ENTRE VENTOS DE INJUSTIÇA: dilemas dos grandes projetos eólicos
É preciso refletir e agir sobre que tipo de energia eólica temos desenvolvido: não é por se tratar de uma matriz renovável que não existam danos ao meio ambiente e às populações locais.
Júlio Holanda: Biólogo formado na Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, professor da rede estadual do Ceará e militante ecossocialista.
Soraya Vanini Tupinambá: Engenheira de pesca e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC, assessora do Instituto Terramar e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Helena Soares: Cientista social pela UECE, presidenta da Associação do Assentamento Sabiaguaba, e integrante da Articulação Povos de Luta do Ceará e da Rede Cearense de Turismo Comunitário.
Construídas em grandes extensões de terra, com um número expressivo de aerogeradores, as usinas eólicas em nosso país alcançam elevadas alturas e se concentram majoritariamente na zona costeira do nordeste brasileiro, onde abundam os ventos alísios. Atualmente, o Brasil está em 6º lugar no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo, um salto significativo da 15ª posição que ocupava em 2012. Segundo dados da Associação que representa as empresas do setor, as usinas eólicas evitaram a emissão de 34,4 milhões de toneladas de CO2 no país.
Em que pese um aumento significativo na instalação de usinas eólicas na última década sob a égide da almejada “transição energética”, é importante ressaltar que a incorporação dessa fonte no Brasil tem ocorrido de forma complementar às não-renováveis e não de modo substitutivo, indicando que a transição energética no país ainda é limitada ou incompleta. Nos últimos 10 anos, ao invés de ser reduzida, a produção nacional de petróleo e gás natural quase triplicou, principalmente em função da exploração desses recursos no pré-sal. Mais recentemente, as movimentações em prol da exploração de petróleo na Amazônia agregam ainda mais preocupação.
Não existe tecnologia “neutra” e tudo é sempre politicamente intencionado
Dito isso, urge refletirmos e agirmos sobre que tipo de energia eólica temos desenvolvido: não existe tecnologia “neutra” e tudo é sempre politicamente intencionado. No caso das usinas eólicas, o modelo adotado no Brasil tem, infelizmente, seguido a cartilha internacional, favorecendo a maximização dos lucros por parte de grandes empresas que, inclusive, colaboraram significativamente com o atual cenário de emergência climática. Para se ter uma ideia, as principais empresas da indústria do petróleo e do setor automobilístico como a Petrobras, Shell, PetroChina, Sinopec, BP, Chevron, Volkswagen, Toyota, Honda, dentre outras, possuem investimentos ou ativos em empresas e/ou usinas eólicas no Brasil e em outros países.
No Ceará, parques eólicos apresentam impactos socioambientais que não podem ser ignorados – © Jose/AdobeStock
A geração de energia eólica tornou-se uma das atividades mais rentáveis no país, com um ambiente seguro e confiável, através das políticas públicas, altas taxas de lucratividade e um marco regulatório flexível. Tratada como “energia limpa”, o fenômeno das eólicas manifesta muito da ideologia do desenvolvimento sustentável, na qual a retórica ecológica pode encobrir os verdadeiros impactos das escolhas realizadas. Não é por se tratar de uma matriz renovável que não existam danos ao meio ambiente e às populações locais. Além disso, muitos componentes, desde as pás dos aerogeradores até as linhas de transmissão, estão baseadas na exigência de matérias-primas e processos que não são “limpos”.
Os impactos socioambientais das usinas eólicas onshore (em terra) no Brasil podem variar de acordo com a localização, características geográficas e contextos específicos de cada região, mas de modo geral incluem profundas alterações nas paisagens e ecossistemas. Usinas em campos de dunas promovem degradação significativa através da terraplenagem, fixação, fragmentação, desmatamento, compactação, alteração da morfologia, topografia e fisionomia dessas regiões. A construção de acessos, plataformas e fundações das turbinas pode levar à compactação do solo, o que afeta a sua qualidade e dinâmica dos ecossistemas, incluindo a vegetação e os processos naturais.
