Andréa Caldas
O programa Future-se, lançado pelo MEC, após as inúmeras mobilizações que ocorreram em protesto contra o contingenciamento de recursos das Universidades, apesar de ter sido apresentado como uma proposta de fortalecimento da “autonomia financeira das Universidades e dos Institutos Federais”, deixa claro, de forma inequívoca, a pretensão de transferir a gestão das instituições públicas para a iniciativa privada e priorizar a captação de recursos externos.
O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (Future-se) tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios. (Future-se, MEC, 2019).
Desde a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro e seu núcleo mais próximo elegeram o campo educacional como alvo preferencial de ataques. Combinaram o discurso conservador fecundado pelas supostas denúncias de que as escolas e Universidades haviam se tornado antros de pregação comunista e libertina com o interesse do ultraliberalismo de:
- a) reduzir o financiamento público
- b) ampliar o mercado de venda de serviços educacionais.
Dois braços
Assim, os dois braços de sustentação deste governo neoconservador, que mescla fundamentalismo religioso e divinização do mercado, encontram nesse programa do MEC/Área Econômica já rebatizado de “Fature-se” a conjugação ótima.
Ressalte-se que as Organizações Sociais (OSs), modalidade de “parceria” escolhida pelo programa, são um tipo específico de iniciativa privada. Trata-se de uma qualificação um título que a administração pública outorga a uma entidade privada, sem fins lucrativos, para que ela possa receber determinados benefícios do Estado (dotações orçamentárias, isenções fiscais etc.), para a realização dos fins.
Tal instituto jurídico é parte constitutiva da reforma do Estado, implantada no governo FHC nos anos 1990, com o objetivo de reduzir o papel social e de celebrar a decantada eficiência do modelo privado de gestão.
Com o programa será possível às OSs “qualificadas” pelo governo terem acesso ao recurso público (inclusive ao patrimônio das Instituições de Ensino Superior), explorar a venda de serviços privados (patentes, serviços, pesquisas e até cobrança de mensalidades) e exercer o controle ideológico das atividades realizadas nas IFES.
Ao aderir ao Future-se, a IFES se compromete a:
- Utilizar a organização social contratada para o suporte à execução de atividades relacionadas aos eixos de gestão, governança e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização;
- Adotar as diretrizes de governança que serão futuramente definidas pelo Ministério da Educação;
III. Adotar programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria externa. (Future-se, MEC, 2019) A par disso, o governo aponta para um ainda incerto e indefinido “fundo de autonomia financeira das IFES” eufemismo para a desobrigação do financiamento público da educação, que será constituído por venda de serviços, capitalização financeira e eventuais doações de pessoas físicas e jurídicas, inclusive de “outros países, organismos internacionais e organismos multilaterais”. Ou seja, é o “vire-se” e “venda-se”.
União ilusória
Nesse ponto no qual fica mais claro o caminho da privatização da educação superior o discurso busca fazer parecer que teremos uma grande união cívica da sociedade brasileira, do empresariado nacional e internacional e das pessoas beneméritas em favor da educação, ciência e tecnologia do país.
E isso ocorre precisamente após o governo celebrar um acordo de livre-comércio com a União Europeia para venda de grãos e compra de produtos industrializados e tecnologia.
Como bem observou Gilberto Maringoni (2019): (…) ignora-se o fato de vivermos em um país com economia semiestagnada, com forte contração no mercado interno, insuficiência de demanda, retração de investimentos e ataques pesados à Ciência por parte do presidente da República e de outras autoridades. O governo eleito é francamente contra qualquer tipo de pesquisa empírica. (…) Há um fator adicional: a desbragada desnacionalização da economia brasileira iniciada sob a suserania tucana fez com que as empresas privatizadas e desnacionalizadas deslocassem para suas matrizes todo o setor de pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Diante do quadro conjuntural e estrutural da economia brasileira, é razoável supor que, se houver investimentos privados nas Universidades e Institutos Federais, eles estarão imediatamente relacionados aos interesses de lucratividade imediata do mercado. Ficarão de fora todas as pesquisas de base que não possam produzir resultados de curto prazo e todas as atividades de ensino e extensão que não tragam rentabilidade financeira.
