ENTREVISTA – PETRÓLEO NA FOZ DO AMAZONAS
Entrevistada – Hannah Balieiro: Mulher amazônida, bióloga, ativista e educadora popular. Compõe a diretoria do Instituto Mapinguari e a comissão executiva da COP das Baixadas.
Entrevistado – Elias Sampaio: Bailiquiense, pedagogo, artista visual, e presidente do Conselho Comunitário da Associação Gira Mundo no Bailique. É diretor pedagógico administrativo da Escola Estadual Igarapé Grande do Curuá.
Entrevistador – Thomaz Tavares: Amazônida do Amapá, socioambientalista e advogado popular.
Depois de ter um pedido de autorização negado pelo Ibama para explorar petróleo na Bacia da Foz do Amazonas em maio de 2023, a Petrobrás entrou com uma nova solicitação, ainda no ano passado. De acordo com a empresa, há a possibilidade de explorar 14 bilhões de barris de petróleo na região que se estende do litoral do Amapá até o Rio Grande do Norte.
Esta intenção de exploração levanta questionamentos sobre a preservação da biodiversidade deste bioma e dos impactos socioambientais mais amplos. No contexto de uma busca urgente por uma transição energética justa, eficaz, e que respeite o modo de vida dos povos da floresta, Thomaz Tavares conversa com Hannah Baileiro e Elias Sampaio sobre o que está em jogo e como é a vida na região.
Thomaz Tavares: Quais são as perspectivas de uma possível exploração de petróleo na foz do Amazonas, considerando as preocupações ambientais e as mudanças no cenário energético global?
Hannah Balieiro: É um cenário muito preocupante, porque os estudos internacionais, como os do IPCC, que é o grupo de pesquisadores dentro da Convenção Quadro das Nações Unidas pelo Clima, apontam que o planeta não tem condições de abrir novas fronteiras de petróleo, mas sim deve ir gradativamente desativando as já existentes.
Especificamente para o estado do Amapá, é mais preocupante ainda, porque além desta perspectiva, existem outros grandes empreendimentos de extração e de exploração de mineração, de combustíveis fósseis e até mesmo de geração de energia considerada sustentável e renovável, como são as hidrelétricas.
As hidrelétricas não podem ser entendidas como energia limpa já que acabam impactando muitas comunidades e não são entregues de maneira justa para a população local: seja a esse nível de impactos ou seja em relação ao valor, o preço que é cobrado por essa energia da população local.
Os produtos que são gerados e são exportados, os bônus desse processo que são para poucos, não são distribuídos de forma igualitária entre a população. As populações já são impactadas por esses grandes empreendimentos e agora nós temos a perspectiva de trazer mais um grande empreendimento ao estado do o Amapá, o qual que tem muito mais possibilidade de ser uma nova Belo Monte do que ser um novo pré-sal, como muita gente tem colocado.
Por conta da movimentação de embarcações e de sondas é muito comum que animais, peixes, animais marinhos no geral, se afastem da região e além disso existe a presença de recifes de corais que ainda são pouco estudados e que são ecossistemas extremamente sensíveis e que podem ser muito facilmente afetados por conta dessa movimentação de perfurações.
Nesse sentido, é importante resgatar o conceito de sócio-biodiversidade que a Amazônia traz, né? Trazendo esse “social” dos diversos modos de vida que a Amazônia traz.
É importante colocar no holofote também os impactos sobre as comunidades pesqueiras e indígenas que podem ser afetadas direta e indiretamente, e que tem essa relação econômica muito forte com o ecossistema local, né? Se você afasta os peixes de uma região, como é que fica a pesca de quem trabalha nessa região?
Então se você tem vazamentos de óleo ou que se acidentes acontecem também nessa região, como isso prejudica a qualidade da água, os manguezais e toda a região costeira?
Foz do Amazonas abrange o litoral do Estado do Amapá e parte do Estado do Pará – © Coordenação Geral de Observação da Terra/INPE
Thomaz Tavares: Elias, você vive justamente nesta região, na Ilha do Curuá. Como é a vida por lá?
Elias Sampaio: Na Ilha do Curuá, eu moro na Comunidade de Igarapé Grande do Curuá. Essa parte do Arquipélago de Bailique, no Amapá, é uma área bem costeira. O rio Amazonas passa bem em frente, moramos logo no início da foz. A força das águas que “empurra”, mais ali, alguns quilômetros à frente, o imponente oceano. É isso que faz com que a nossa comunidade não seja atingida, pelo menos por enquanto, pela água salgada.
