Por Lúcio Gregori
Vivemos um momento que pode provocar muitas mudanças nos modos de mobilidade urbana: trabalho remoto, automação do setor de serviços, possibilidade crescente de reuniões serem realizadas a distância, uso de aplicativos para contratação de viagens urbanas, entre outros fatores são sinais dessa nova situação. A pandemia da Covid 19 aguçou essa questão, evidenciando os vários problemas que envolvem o transporte coletivo e a mobilidade em geral.
A mobilidade urbana é questão essencial para a condição de vida das pessoas, e em nossa sociedade escravagista e preconceituosa – justamente para com os de menor renda, negros e mulheres e que são os que mais dependem dos transportes coletivos – desempenha um estratégico e cruel papel para sua concretização. Quem tem mais, tem mais e melhor mobilidade e, quem tem menos só tem, quando tem, para as “viagens dos deveres” e não para as “viagens dos prazeres”.
DISPUTAS NO DESLOCAMENTO
Como vivemos num sistema capitalista, ainda que atrasado e cartorial, as disputas em torno dos ganhos propiciados pela mobilidade urbana se fazem sentir. Cada um dos interessados procurando “vender o seu peixe” como sendo o melhor, mais inteligente, mais limpo, etc.
Não foi diferente quando o automóvel surgiu, sendo o “resolvedor” da mobilidade, omitindo-se, é claro, seu papel como possível causador de problemas. Com a produção em série e associação com a indústria petroleira, o automóvel com motor a explosão surgiu como “a grande solução”. Claro está que todos os problemas advindos desse modo de locomoção – enorme uso de espaço viário, acidentes, poluição etc. – foram devidamente “não identificáveis” por anos a fio.
O mesmo acontece atualmente com os aplicativos, que abrirão caminho para carros pequenos sem motoristas etc. As vantagens são promovidas como absolutas, mas não é difícil de se imaginar o que poderá ser uma quantidade astronômica de pequenos carros elétricos a ocuparem, freneticamente, as ruas da cidade em manobras fugidias de congestionamentos, tal como já é realidade com os aplicativos. Nesse sentido, mais uma vez a lógica indica que os transportes coletivos continuarão sendo absolutamente fundamentais.
CAPITALISMO CARTORIAL
Os problemas causados pela pandemia da Covid-19 impactaram profundamente todas as áreas da economia, mas alguns setores foram mais duramente afetados. Um deles foi o dos transportes coletivos urbanos, em particular o setor de ônibus – o mais demandado – que sofreu enorme perda de passageiros transportados. Ao mesmo tempo, a pandemia também serviu para escancarar os enormes equívocos que vêm sendo cometidos por anos a fio nesse setor.
Desde tempos imemoriais, o capitalismo brasileiro tem nos serviços públicos uma forma de “encosto”, ou como dizia Hélio Jaguaribe, mostra-se um capitalismo cartorial. Assim, como nos cartórios, não há riscos envolvidos. Mais do que isso, o “encosto” chamado concessão do sistema de transporte público inclui distorções gigantescas que visam tornar a cessão desse serviço público, uma espécie de “esquema de ganhos” seguros.
Nas concessões clássicas, aplicadas na esmagadora maioria das cidades brasileiras, o serviço de transportes coletivos por ônibus é remunerado por passageiro transportado – como se passageiro fosse custo – quando passageiro em sistema de transportes é receita! Tal como num táxi, dado um certo percurso, o taxímetro mostrará o mesmo preço da corrida, independentemente do número de passageiros transportados, pois o que é cobrado é o deslocamento realizado.
Com a remuneração do transporte coletivo sendo feita por passageiros, quanto mais lotados os ônibus, mais rentável será o negócio. Com um efeito cruel de que, havendo queda de passageiros transportados, a tarifa é reajustada, o que provoca outra perda adicional de passageiros, criando-se um círculo vicioso perverso.
Com as gratuidades, a compensação precisa ser realizada com subsídios cruzados, quando o passageiro pagante tem um adicional de tarifa para compensar aquele passageiro que usa do serviço em regime de gratuidade, criando uma animosidade entre os usuários, pois os pagantes se sentem prejudicados quanto mais direitos de gratuidades forem sendo atribuídos a determinados grupos de usuários – idosos, estudantes, etc.
LOTAÇÃO E INFECÇÕES
Com ônibus superlotados o serviço tende a apresentar problemas sanitários como o aumento da quantidade de infecções, viroses entre outras adquiridas. Seis passageiros por metro quadrado é o altíssimo índice permitido, que na prática se transforma em até dez, doze passageiros por metro quadrado.
Se passageiro fosse realmente custo, a queda de passageiros causada pela Covid-19 incidiria em diminuição de custos para o serviço, mas o que ocorreu foi que a receita do setor desabou e, por consequência, as empresas de transportes coletivos se declaram em colapso econômico. Fica provado que ônibus lotado é sim anti-higiênico, fora a limpeza do veículo e um permanente agente propagador de contaminação.
No “encosto” nas parcerias público-privadas, o Estado entra com a maior parte dos custos (caso dos custos fixos dos metrôs) e o setor privado tem prioridade no rateio das receitas com direito assegurado de reajuste anual de tarifas independentemente de qualquer coisa (vide exemplo do que é praticado na linha amarela do metrô em São Paulo).
AUTOMÓVEIS E POLUIÇÃO
O isolamento social em decorrência da Covid-19 retirou os carros de circulação das ruas das cidades e ficou explícito o quanto o modelo de mobilidade centrado no automóvel é o responsável pela poluição atmosférica. Em São Paulo, a mancha escura de poluição que cobria a cidade foi drasticamente reduzida, quase desaparecendo. O mesmo fenômeno pode ser observado ao redor do mundo todo. A indústria automobilística contra-ataca com a ideia de que deslocamento por automóvel será mais higiênico.
