ENTREVISTA – O PROBLEMA DO LÍTIO
Entrevistadora – Alyssa Battistoni: professora de teoria política da Barnard College (EUA). É coautora de “Um Planeta a Conquistar: a Urgência de um Green New Deal” e membra do conselho editorial da Dissent.
Entrevistada – Thea Riofrancos: professora associada de ciência política da Providence College e fellow do Andrew Carnegie. Autora de “Resource Radicals: From Petro-Nationalism to Post- Extractivism in Ecuador” e co-autora de “Um Planeta a Conquistar: a Urgência de um Green New Deal”.
Estratégia de descarbonização dos transportes tem se centrado fortemente na substituição de carros movidos a gasolina por veículos elétricos recarregáveis. No entanto, com base nos atuais padrões de consumo, apenas para substituir os carros dos EUA, o lítio utilizado nas baterias exigiria, até 2050, três vezes a oferta global existente deste minério – que provém principalmente da Austrália, da América Latina e da China.
Mas se, em vez de um modelo de mera continuidade, os Estados Unidos reduzissem a dependência do automóvel através de transporte público, haveria uma diminuição de 66% na procura de lítio. Esta é uma das conclusões do relatório do centro de pesquisa Climate and Community Project, do qual Thea Riofrancos é a principal autora. Nesta entrevista, originalmente publicada na Dissent Magazine, ela explica as implicações das conclusões deste estudo para pensarmos sobre a política climática e a geopolítica ao redor do lítio.
Alyssa Battistoni: Seu livro Resource Radicals (2020) descreve os dilemas que surgiram em torno das indústrias extrativas no Equador – especificamente, entre movimentos de esquerda que vêem o petróleo e outros recursos naturais como fontes de riqueza nacional, e um movimento anti-extrativista que critica os danos ambientais e sociais associados a esses recursos. A maioria das pessoas provavelmente entende os problemas ambientais da extração de petróleo. Mas com o crescimento das tecnologias renováveis, também temos visto críticas crescentes ao “extrativismo verde”. Como é esse tipo de extração e como funciona a dinâmica política? Como é este tipo de extracção e como sua dinâmica política se compara àquelas que estudou no que diz respeito ao petróleo? O capitalismo pode realmente ser verde?
Thea Riofrancos: Tornou-se claro que combater as mudanças climáticas significa deixar para trás a extração de combustíveis fósseis, enquanto se expandem os setores extrativistas que servem de matéria-prima para produção para “tecnologias verdes”. Existem muitos dilemas e conflitos sociais em torno desta transição. Cabe à esquerda climática alinhar os objetivos de combate às mudanças climáticas e garantir justiça em todos os nós da cadeia de abastecimento das tecnologias utilizadas nessa luta.
A mineração em grande escala é um setor econômico importante a nível mundial; fornece as matérias-primas para muitas tecnologias, bens de uso diário e infraestruturas. O cobre, por exemplo, já é uma grande indústria com muitos usos finais diferentes. Mas irá tornar-se maior no futuro, porque é essencial para o cabeamento, e o cabeamento é essencial para a eletrificação, incluindo para os veículos elétricos (VEs), as suas estações de carregamento e as linhas de transmissão que ligam essas estações às redes. As necessidades de água para a extração de cobre também aumentarão, num mundo cada vez mais seco. A mineração também tem um dos piores registros de direitos humanos entre os setores econômicos. Na América Latina, ativistas que protestam contra as operações minerárias são frequentemente mortos, tanto pela segurança privada como pelas forças estatais. No início deste ano, vários ativistas mexicanos desapareceram, provavelmente porque estavam envolvidos em atividades anti-mineração.
Para os metais industriais mais importantes, os produtos finais são utilizados por uma percentagem muito pequena da população global. Se o produto final do mineral traz ou não um benefício ambiental, social ou econômico, o fato é que as comunidades que são imediatamente afetadas pela mineração normalmente não o vêem. As minas proporcionam alguns empregos, que são importantes, especialmente em comunidades rurais economicamente deprimidas. Mas os empregos são sazonais, transitórios, não são bem remunerados e estão sujeitos às volatilidades do mercado de commodities. Houve demissões em massa durante a pandemia, quando os mercados de gás, petróleo e carvão quebraram. Os setores da mineração vão mudar quando estes metais forem utilizados em tecnologias e infra-estruturas que apoiam um sistema de energia renovável? Não espero ver uma transformação profunda. Mas a intersecção entre as tecnologias de extração e as tecnologias climáticas está exercendo uma nova pressão sobre a indústria da mineração. Está tornando as pessoas mais conscientes de que as mineradoras multinacionais não são salvadoras do clima. Muitas destas empresas ainda possuem ativos de carvão, por exemplo.
