicas e privadas. Entretanto, algo que era provisório já ultrapassa seis meses em alguns estados. As medidas de isolamento para contenção do vírus, embora tenham sido importantes, não deram conta de conter a contaminação que continua alta em nosso país, em parte devido à falta de políticas públicas que amparem os trabalhadores para um maior isolamento.
Diante da problemática econômica, os estados fizeram um processo de reabertura precipitado, que culminou num platô epidêmico alto, fato que tem dificultado a queda no número de casos, condição fundamental para reabertura das escolas, critério utilizado em vários países.
Atividades remotas
As atividades remotas que iniciaram como uma proposta para minimizar os efeitos da suspensão das aulas presenciais, hoje, são consideradas por muitas redes de ensino para o cumprimento do ano letivo. Mesmo sendo de conhecimento das autoridades governamentais que o Brasil enfrenta um problema significativo na questão do acesso à internet, o ensino remoto foi amplamente implementado por estados e municípios de todo o país.
Segundo dados da Pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação2 , no Brasil 58% dos domicílios não possuem computador e 33% não têm acesso à internet. Esses números não podem ser ignorados frente à implementação de forma maciça do ensino a distância no país, haja vista que uma parcela significativa da população está sendo excluída dessas atividades. Isso é evidenciado durante as aulas remotas das redes públicas de ensino, que de forma geral atingem menos da metade dos alunos matriculados nas escolas
Além disso, o “fechamento” das escolas evidenciou a miséria que atinge a infância e a juventude no país, sendo divulgado amplamente o que os professores já sabiam: muitos alunos, sobretudo das zonas periféricas, têm a merenda escolar como sua principal fonte de alimentação. Um dos grandes desafios dos estados e municípios nesse período tem sido suprir essa demanda alimentar, alguns optaram pela distribuição de cartões alimentação, outros pela distribuição de cestas básicas, mas de forma geral não conseguiram atingir a totalidade dos alunos.
Infância e austeridade fiscal
A ausência de políticas para a infância ficou nítida na pandemia. Desde 2016, com o processo de aceleração na implementação de políticas de austeridade, a queda significativa na renda, o crescimento do desemprego, as condições de vida de crianças e jovens pobres pioraram significativamente.
Infelizmente, as aulas remotas têm funcionado como um elemento que aumenta as desigualdades educacionais no país, pois o direito à educação está sendo negado a uma parcela significativa da população. Enquanto alguns seguem tendo acesso a atividades escolares, outros permanecem excluídos desse processo. Embora o ensino a distância não possa substituir o processo educativo presencial, é possível que a não participação nas atividades remotas prejudique ainda mais os alunos pobres.
Se por um lado, os alunos das escolas públicas enfrentam o problema do acesso às atividades escolares não presenciais, o que compromete o direito constitucional à educação, na rede privada os alunos vivenciam outro extremo. As aulas a distância seguem em ritmo acelerado, evidenciando o caráter mercadológico da educação, pois os mantenedores dessas instituições precisam justificar ou garantir o pagamento das mensalidades mesmo com as escolas “fechadas”.
Além de aulas em período regular, expostos à tela dos computadores durante horas, tabletes e celulares, os alunos do ensino privado seguem a rotina frenética de verificações de aprendizagem que buscam legitimar o ensino a distância.
Professores na pandemia
Em meio a esse contexto, encontra-se o professor, profissional que historicamente já vivia um processo de desvalorização e que durante a pandemia teve que se adaptar a uma nova forma de trabalho e arcar com os custos de todo esse processo.
om os custos de todo esse processo. Enquanto profissionais da iniciativa privada de setores diversos receberam algum respaldo para o trabalho em casa, os profissionais da educação, seja na rede pública ou privada, na maioria das vezes, tiveram que arcar com todos os custos da transição para o ensino remoto.
O acesso às plataformas educacionais foi realizado por meio de equipamentos e conexão próprios. Segundo a pesquisa da CNTE/Gestrado3 , que entrevistou 15.654 profissionais da educação básica de rede públicas de ensino, apenas 28,9% dos professores que responderam afirmaram ter facilidade no uso de tecnologias digitais.
