Leticia Garducci
“O mundo começou a cair no Brasil em 1964 e continuou ‘caindo para sempre’, salvo para quem se iludiu enquanto despencava”, diz Paulo Arantes em artigo publicado em “O que resta da Ditadura”. Organizado por Vladmir Safatle e Edson Teles e lançado há doze anos – ou seja, quando muitos de nós pensávamos viver numa democracia enfim consolidada –, o livro, que é composto por quinze artigos de diferentes pensadores, grita em cada uma de suas páginas: “não acabou!”. Vale a leitura integral de cada reflexão ali publicada.Aqui, longe de uma resenha, a proposta deste texto, que é mais precisamente um ensaio, é mobilizar algumas ideias levantadas em referida publicação (e fora dela) para trazer aportes para o cenário de violência autoritária que ameaça as eleições presidenciais de 2022 e, quiçá, trazer contribuições para se pensar os passos necessários a enterrar, de uma vez por todas, este tão longo período de golpismo no Brasil.
E desde já é importante destacar este recorte, isto é, do momento em que vivemos desde 1964, pois, para aqueles que acreditaram que se tratava, a democratização, da emergência de uma “nova” República, vale dizer que a “novidade” chegou antes, ainda em tempos de exceção. De outro modo, a abertura, que teve seu marco com a promulgação da Constituição de 1988, se apresentou como um episódio daquilo que já se rascunhava no próprio governo militar: a crise do fordismo e os primeiros passos para a implementação da política neoliberal e para o regime de acumulação de predominância financeira que caracterizam o chamado pós-fordismo.
Por óbvio, não se trata de igualar a exceção autoritária dos milicos com a democracia formal que a seguiu. Mas como aponta Arantes, regado de seu humor cáustico, “Fernando Henrique deveria saber, pelo menos, que estava arrombando uma porta aberta”.
De outro modo, mais adiante, ele reafirma com precisão: “a guinada rentista do capital encontrou a mesa posta e a casa arrumada pela ‘bagunça’
da ditadura”.
Relembremos aqui e em apertada síntese a tal guinada deste período: delineado a partir da crise dos anos 1970, com o esfacelamento do chamado welfare state nos países centrais do capitalismo e o colapso do desenvolvimentismo em países da periferia do capital, como o Brasil, o pós-fordismo desponta com um novo paradigma de valorização do valor, que passa a ser de predominância financeira, marcado também pela desconcentração do sistema produtivo, taxa estrutural de desemprego e flexibilização das relações trabalhistas – leia-se, maior grau de exploração e precarização das condições de trabalho, especialmente para as chamadas minorias (mulheres, negros, latinos etc.).
A sustentação dessa precarização da qualidade de vida para a classe trabalhadora foi assegurada – e é até o momento presente – pelo chamado modo de regulação neoliberal. Isso quer dizer que, a partir da crise fordista, que leva ao colapso fiscal do Estado, se estabelece como padrão políticas de austeridade em substituição às políticas públicas, uma nova regulamentação da economia voltada à abertura ao capital estrangeiro, parcerias público-privadas, desemprego estrutural, flexibilização do trabalho (hoje expresso pelo fenômeno da “uberização”) e ainda – o que é de grande relevo para compreendermos a permanência da violência autoritária de 1964 – o aumento do controle social via aparato repressor, diante da inevitável explosão de conflitos sociais decorrentes da piora acentuada nas condições de vida da população.
Soma-se a isso o fato de estarmos falando de um país da periferia do capitalismo, em que a superexploração do trabalho se faz regra desde a inserção brasileira ao presente modo de produção – e o que só foi possível por meio das mais atrozes formas de violência que a humanidade já experimentou: o genocídio indígena e a escravização de populações negras africanas. Tais violências, uma vez que configuram o racismo estrutural que dá as bases à exploração capitalista, vão permanecer, ainda que sob novas roupagens, ao longo da história brasileira, conforme definição de Silvio Almeida em “Racismo Estrutural”. Assim, e retomando-se a tal “bagunça” deixada pela ditadura, foi justamente o “caos” instaurado pelos militares que possibilitou a institucionalização de matiz neoliberal do racismo, que passou a se expressar principalmente por meio do encarceramento em massa e da chacina de jovens negros periféricos, assegurando-se desse modo a superexploração do trabalho, sobretudo da população negra e periférica, e garantindo, com isso, o rebaixamento salarial característico do neoliberalismo.
É por isso que, se antes da ditadura a polícia militar era aquartelada, cabendo à guarda civil a prevenção e a repressão à criminalidade, é a partir de 1969 que vão às ruas realizar o policiamento ostensivo para não mais deixarem de exercer essa função, conforme descrição de Jorge Zaverucha no texto “Relação civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988”. Ou seja, inclusive com a chancela da chamada Constituição Cidadã, as polícias militares permanecem nas ruas para o “patrulhamento”, mesmo com a redemocratização, protagonizando diariamente a violência institucional como uma das principais chaves do controle social do pós-fordismo. Desse modo, longe de ser um “entulho” autoritário, a militarização das polícias enquanto tecnologia de poder, com o fim de assegurar condições cada vez mais deploráveis da superexploração do trabalho, é atualíssima e imprescindível à manutenção do status quo.
Aliás, a Carta de 1988 manteve praticamente idêntica à Constituição de 1967 dispositivos acerca das Forças Armadas, do sistema judiciário militar e da segurança pública, além de inserir novas prerrogativas militares, como demonstra Jorge Zaverucha na sua publicação. É exemplo disso o artigo 142, que atribui às Forças Armadas o papel de “garantidoras da pátria, dos poderes constitucionais e da lei e da ordem”. Foi exatamente esse o ponto que fez com que Lula, então deputado constituinte, proclamasse em plena assembleia: “mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta”.
