Carolina Peters
Estamos em Kobane, cidade declarada autônoma pelas forças militares curdas em 2012. Símbolo da resistência desse povo, foi a primeira cidade majoritariamente curda na Síria a, ainda nos anos 70, acolher o então refugiado Abdullah Öcalan, dirigente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, Curdistão turco) e principal liderança do movimento de libertação curdo; e décadas mais tarde, a implementar seu modelo de Confederalismo Democrático. Sofrendo ataques constantes do grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS), bombardeios e boicotes promovidos pelo governo turco, a resistência de Kobane é fundamental para manter a unidade entre os três cantões curdos de rojava (o “Oeste”), como é denominado o Curdistão sírio.
Sitiada pelo ISIS por quatro meses, a partir de setembro de 2014, sua libertação despertou a curiosidade da omissa imprensa internacional sobre as e os combatentes que lograram, pela primeira vez, impor uma derrota ao grupo de inspiração salafista, em fevereiro de 2015 e, a partir daí, libertar também quase dois terços dos cerca de 350 vilarejos da região. Em particular as imagens das guerrilheiras das YPJ, as Unidades de Defesa das Mulheres, tomaram as redes sociais, contribuindo com o surgimento de uma nova narrativa sobre o Oriente Médio, na qual as mulheres são protagonistas.
A presença de mulheres curdas no front não é fenômeno recente. Figuras como Kara Fatma, que liderou um batalhão de 700 homens em meados do século XIX, fazem parte do imaginário popular. Mas é a partir do final dos anos 1980 que a presença feminina se torna massiva nos movimentos de libertação curdos.
Os curdos são a maior população sem Estado do mundo. Cerca de 40 milhões de pessoas, divididas entre os territórios montanhosos da fronteira entre Turquia, Síria, Iraque e Irã, ou espalhadas pelo globo após a diáspora. Diferente de tantas minorias étnicas do Oriente Médio que também reivindicam reconhecimento e liberdade, não há tintas religiosas na questão curda. O que unifica esse povo são seus costumes, sua língua, sua história as marcas culturais das quais é sistematicamente privado pelos governos autoritários da região e sua luta pela existência.
Após a ascensão do regime ditatorial na Turquia em 1980, apoiado política e militarmente pelos EUA, a repressão aos curdos no país se intensifica. São proibidas as manifestações culturais, o uso da língua curda, seu alfabeto, e o próprio emprego do termo “curdo” e cognatos. Estima-se um saldo de 600 mil presos, 20 mil desaparecidos, e 5 milhões de camponeses curdos removidos de suas terras. Sob um parlamentarismo frágil, existem atualmente cerca de 12 mil presos políticos na Turquia, entre eles, Öcalan.
Fundado em 1978, sob a insígnia da ilegalidade imposta pelo Estado Turco, que persiste até os dias de hoje, o PKK cedo fez a opção pela luta armada. As ações radicais fortaleceram a presença do partido entre as camadas mais empobrecidas, sobretudo rurais, da população curda na Turquia. Marginalizados e sob intensa repressão policial, estes tantos jovens curdos enxergavam na ação direta o principal instrumento de luta pela libertação.
A incorporação sistemática de mulheres ao partido e à guerrilha surge como necessidade objetiva de renovação dos quadros diante do massacre levado a cabo pelo regime ditatorial, e pela postura ativa das mulheres curdas de engajamento no processo de libertação. Na leitura de Abdullah Öcalan, a guerra e o subdesenvolvimento, particularmente cruéis para as mulheres, fariam delas mais receptivas às ideias radicais e mais dispostas a questionar o status quo.
Algumas delas são mães ou companheiras de mortos em conflito. Em comum, são mulheres alijadas do processo de modernização, “empoderamento” feminino e homogenização cultural, conduzido pelo governo turco, em razão de sua identidade e pela falta de destreza no idioma turco. Passam então a não somente reivindicar sua identidade curda, como, nesse processo de politização, desenvolvem uma consciência feminista em resposta ao sexismo corrente no movimento pela libertação.
Sua presença crescente nas fileiras induz o PKK a formular políticas e repensar sua organização e estratégia. Em 1987, é fundada a União das Mulheres Patrióticas do Curdistão (YJWK), órgão auto-organizado do partido. Oito anos mais tarde, surge seu primeiro braço militar exclusivamente feminino, as Tropas de Mulheres Livres do Curdistão (YJAK). Dois exemplos entre dezenas que se propagam não só na Turquia, como no Curdistão iraquiano e sírio, essas colaterais auto-organizadas, políticas e militares, crescem como forma de tornar visíveis ao movimento de libertação as demandas específicas das mulheres curdas.