Embora as empresas mineradoras estejam habituadas ao escrutínio de ativistas militantes anti-mineração, estão menos habituadas à pressão da outra parte da cadeia de abastecimento, seja dos seus investidores que anunciaram compromisso com a princípios ambientais, sociais e de governança (ESG, pela sigla em inglês), ou de consumidores verdes. As empresas mineradoras e, até certo ponto, as empresas automobilísticas, sentem-se assediadas por críticas de todos os lados.
Mineração de lítio pela Sigma Lithium no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais © Divulgação Sigma
Alyssa Battistoni: Você e outros pesquisadores do Projeto Clima e Comunidade publicaram um relatório argumentando que podemos descarbonizar o transporte e ao mesmo tempo aumentar a mobilidade com menos mineração de lítio. Isto é muitas vezes enquadrado como um trilema, no qual é possível cumprir dois dos três objetivos – descarbonizar, aumentar o transporte e a mobilidade ou diminuir a mineração – mas não todos os três. Ouvimos frequentemente que, como as mudanças climáticas são tão urgentes, descarbonizar o mais rapidamente possível deve ser a prioridade, e se o custo for mais mineração, que assim seja. Você argumenta, por outro lado, que há uma maneira de ser ao mesmo tempo pragmático e justo na descarbonização dos transportes, que é hoje a principal fonte de emissões de carbono nos Estados Unidos. Como seria isso?
Thea Riofrancos: O relatório não diz que não existe um trilema, mas sim que pensar nestes três objetivos em conjunto permite-nos reduzir os prejuízos entre eles. Muitas vezes, as soluções propostas para melhorar os setores extrativistas centram-se nos locais imediatos de extração. Mas, por outro lado, a extração não começa na mina. As decisões que impulsionam a extração acontecem mais abaixo da cadeia de abastecimento. Penso nos problemas ou danos da extração como o produtos de decisões tomadas em Wall Street e em Pequim, Washington, D.C. e Bruxelas, onde os governos, as políticas públicas e, em teoria, as maiorias democráticas possuem, todos, um papel na determinação do futuro da transição energética.
E as intervenções políticas que poderiam reduzir a mineração têm a ver com o fato de se viajar de ônibus ou de carro. Isto pode não parecer diretamente relacionado com o que está acontecendo no deserto do Atacama, no Chile, de onde se origina um quarto do lítio mundial, mas está. Durante muito tempo, os ativistas climáticos progressistas e até radicais enquadraram o futuro como uma escolha binária: ou permanecemos com o status quo ou eletrificamos totalmente e passamos para as energias renováveis. Há boas razões para falar nestes termos, porque essa escolha básica é extremamente arriscada. Mas, pouco a pouco, grandes economias estão no caminho de se afastarem dos combustíveis fósseis como principal fonte de energia. Não devemos subestimar a necessidade de confrontar, política e economicamente, a indústria dos combustíveis fósseis, mas uma vez que estamos no caminho da transição energética, torna-se evidente que há muitas transições energéticas possíveis.
Tão crítica como a escolha entre o capitalismo fóssil e o capitalismo verde é a escolha entre o capitalismo verde não regulado, ou um capitalismo verde mais socialmente progressista, ou a social-democracia verde, ou o ecossocialismo. Diferentes lutas, diferentes conflitos e diferentes resoluções provisórias colocarão as sociedades em caminhos diferentes para a transição energética. O nosso relatório aborda apenas um setor – transportes – e nem sequer considera a possibilidade de não o eletrificarmos. (Eu adoraria ver relatórios semelhantes sobre outros setores econômicos que precisam de ser descarbonizados e outros conjuntos de cadeias de abastecimento e insumos materiais, juntamente com relatórios que estimem a que ritmo iremos descarbonizar totalmente.) Assumimos um país eletrificado, 100% de emissões zero em 2050, e delineamos quatro cenários diferentes.
Um deles é basicamente o status quo, mas eletrificado. Os outros três abordam cada vez mais o setor de transportes; eles enfrentam a dependência do carro cada vez mais diretamente. No cenário mais ambicioso, chegamos a uma sociedade que tem muito menos utilização de automóveis, muito menos propriedade de automóveis, mais densidade e menos expansão. No primeiro cenário, trocamos todos os carros com motor de combustão interna por um VEs e adicionamos mais veículos para dar conta do crescimento econômico e populacional. Não mudamos as rodovias, a expansão suburbana ou o fato de os estadunidenses terem que possuir carros para poderem participar plenamente na sociedade.