Projeto de repressão deixou legado autoritário para a sociedade brasileira e influenciou políticas públicas
Embora tenha sido esse o motivo para o Partido dos Trabalhadores votar contra o texto final da atual Constituição, referido dispositivo não foi modificado, dando base para as 143 operações das Forças Armadas que ocorreram no país desde 1992 e que levaram à morte inúmeros civis.
Isso se explica porque a comissão responsável na Constituinte por tratar dos capítulos relativos à segurança pública e Forças Armadas era composta, dentre seus 28 membros, por uma maioria pertencente às próprias forças armadas ou às polícias militares, o que explica que apenas três de seus integrantes propuseram alterações no modelo civil-militar ditatorial então existente. Mais do que isso, são significativos a candidatura de Tancredo Neves e eleições via colégio eleitoral pactuados com o general Walter Pires e o veto pelos militares de uma Assembleia Constituinte exclusiva, que obrigou os deputados e senadores eleitos à época para o Congresso Nacional a assumirem a missão de elaborar o novo texto constitucional.
Portanto, a Constituição vigente nasceu sob o jugo autoritário, cenário que ilustra muito bem a transição negociada como condição indispensável para o avanço pós-fordista no Brasil. Os “resquícios” de 1964 são, em realidade, os alicerces para o novo momento do capitalismo, como também é exemplo a “reforma gerencial” do governo de FHC nos anos 1990 que, de acordo com Gilberto Bercovicci, “vai inovar trazendo como novidade o que já estava previsto na legislação brasileira desde 1967”.
Nesse sentido, ainda, aponta Alysson Mascaro que é durante o regime militar que há a modulação para o pós-fordismo brasileiro, ou seja, quando “se dão as bases definitivas da relação de dependência entre capital nacional e capital externo, uso do Estado por setores políticos assentados em modelos específicos de corrupção na interação entre os negócios públicos e privados, repressão e efetiva militarização do controle das populações e dos movimentos políticos, concreção do judiciário como instrumento do capital e do poder militar, tecnificação acrítica e conservadora dos agentes do Estado.”
É importante destacar, em meio a esse cenário, a luta sindical, dos partidos de esquerda, dos movimentos sociais e ativistas que atuaram contra a ditadura, levando ainda a batalha pela democracia para a Constituinte. Apesar de um congresso tutelado pelos militares, conseguiram insculpir na nova carta as mais avançadas ferramentas de justiça social, a exemplo do Sistema Único de Saúde. E sem dúvida alguma a meta de construir mais que uma constituição, mas uma sociedade cidadã, foi objeto de luta cotidiana de referidos atores desde o processo de promulgação até os dias de hoje. Porém, a correlação de forças tem se mostrado avassaladora, alcançando a esquerda a sua melhor performance nos governos petistas e ainda que sob tais amarras que temos buscado destacar.
Aliás, amarras essas que também retiraram a presidenta Dilma Rousseff do poder em mais uma manobra golpista e com vistas ao desmonte das políticas sociais então conquistadas, do acirramento da exploração da classe trabalhadora e do entreguismo das riquezas nacionais – não se pode esquecer da descoberta do pré-sal durante o governo petista e do desmonte da Petrobrás e privatização de suas refinarias que se seguiu ao golpe de 2016. E é por isso também que, como bem aponta Mascaro, o golpe contra Dilma foi possibilitado pelo espírito continuísta que 1988 carregou de 1964. Daí para Bolsonaro e o aparelhamento do governo federal com os mais de seis mil militares foi um pulo, para o qual o trampolim sempre esteve armado.
Apesar disso, o apoio das forças econômicas nesse final de julho do ano corrente (a exemplo do governo Biden, da Fiesp e de banqueiros como Roberto Setúbal e Pedro Moreira Salles) revelam que as frações da classe capitalista vêm se mobilizando para garantir a provável reeleição do presidente Lula. E embora a formação da frente ampla que se desenha seja a saída possível para a derrota do governo fascista de Jair Bolsonaro, isso está longe de representar a retirada dos militares da política ou, ainda, a mudança do padrão econômico nefasto que tem se imposto no país. A despeito da movimentação de setores da direita para garantir a posse de Lula, como gostam de afirmar os liberais, “não tem almoço grátis”.
Assim, uma efetiva vitória de Lula e da sociedade brasileira consiste no encerramento desse ciclo nefasto de violências políticas, econômicas e sociais, o que quer dizer um acerto de contas com este longo período. Isso passa por não deixar cair no esquecimento toda barbárie do governo bolsonarista e de sua gestão macabra durante a pandemia. Significa também olhar novamente para o passado, pois, da anistia aos militares até a tragédia da escravidão que nunca foi devidamente reparada, configura-se uma ferida aberta que representa a possibilidade da violência impune no país. E é por isso também, e de maneira urgente, que se deve romper com o silenciamento da violência policial no dia após dia das periferias – no Brasil do pós-redemocratização há mais casos de torturas cometidas pelo Estado do que havia no período da própria ditadura militar! E o governo Bolsonaro também é resultado disso.
Portanto, fechar esse ciclo quer dizer reparar as violências de nosso passado para cessar as de nosso presente. É retomar como prioridade as políticas de justiça social, o que inclui a extinção do modelo de segurança militarizado. Pois interessa mais à classe trabalhadora a segurança alimentar, saúde, cultura, moradia digna, educação transformadora. Interessa mais a superação das desigualdades econômicas que nos desafiam historicamente. Esse deve ser o horizonte.
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Leticia Garducci é doutoranda em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ e mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie. Professora universitária e advogada popular, é militante das Brigadas Populares de São Paulo.