Dentro das organizações mistas se implementam políticas de cotas de gênero, o copresidencialismo (presente também na administração pública das vilas autônomas do Curdistão sírio), e a divisão do trabalho doméstico nos acampamentos. Em suas análises, Öcalan traz o feminismo, junto ao ecologismo, para o centro da estratégia revolucionária: “sem a libertação da mulher, não pode haver libertação da sociedade”
Para ele, a questão curda não se restringe a um conflito étnico ou nacional. A luta curda por autonomia e dignidade é, acima de tudo, “um projeto de libertação e democracia”. Para o povo curdo, lutar por autonomia é construir desde já uma sociedade profundamente libertária, com ampla liberdade religiosa e respeito às diversas etnias, conectada à natureza, e onde homens e mulheres participem da vida política em pé de igualdade. Esta clareza estratégica que leva a um combate global da opressão-exploração, perpetrada pelo capitalismo neocolonial e pelo fundamentalismo islâmico, estabelece uma profunda distinção ideológica entre a luta do povo curdo por reconhecimento e autonomia e outros movimentos independentistas da região.
É neste contexto que se gesta o Confederalismo Democrático, modelo político inspirado no “municipalismo libertário”, baseado na democracia direta e no poder local. Nas palavras de seu formulador, Abdullah Öcalan: “flexível, multicultural, antimonopolista e orientado para o consenso. A ecologia e o feminismo são pilares centrais. Nos marcos deste tipo de autoadministração, uma economia alternativa se torna necessária, o que incrementa os recursos da sociedade ao invés de explorá-los, e assim faz jus às múltiplas necessidades da sociedade”.
O ideal de um Estado Curdo, socialista e independente, é assim substituído pela busca de autonomia política e autogestão dos territórios, cujas instâncias de governança respeitam não somente o princípio de igualdade entre os gêneros, mas também a pluralidade étnica, cultural e religiosa. Em Rojava, são estes mecanismos de ativa participação popular, conduzidos pelo Partido da União Democrática (PYD, partido irmão do PKK no Curdistão sírio) e seu Movimento pela Sociedade Democrática (TEV-DEM), que mantêm viva a revolução em curso.
Após os levantes de 2011 que pediam o fim do regime ditatorial de Bashar al Assad, sem a perspectiva de assegurar, ao lado das forças oposicionistas liberais, uma existência plena de direitos, os curdos se negam a aderir à guerra civil que toma conta da Síria. O enfraquecimento do governo central de al Assad permite às tropas curdas no Norte, em particular às Unidades de Defesa Populares (YPG) ligadas ao PYD, conquistar as administrações locais e declarar autônomas cidades habitadas por seu povo, implementando um modelo próprio de governança.
As Unidades de Defesa das Mulheres, YPJ na sigla curda, surgem no ano seguinte, 2012, como um destacamento formado unicamente por mulheres das YPG. Os exércitos exclusivamente femininos partem da compreensão de que, socializadas para o espaço doméstico, as mulheres chegam às forças militares com ampla desvantagem em relação aos homens, colocando assim a necessidade de investir em um processo formativo diferenciado. A criação das YPJ, contudo, não restringiu a presença feminina nas trincheiras das Unidades de Defesa Populares, representando aproximadamente 30% de seu contingente.
A passagem das tropas femininas portando seus fuzis russos impressiona jovens mulheres e adolescentes e as inspira a unir-se à luta. Em um mundo marcado pela guerra, sob a ameaça constante de saques, sequestros e estupros, a tomada das armas confunde-se com o acesso a direitos, e o combate é a própria perspectiva de futuro. É uma batalha pela liberdade em seu nível mais profundo, contra a ocupação dos territórios e dos corpos. Uma revolução dentro da revolução, o antes inimaginável se torna impositivo: pais incentivam suas filhas a se alistar nas unidades de defesa, e homens e mulheres constroem amizades lutando lado a lado.