De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento (RAD), divulgado pelo MapBiomas, em 2022, mais de 4 mil hectares da caatinga foram desmatados devido às atividades das usinas de energia eólica e solar, o que inclui as linhas de transmissão. Em muitos parques eólicos, ocorre a redução da disponibilidade de água, dado que as dunas cumprem um papel relevante por filtrarem e armazenarem água em suas bases, alimentando os lençóis freáticos que dão sustentação às lagoas costeiras e ao ecossistema manguezal. A construção e operação das usinas também pode perturbar a fauna local, sobretudo aves e morcegos, que acabam colidindo com as pás das turbinas, e mamíferos como a onça da caatinga.
A indústria eólica também afeta profundamente as comunidades próximas aos locais escolhidos para instalação dos aerogeradores. Por vezes invisibilizadas, essas populações acabam sofrendo com problemas como perda de território, ao terem o acesso a regiões bloqueados, e mudanças na disponibilidade de bens comuns como manguezais, mar, terras agricultáveis, matas, além de situações de subemprego.
Tanto o processo de construção quanto a operação das usinas afetam profundamente a saúde humana: seja pela poeira excessiva das obras, seja pela poluição sonora e visual (efeito sombra ou estroboscópico) dos aerogeradores em funcionamento.
A competição pelo uso da terra entre os empreendimentos e atividades agrícolas, agropastoris e tradicionais pode gerar conflitos locais e os contratos de arrendamento entre eólicas e moradores das áreas rurais têm sido marcado por desigualdades e injustiças que favorecem as eólicas de maneira unilateral. Além disso, a instalação das usinas influencia empregos, preços de terras e serviços na região, impactando a demografia local e resultando em fenômenos migratórios e de abandono parental – são muitos os registros dos chamados “filhos dos ventos”, crianças que nasceram de relações que ocorrem entre moradoras, por vezes menores de idade, com trabalhadores temporários que deixam o parque eólico depois de sua construção.
Impactos sinérgicos e cumulativos de eólicas offshore ainda devem ser propriamente avaliados – © Ocean Winds/Divulgação
Por fim, vale ressaltar que a grande novidade no setor é a expectativa de início da geração de energia eólica em alto mar (offshore). Já existem mais de 70 projetos deste tipo no Brasil em análise pelo IBAMA e os planos apontam um potencial muito superior aos projetos onshore. No Ceará estão previstos 22 projetos offshore, totalizando mais de 3.700 aerogeradores a serem instalados em alto mar, em sua maioria diretamente relacionados com o capital internacional. No caso dos projetos em análise neste estado, estão presentes a BI Energia (Itália), Neoenergia (Espanha), Shell (Reino Unido), Qair (França), Total (França), Equinor (Noruega), Shizen (Japão) e H2 Greenpower (Alemanha).
Os pescadores de algumas comunidades temem os impactos desses empreendimentos para a pesca artesanal, uma vez que os aerogeradores serão instalados próximos da costa, em local de tráfego das embarcações e onde ficam as armadilhas e os cardumes de peixes. Além disso, há o temor sobre a restrição de acesso a áreas marítimas e limitações ao ziguezaguear tradicional das jangadas. Áreas de exclusão ao redor dos aerogeradores (que na modalidade offshore podem chegar a 400m), e os sistemas a eles conexos, podem causar prejuízos inimagináveis e potencialmente irreparáveis à pesca artesanal, ao modo de vida e às relações socioprodutivas locais em toda zona costeira.
Não há no Ceará, e ao que tudo indica em nenhuma outra parte do Brasil, uma análise integrada dos efeitos sinérgicos e cumulativos dos empreendimentos de geração de energia eólica. O licenciamento ambiental analisa apenas os projetos separadamente e as suas implicações sociais, ambientais e econômicas, sem que se investiguem os efeitos somatórios dessas implicações. Trata-se de um caso nítido de racismo ambiental, uma vez que os benefícios e os malefícios dos empreendimentos recaem de forma desproporcional sobre certos grupos sociais: povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, pequenos agricultores, mulheres e demais comunidades tradicionais de um lado; e grandes empresas lucrando de outro.