Depois começamos a implementar mudanças: e se uma porcentagem mais elevada de estadunidenses usassem ônibus, caminhasse ou andasse de bicicleta, em vez de usar carros? E se menos estadunidenses possuíssem carros? E se nossas regiões metropolitanas fossem um pouco mais densas? Começamos a construir estes mundos diferentes e vimos que existem diferenças significativas na quantidade de matérias-primas – no caso deste relatório, o lítio – necessárias para suprir cada um desses futuros. Existem tantos pontos de ramificação; poderíamos ainda depender do carro, mas ter carros menos gigantescos, por exemplo, e isso faria uma grande diferença em termos de tamanho da bateria e demanda de lítio. Todas estas intervenções políticas e de investimento são realmente importantes quando se trata de quanto de recurso é necessário para atingir emissões zero.
Sigma Lithium está transformando o Jequitinhonha no Vale do Lítio © Divulgação Sigma
Alyssa Battistoni: O relatório afirma que o volume de extração não é um pressuposto”, porque é possível mudar para modos de transporte menos intensivos em recursos e que exigiriam menos extração. Mas também argumenta que a própria linguagem dos escassos “minerais críticos” pode alimentar uma corrida para desenvolver a mineração e outros tipos de extração. Modelos podem parecer muito técnicos e enfadonhos, mas vocês argumentam que eles afetam o modo como as pessoas agem no presente e, portanto, moldam o futuro.
Thea Riofrancos: Um dos meus maiores interesses é saber até que ponto os modelos e previsões têm consequências políticas. A esquerda produz muito poucos modelos próprios. Isso não quer dizer que precisamos viver numa realidade alternativa ou ter modelos baseados em números diferentes, mas precisamos saber como eles são construídos. Como você está definindo uma variável? Qual é a sua fonte de dados? Essas suposições são informadas pelas localizações institucionais e, em alguns casos, pelas prerrogativas financeiras ou políticas da agência ou organização que está fazendo a modelo – sejam as Nações Unidas, o Banco Mundial, empresas de commodities e de análises, ou a Agência Internacional de Energia. Eles sempre perguntam: “Como podemos mudar o mínimo?” Talvez seja uma prova de quão hegemônica é a cultura do automóvel, ou de quão reticentes são os formuladores de política, os funcionários e os burocratas das agências de elite. Se se tratam vendas que tornam certas questões inaplicáveis ou de desejos de preservar o máximo possível do status quo, o fato é que isso resulta em que os modelos existentes de demanda de matérias-primas não são muito úteis se o seu objetivo é reduzir os danos da mineração. Basicamente, todos dizem: precisamos de muitos minerais, precisamos deles rapidamente, e precisamos deles em todos os lugares onde possamos obtê-los. Não se pensa no planejamento holístico, no que é realmente necessário ou no melhor uso de diferentes cenários. Quando digo que a esquerda precisa dos seus próprios modelos, é porque os modelos são uma ferramenta política, influenciada por ideologias, e moldada e financiada por interesses econômicos que se servem das suas conclusões. Não deveríamos falsificar as coisas, mas deveríamos fazer perguntas diferentes, fazer suposições diferentes, identificar parâmetros distintos e mostrar, empiricamente, que futuros diferentes são possíveis e que há algum peso quantitativo por trás deles.
Alyssa Battistoni: Voltemos ao lado do abastecimento. O relatório fala sobre onshore – o impulso para desenvolver novas minas de lítio no Norte Global, particularmente em Nevada (EUA), bem como em países europeus como Portugal. O trabalho sobre o extrativismo centra-se frequentemente na forma como o Sul Global é tratado como uma fonte de recursos naturais de baixo valor que o Norte Global utiliza para produzir bens manufaturados de valor agregado. A extração onshore muda um pouco essa dinâmica, mas a distribuição desigual dos benefícios dos recursos extraídos pode persistir mesmo quando os recursos são extraídos dentro do mesmo país onde os bens são produzidos. O que a extração onshore significa para o extrativismo, as cadeias de abastecimento e a geopolítica climática?
Thea Riofrancos: Há duas mudanças que vejo ocorrendo. Uma delas é o desejo dos governos dos países ricos de explorar minerais em seu próprio território (onshore), numa corrida pelo domínio verde e pela segurança da cadeia de abastecimento. Haverá cada vez mais projetos mineiros na Europa, Canadá, Estados Unidos e outros locais mais próximos de onde ocorre o consumo final. A segunda é que estamos assistindo a uma reintegração das cadeias de abastecimento. É uma mudança de regresso a um modelo fordista, em que as empresas automóveis incorporaram a extracção de matérias-primas nas suas empresas para terem um acesso territorialmente mais seguro. Estas medidas redesenham a geografia da extração e da produção e têm algumas implicações para o ativismo em torno das cadeias de abastecimento.