Os meios de comunicação de massa, entre os quais as revistas de moda, se apropriam da imagem das YPJ como fantasia sexual ocidental. Buscam transformar a resistência feminista contra o conservadorismo islâmico, e a radical revolução social em curso no Norte da Síria, em uma caricatura. Em uma zona considerada hostil às mulheres pelo senso comum, a participação feminina em combate, confrontando-se com forças fundamentalistas essencialmente misóginas, representa uma ruptura com o destino de submissão que a imaginação orientalista lhes confere.
Não se trata de empoderar um batalhão de mulheres dando a elas poder de fogo, mas de subverter uma estrutura de poder patriarcal. Nos territórios declarados autônomos de rojava, foram proibidos o matrimônio de menores de 18 anos, a poligamia e os casamentos arranjados. Os chamados “crimes de honra”, como o feminicídio, passaram a ser condenados, assim como toda discriminação e a violência sexista. Homens condenados por exercer violência contra a mulher são vetados da administração pública, e contam com intensa desaprovação por parte da sociedade.
Sobretudo no cantão de Cizîre, o maior e mais estável dos três que compõem rojava, desenvolvem-se muitas cooperativas, escolas, conselhos, academias e estruturas autônomas de mulheres, apesar da extensão do conflito. Uma sociedade nova emerge das ruínas da guerra, e a ação põe em prática o dito popular curdo “Berxwedan Jiyan”: a resistência é a vida.
Há anos, as tropas curdas de rojava enfrentam a ditadura de Bashar al Assad e forças extremistas, como al-Nusra e ISIS. Em 2013, um ano antes dos atentados de Paris descortinarem ao mundo a existência do Estado Islâmico, o filho do co-presidente do Partido da União Democrática fora morto em combate. Apesar das inúmeras tentativas de levar a público as ações do grupo terrorista, e as iniciativas dos governos de Turquia, Arábia Saudita e Qatar em seu apoio, os curdos tiveram sua participação repetidamente vetada em organismos e conferências internacionais advogando “a paz”.
Muitos dos países que hoje formam a coalizão internacional contra o Estado Islâmico já apoiaram as tropas fundamentalistas em momentos pregressos. Os Estados Unidos, em particular, adotam uma postura sensivelmente ambígua, já tendo errado focos de bombardeio e entregado arsenal e “ajuda humanitária” em seus assentamentos. Mas especialmente o apoio em armamentos e demais equipamentos aos grupos de oposição a Assad, que sabidamente abrigavam Al Nusra e ISIS, possibilitaram a chegada de suplementos às suas mãos. Os ataques aéreos conduzidos pela coalizão contribuíram com a libertação de Kobane, mas a cidade não haveria resistido sem os curdos sírios que combatiam em solo em situação adversa.
Ainda que venha demonstrando ao mundo ser a única força até então capaz de deter o avanço do Estado Islâmico, o fortalecimento da resistência curda no Norte da Síria, lidera da pelo PYD, não interessa aos EUA e membros da União Europeia. Esses países classificam o Partido dos Trabalhadores do Curdistão como uma organização terrorista e mantêm relações próximas com a Turquia, cujo atual presidente, Erdogan, afirmou considerar o PYD, como partido irmão do PKK, “terrorista” por extensão. Enquanto Erdogan mantém suas fronteiras impermeáveis aos curdos, temendo que o movimento em Rojava fortaleça seus compatriotas em território turco, é através da fronteira com a Turquia que o ISIS opera a venda do petróleo contrabandeado que sustenta seu exército.
Este pequeno foco de resistência popular, anticapitalista e antipatriarcal floresce em uma região do mundo de grande relevância geopolítica. A crise por que passa o capitalismo exige do sistema maior ferocidade sobre as periferias, de forma a retomar o processo de acumulação, como já apontava Rosa Luxemburgo. Nos últimos anos, a investida do Capital sobre o Oriente Médio provocou uma série de insurreições e levantes populares. Ao passo em que o próprio Capital reorganiza suas forças políticas regionais para dar vazão ao seu projeto, no seio do movimento de massas se forjam também alternativas mais ou menos progressistas.
Confrontando-se simultaneamente com o imperialismo e com o fundamentalismo islâmico, altamente militarizado e globalizado, o movimento de libertação curdo apresenta uma alternativa sistêmica de superação do capitalismo-patriarcal. Longe dos holofotes midiáticos, a revolução em curso em Rojava talvez seja um dos mais avançados polos da luta anticapitalista no mundo. Uma centelha socialista em um barril de petróleo.
Carolina Peters é membro da Direção Nacional do PSOL e do Setorial de Mulheres.