Trata-se, portanto, de abortar qualquer possibilidade de ciência básica e de produção tecnológica soberana e transformar a educação superior em um grande shopping center de venda de serviços e fornecimento de estagiários de baixo custo.
O programa menciona, inclusive, que os professores universitários mesmo com regime de dedicação exclusiva podem criar startups, fornecer consultorias, vender patentes e o que mais o espírito empreendedor sugerir. De pesquisadores a mascates, no reino do feliz mercado.
Estimula-se, assim, a competitividade interna entre setores, Universidades e Institutos. E, obviamente, as regiões e áreas mais dinâmicas e com proximidade às fontes de financiamento lograrão mais êxito, numa espécie de “darwinismo acadêmico”, antítese de qualquer programa nacional e mais igualitário.
Nessa lógica do divisionismo, o governo lança mão de outro requentado ardil para a busca de aceitação do programa: a chamada adesão voluntária, antecedida por uma “consulta pública”.
Tal como ocorreu em 2011, no governo Dilma Rousseff para a implantação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), a administração pública transfere a decisão para as instituições. E, caso recusem a proposta, ficam sem acesso ao financiamento prometido. Despotismo travestido de suposto participacionismo.
O canto de sereia do investimento privado
Embalado pelos mantras da aludida ineficiência do setor público e amparado no anúncio apocalíptico do colapso do investimento estatal, o governo apresenta como boia de salvação para as Universidades e Institutos Federais, não o investimento privado, mas, especialmente, a gestão privada. É esta, fundamentalmente, a mudança que o PL do Future-se pretende introduzir.
Isso porque, atualmente, já ocorrem diversas parcerias entre as Universidades e empresas privadas. Essas relações se dão pelo intermédio das Fundações de Apoio, regidas pela Lei nº 8.958 de 1994. A Lei de Inovação Tecnológica, de 2004, foi aprovada com o intuito de criar ambientes cooperativos para a produção científica, tecnológica e de inovação, incentivando a interação entre as instituições de ciência e tecnologia aí incluídas as Universidades e as empresas. E o novo marco legal da inovação, estabelecido pela Lei nº 13.243/2016, ampliou ainda mais os mecanismos dessas possibilidades, incluindo arrecadação financeira, por meio das Fundações e compartilhamento de espaços das Universidades por empresas.
O que o Future-se pretende, portanto, é criar um novo intermediário dessas relações entre o público e o privado, na figura das Organizações Sociais, a serem credenciadas pelo governo federal.
Ao criticarmos essa estratégia do governo federal não se pretende negar a relação entre as atividades acadêmicas e potenciais resultados econômicos. É salutar e desejável que a Universidade esteja articulada a um projeto de desenvolvimento econômico e social. Aliás, esse é um dos pressupostos da Lei de Inovação Tecnológica de 2004. O problema é condicionar o financiamento da produção da ciência e da tecnologia aos interesses de quem está disposto a pagar.
Ou seja, é possível que algumas pesquisas, desenvolvimento de produtos ou prestação de serviços encontrem patrocinadores, como já ocorre hoje. Mas, o que ocorrerá com aquelas atividades de ensino, pesquisa, extensão, cultura e produção tecnológica que não obtiverem financiamento privado?
As chamadas pesquisas básicas são fundamentais para o desenvolvimento de investigações mais instrumentais ou no desenvolvimento de produtos. E no mundo inteiro, tais pesquisas que demandam maior prazo de desenvolvimento e maturação, além de envolverem mais riscos e terem resultados mais incertos, contam com o financiamento estatal. Ademais, é preciso lembrar que nem tudo o que a Universidade deve produzir está vinculado aos interesses do mundo produtivo, no sentido estrito. Sua função social envolve várias áreas da formação humana.
E, por fim, a Universidade pública é reconhecidamente responsável pela maior parte da produção científica e tecnológica. Isso tem a ver com investimento público, com regime e condições de trabalho e com um ambiente mais plural e autônomo. Transformar professores em horistas ou mesmo em empreendedores pode, à primeira vista, fazer com que se aumente a produção quantitativa de serviços, mas, fatalmente, desestimulará pesquisas e processos de mais longo prazo, que envolvam mais riscos e ousadia.