Porém, alguns dados ajudarão a entender a escala do problema representado pelos transportes coletivos urbanos e o quanto eles representam a verdadeira face desse capitalismo à brasileira.
Em mais de 2.900 municípios brasileiros, os transportes coletivos atendem a 70 milhões passageiros/dia. De acordo com a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 1800 empresas privadas com 107 mil ônibus transportam 60 milhões de passageiros/dia, gerando mais de 400 mil empregos diretos (motoristas, cobradores, pessoal de manutenção e demais profissionais).
O transporte sobre trilhos – metrôs e ferrovias metropolitanas – congrega 15 operadoras, num total de 1.105 km de linhas, 10,9 milhões de passageiros/dia. Considerados todos os modos, o transporte público coletivo responde por 50% das viagens motorizadas realizadas diariamente no país. Apesar dessa importância dos ônibus, eles vêm perdendo passageiros ao longo do tempo, seguramente pela má qualidade dos serviços, mas fundamentalmente pelo alto preço da tarifa, que se torna cada vez mais inacessível.
Contratação distorcida
A insolvência das empresas não é um risco causado pela Covid-19, que apenas aguçou a questão do modelo de contratação dos serviços, inclusive por não possuir cláusulas contratuais para caso de hecatombes, pandemias entre outros.
Nos últimos 20 anos, os ônibus perderam 35,6% dos usuários. Só em 2017, 9,5%. O crescente uso dos modos individuais motorizados, carros e motos, que ocupam 70% do espaço viário e transportam cerca de 25% das pessoas em circulação, causaram uma diminuição da velocidade do ônibus de 25km/h para 15km/h e ilustra a desigual distribuição do espaço público para uso das pessoas, que privilegia mais espaço para carros particulares1 .
Para se enfrentar os problemas da mobilidade urbana e fortalecimento dos transportes coletivos, inclusive com garantia de higiene e segurança, será necessário mudar radicalmente a forma de contratação dos serviços e determinadas especificações de desempenho, aí incluído o número de passageiros em pé por metro quadrado.
E para garantir que o transporte coletivo não seja um inibidor e segregador do uso e acesso à cidade por parte dos mais pobres, tendo na tarifa o elemento chave nessa inibição, há que se formular políticas robustas de subsídio tarifário e, no limite, o subsídio total (tarifa zero). Aí sim o transporte será um direito social como diz a Constituição desde setembro de 2015, como a saúde, via SUS. Isso significa que é necessário criar recursos para o subsídio tarifário e reequacionar inteiramente o modo de contratar tais serviços com o setor privado, bem como as especificações de desempenho.
Curiosamente, foi aprovado pela Câmara Federal o projeto 3364/20, que prevê auxílio de R$ 4 bilhões às empresas de transportes coletivos sem exigir, por exemplo, a transformação dos contratos para custos operacionais e não mais as clássicas concessões de remuneração por passageiro e a inclusão de cláusulas relativas a hecatombes e epidemias.
Tirar da letra morta em um papel o transporte como direito social nos termos da Constituição desde 2015, e transformá-lo em direito real, envolve um debate ampliado sobre a questão tributária no país e das formas de contratação dos serviços públicos, especialmente os de mobilidade urbana.
Tributação injusta
No capitalismo brasileiro, diferentemente do resto do mundo, tributa-se pouco a renda e o patrimônio. Na Dinamarca, esses dois itens, em conjunto, representam 67% da arrecadação total de impostos; nos EUA, 60%; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação sobre o consumo com seus 50%. A média da OCDE é de 32,4%; e nos EUA, 17%.
E para finalizar essa enorme farsa nacional, os dividendos para os donos de ações de empresas não pagam imposto de renda e jatinhos e iates não pagam IPVA2 .
No Brasil, os direitos e serviços públicos são sustentados pelos mais pobres, os que pagam proporcionalmente mais impostos, via consumo.
A agenda hegemônica da Reforma Tributária que tramita no Congresso Nacional está desconectada dessa realidade e não enfrenta a principal anomalia da tributação brasileira que é o seu caráter regressivo, não reduz e pode ampliar a desigualdade. Além disso, é profundamente insuficiente, por não fortalecer financeiramente o Estado para que cumpra o papel dele exigido em crises dessa envergadura.
Se essa agenda já era inócua e tímida, tornou-se anacrônica após a crise agravada pela Covid-19. E nem se diga do teto de gastos…
Além disso, é fundamental evitar propostas equivocadas como pedágio urbano, que transforma a rua em mercadoria escassa e é regressivo. Há também a chamada municipalização da Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), posto que a esta é uma medida conjuntural e pode ser mudada até por decreto.
Em resumo, sem uma disputa e reforma ampla sobre questões tributárias, mudanças radicais na forma de contratar serviços de transportes coletivos e da cobrança de contribuição (e não pedágio) pela apropriação do espaço viário pelos automóveis dentre outras questões, o que se poderá ter como resultado das mudanças apontadas no início do texto e das consequências e problemas desnudados pela Covid-19, é aquilo que é uma recorrência em nosso país: “tudo mudar para que tudo permaneça como sempre foi”. Podendo piorar…
Lúcio Gregoria é engenheiro pela Escola Politécnica da USP, foi Secretário Municipal de Transportes no governo de Luiza Erundina (1989-93), quando propôs o projeto da Tarifa Zero.
1 Dados da NTU/ANTP.
2 https://plataformapoliticasocial.com.br/ tributar-os-super-ricos-para-reconstruir-o-pais/