A extração onshore tem sido uma ideia nos círculos políticos – tanto dos falcões da segurança como dos pensadores econômicos heterodoxos – há mais de uma década. Começou durante o período de explosão das commodities, que durou cerca de 2000 a 2014, e também coincidiu com a ascensão de novas potências industriais e com a política industrial chinesa que garantiu cadeias inteiras de abastecimento de matérias-primas. Esta foi uma mudança em relação ao pensamento sobre a organização da cadeia de abastecimento que vimos durante o período de hegemonia neoliberal. As elites políticas nos Estados Unidos e na União Europeia começaram a considerar políticas industriais que garantiriam o acesso às matérias-primas e a repensar a cadeia de abastecimento globalmente dispersa. Mas estas ideias permaneceram sem muito apelo político. Depois aconteceu a pandemia e o início da transição energética. As cadeias de abastecimento foram colocadas sob os holofotes do público pela primeira vez. De repente, estava na moda a ideia de que onshore e política industrial são um meio de revigorar a produção manufatureira, de ajudar a resolver alguns problemas políticos causados pela desindustrialização e de criar uma economia menos volátil. Onshore e política industrial tornaram-se populares no Ocidente. As elites de todo o espectro político alinharam-se por onshore, seja para a mineração, seja para indústria manufatureira, ou ambas. Parecia resolver uma série de problemas políticos, geopolíticos, econômicos e sociais. Hoje, existem vários atos legislativos nos Estados Unidos que incentivam diretamente a extração de minerais críticos dentro das jurisdições de governos do Norte Global.
Alyssa Battistoni: O que isto significa para a luta contra as mudanças climáticas, para a produção de tecnologias verdes e para a justiça social e ambiental?
Thea Riofrancos: Há uma linha de pensamento entre alguns ativistas climáticos dos EUA de que onshore é uma coisa boa, por algumas razões. Uma delas é que queremos incentivar a produção de tecnologias verdes, porque precisamos delas para fazer a transição para energias renováveis. Outra é que reforçar a extração no Norte Global é uma forma de abordar a desigualdade da extração. Em vez de importar metais de uma zona de conflito distante, estamos extraindo no nosso próprio quintal e pagando os custos ambientais.
“Lítio para hoje, fome para amanhã” – indígenas protestam na província argentina de Jujuy © jujuydice4222/YouTube
Há, absolutamente, um papel a ser desempenhado pelas políticas públicas e pelo investimento público para garantir que produzamos as tecnologias necessárias para combater as mudanças climáticas. Também estou ciente de que a geografia da extração é extremamente desigual, por isso vale a pena pensar em como redistribuir os danos e benefícios da extração. O que considero incorreto, porém, é a ideia de que a abertura de uma mina em Nevada promova a causa da justiça global. É importante observar onde as minas estão sendo abertas, os seus impactos ambientais e o “nós” que está sendo afetado. O proprietário da Tesla no Vale do Silício não é afetado pela mineração em Nevada. Estamos falando de periferias rurais ou sertões que há muito servem como locais de extração e sofrem de formas extremas de danos ambientais. Pense nos testes nucleares e na mineração de urânio que aconteceram em Nevada. Um dos locais de minas que analisamos no relatório foi o local de um massacre de povos indígenas perpetrado por soldados estadunidenses. Existem camadas de história, danos e sacrifícios que não são muito diferentes das formas de violência perpetradas contra o Sul Global.
Os ativistas em Portugal, Espanha, Nevada, Argentina e Chile vêem pontos em comum não apenas em termos dos danos da extração, mas também em termos de quem – marginalizados e muitas vezes, mas nem sempre, povos indígenas – paga o preço ambiental e social. As fronteiras do Norte e do Sul globais ficam um pouco mais difíceis de manter quando se trata de dois grupos de povos indígenas nas Américas que sofreram os danos da mineração ao longo dos séculos.
No mínimo, deveríamos ser honestos sobre quais as empresas que estão enriquecendo e sendo subsidiadas por estas novas formas de parceria público-privada, quais as comunidades que estão pagando o preço e qual é a relação de poder entre esses atores.
A versão original e completa desta entrevista pode ser acessada em dissentmagazine.org – Tradução e versão para o Português por Pedro Charbel