A precarização da profissão docente durante a pandemia foi intensificada. Distantes fisicamente das escolas, os professores não cumprem mais um horário definido de trabalho e de forma geral ficam integralmente à disposição das atividades profissionais, em atendimento aos pais e no esclarecimento de dúvidas aos alunos. Na rede pública essa realidade é mais evidente, pois parte das famílias só possuem o celular dos adultos, que durante o dia estão no trabalho, restando apenas o período noturno para alguma interação com os professores.
Algumas redes de ensino optaram pela entrega de material imprenso para os alunos que não possuem acesso à internet, restando apenas o whatsapp pessoal do professor para essa interação com as famílias.
Ensino mercadoria
Nas escolas particulares, os docentes também vivem um processo parecido, com jornadas exaustivas de trabalho, ameaças constantes de desemprego e, em alguns casos, redução salarial e perda de benefícios.
A educação como negócio ficou evidente durante o ensino remoto. Oferecer conteúdo e atendimento constantes às famílias virou uma necessidade para garantir o pagamento das mensalidades durante a pandemia.
O atual contexto exige lembrarmos a célebre contribuição de Antônio Candido em seu artigo, A estrutura da escola4 , no qual argumenta que a escola não pode ser resumida à organização racional e consciente, pois ela tem uma dinâmica própria, fruto das interações que acontecem em seu interior. A escola se constitui pela e na relação entre de seus membros, pelos processos de socialização, fundamentais para a aprendizagem e formação dos alunos, portanto, o ensino remoto é incapaz de substituir os processos educativos que acontecem na escola.
Além de toda a problemática das questões pedagógicas, as condições do trabalho docente, a infraestrutura das escolas, as condições de saúde de professores e profissionais da educação viraram centro do debate nas discussões acerca do retorno presencial às aulas. Pois, retornar à escola que existia antes da pandemia não é possível, sob pena de ampliação do contágio pelo coronavírus, sendo urgente alterações na infraestrutura das escolas públicas e privadas do país.
Aulas e contágio
Com exceção das escolas particulares da elite, que possuem número reduzido de alunos por sala e infraestrutura adequada para o ensino, as escolas públicas e particulares que atendem a classe média possuem problemas estruturais e o número de alunos por sala não é condizente com as necessidades impostas pela pandemia.
Retornar para as escolas sem a segurança sanitária representada pela queda significativa do número de casos e mortes, e sem alterações na infraestrutura e no número de alunos por sala, pode representar risco para estudantes e, principalmente, para professores. Entretanto, redes públicas de ensino têm focado o processo de retorno em parcerias com agentes do setor privado que insistem em pautar o retorno às aulas em processos de acolhimento e amparo psicológico. Claro que essas questões são importantes, mas sem melhorar a infraestrutura das escolas e diminuir a quantidade de alunos por sala de forma definitiva e não apenas transitória, tais medidas soam como ilusórias e desconsideram a realidade. E, por fim, diante de toda a complexidade deste momento, é necessário que os professores façam parte dos debates sobre retorno e da elaboração dos protocolos para a volta às aulas, pois são eles que conhecem a realidade das escolas e que estarão na linha de frente de todo esse processo.
Ingrid Ribeiro é professora da Educação Básica e membro da Rede Escola Pública, Universidade e da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação.
1 Dados disponíveis em: https://unesdoc. unesco.org/ark:/48223/pf0000373275_ por?posInSet=1&queryId=f5e77daf-4788-48e3- 8d17-8e13b634dfa6
2 Dados disponíveis em: https://www.cetic.br/ pesquisa/domicilios/
3 Pesquisa disponível em: https://gestrado.net. br/wp-content/uploads/2020/08/cnte_relatorio_ da_pesquisa_covid_gestrado_v03.pdf
4 A estrutura da escola, tornou-se um dos principais textos de Antônio Candido, fruto de suas pesquisas no Centro Regional de Pesquisa Educacional (CRPE), que funcionou na USP entre as décadas de 1950 e 1970, reunindo grandes nomes da pesquisa social e educacional.