Muito aquém do passado
Diversos foram os obstáculos e dificuldades históricas no percurso da construção da Universidade, bem como da produção da ciência e tecnologia, em nosso país. Ainda que não seja possível, pelas limitações do presente artigo, aprofundar a análise desse processo, é inegável que a forma como essas áreas são tratadas diz muito do projeto de desenvolvimento social e econômico que se pretende, em cada tempo e lugar.
A marca elitista e excludente da sociedade colonial e dependente atrasou a gênese dessa arquitetura. Tanto assim que é somente a partir dos anos 1930 que o Estado assume a tarefa de organizar o sistema universitário brasileiro em todo o território nacional, com a finalidade de:
Elevar o nível da cultura geral, estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos; habilitar ao exercício de atividades que requerem preparo técnico e científico superior; concorrer, enfim pela educação do indivíduo e da coletividade, pela harmonia de objetivos entre professores e estudantes e pelo aproveitamento de todas as atividades universitárias, para a grandeza na Nação e para o aperfeiçoamento da Humanidade. (BRASIL, 1931, art. 1º.). Elevar o nível da cultura geral, estimular a investigação científica em quaisquer domínios dos conhecimentos humanos; habilitar ao exercício de atividades que requerem preparo técnico e científico superior; concorrer, enfim pela educação do indivíduo e da coletividade, pela harmonia de objetivos entre professores e estudantes e pelo aproveitamento de todas as atividades universitárias, para a grandeza na Nação e para o aperfeiçoamento da Humanidade. (BRASIL, 1931, art. 1º.).
Esse debate se agiganta nos anos 1950- 60, com a decisiva mobilização dos estudantes pela Reforma Universitária, na direção de instituições voltadas aos interesses da soberania nacional e do povo. Tal efervescência cultural e política é ceifada pela ruptura do golpe de 64.
Paradoxalmente, entretanto, mesmo em tempos de ditadura, o governo militar não abdicou de um projeto centralizador e autoritário, é verdade de desenvolvimento científico e tecnológico, como se lê no II Plano Nacional de Desenvolvimento, publicado em dezembro de 1974:
Juntamente com a política de recursoshumanos, o desenvolvimento científico e tecnológico é considerado, na estratégia de desenvolvimento, muito mais que um simples programa setorial. Ciência e tecnologia, no atual estágio da sociedade brasileira, representam uma força motora, o conduto, por excelência, da ideia de progresso e modernização. Trata-se de colocar o conhecimento moderno, com eficácia e sentido de prioridade, a serviço da sociedade. No campo econômico, o desenvolvimento tecnológico terá, no próximo estágio, o mesmo papel dinamizador e modernizador que a emergência do processo de industrialização teve no pós-guerra. Esse aspecto é importante, principalmente, pela função da tecnologia, de produzir em massa, para, através da adequada distribuição de renda, universalizar o consumo de certos bens e serviços, levando a toda a população o que, em outras épocas, era privilégio de poucos. (…) Em dimensão mais ampla, ciência e tecnologia devem servir aos objetivos gerais da sociedade brasileira, inclusive em seus aspectos sociais e humanos, na garantia da qualidade da vida, na defesa do patrimônio de recursos naturais do País. (…) É necessário preservar o equilíbrio entre pesquisa fundamental, pesquisa aplicada e desenvolvimento, como estágios de um processo orgânico, articulado com a economia e a sociedade. A ausência desse equilíbrio levará necessariamente a distorções. A ênfase excessiva na formação de pessoal e na pesquisa básica conduz a evasão de cérebros e ao isolacionismo do sistema cientifico. A fixação em tecnologia gera o imediatismo e o desbalanceamento das prioridades sociais.” (II PND, BRASIL, 1974, p. 135-6).
Ou seja, o que o programa do governo Bolsonaro almeja não é apenas interromper a ampliação de vagas no ensino superior público, ocorrida na última década, ou mesmo interditar as metas do Plano Nacional de Educação que prevê a expansão da graduação e pós-graduação.
O autodenominado “Future-se” desvela, na sua forma agramatical, um propósito muito mais perverso, que é recuar até antes dos primórdios da república, mesmo dessa inacabada e limitada república.
É em meio a esse caleidoscópio de pretéritos e retrocessos que todos nós, que defendemos a educação pública e o desenvolvimento nacional soberano, temos de encontrar forças para articular ações decisivas que impeçam que se destrua o sistema federal de educação e qualquer promessa de educação nacional e democrática.