Nossa comunidade é rica em peixe, diversos tipos de peixes. Meu pai, graças a Deus, tem emprego, eu, depois de formado, recentemente, tenho emprego, mas a pesca sempre esteve ali, desde quando não tínhamos nada, nunca conseguimos nos distanciar da pesca, afinal, faz parte do nosso cardápio e também é de onde tiramos um extra. Mas, grande parte das famílias não têm a mesma oportunidade de ter um emprego, então, vivem da pescaria (peixe, camarão), da tiração de açaí e da extração de óleo de pracaxi. O Bailique é um grande fornecedor de peixe para Macapá.
Na minha comunidade, o fenômeno das “terras caídas” tem uma intensidade menor, mas em muitas outras comunidades ele é assombroso. Meus avós moram na Vila Progresso. Eles tinham uma casa bem grande em um terreno maior ainda, bem na beira do rio. Nossa! Eu lembro que tinha um campo de futebol e uma área com muitas plantas. Eu adorava ir passar as férias lá. Com o tempo, aquela área começou a cair, mas, era algo lento, natural, como é natural o fenômeno das “terras caídas”… Mas agora foi intensificado pela ação do homem!
Houve uma época em que estive em Macapá estudando e trabalhando muito, então passei bastante tempo sem ir lá. Foi nesse meio tempo que o fenômeno das “terras caídas” se intensificou e muita coisa foi por água abaixo, literalmente. Lembro quando a minha mãe me disse que meus avós já não moravam lá e que tudo tinha caído. Eu pensei assim: “Não! Acho que não deve ser assim, não. Deve ter restado alguma coisa por lá.” Eu nem consigo descrever a minha reação quando vi que não existia qualquer indício de que um dia meus avós moraram ali! E que todas essas histórias e cenários não existiam mais ali. A minha avó disse que foi em questão de dias para o rio levar tudo embora, do nada!
Na minha comunidade, como disse antes, as “terras caídas” acontecem muito mais lentas, mas mesmo assim, eu tive minha casa atingida. Embora, numa velocidade muito mais lenta onde foi possível se organizar para sair de lá.
Agora vamos à energia. O que torna mais complexa a situação da falta de energia elétrica é que a rede, o famoso “linhão”, foi construída por iniciativa dos próprios moradores com o mínimo do mínimo em relação a investimento de infraestrutura. As “terras caídas” tornam tudo mais desafiador. Imagine um local onde o fenômeno é mais intenso e um poste que ficava dentro da mata e agora está na beira do rio prestes a cair: escuridão na certa.
Thomaz Tavares: E falando em energia, como você vê a perspectiva de exploração de petróleo nesta região da foz do Amazonas?
Elias Sampaio: As tomadas de decisão não chegam até essa população ou quando chegam são em um caráter meramente paliativo. As pessoas vivem me perguntando e eu já vivo impaciente em explicar tudo, porque existe uma normalização histórica da situação: “sempre foi assim”. Tentam nos silenciar, mas gosto de fazer as pessoas refletirem sobre como é viver sem energia elétrica: água gelada, a luz na lâmpada clareando a casa em uma noite muito escura, o ventilador aliviando o calor de um dia muito quente ou um momento de distração assistindo uma novela um filme… essas são as primeiras situações que as pessoas imaginam que não teremos a partir da falta de energia elétrica. Mas vai muito além disso! Imagine não ter como conservar alimento, aquele pescador que tem que vender seu peixe mais barato para o “atravessador” porque não tem onde manter seu peixe fresco, não ter o soro antiofídico porque precisa ser mantido em refrigeração e para uma região dentro da Amazônia onde os incidentes com animais peçonhentos não são raros, isso seria o mínimo! A falta de energia afeta, também, a dignidade das mulheres. Quando a energia elétrica não está ali para facilitar suas vidas, quando são elas, muitas vezes, as responsáveis por tarefas exaustivas manualmente: encher água, lavar roupa, etc. Mas, na tentativa de conscientizar mais as pessoas eu sempre digo isso: fique um dia sem energia e me conte depois.
Algumas pessoas falam em desenvolvimento. Desenvolvimento para quem? E eu ainda pergunto: desenvolvimento ou extermínio? A desculpa que isso vai gerar empregos é muito descarada
Agora pense, com todos esses desafios que enfrentamos diariamente, o que será das nossas vidas com exploração de petróleo perto do nosso rio? De certeza, a perfuração do leito do rio (ou próximo do leito da foz) já afetará, imediatamente, a procriação dos nossos peixes e o ambiente onde eles vivem. O iminente vazamento de petróleo em um ponto que fica só alguns quilômetros da minha casa, só levará algumas horas até chegar a nós, isso porque é alta a velocidade da maré e ela leva tudo e trás tudo. Algumas pessoas falam em desenvolvimento. Desenvolvimento para quem? E eu ainda pergunto: desenvolvimento ou extermínio? Não dá para ficarmos calados convivendo com todas essas problemáticas e mazelas e virem falar em desenvolvimento. A desculpa que isso vai gerar empregos é muito descarada. Tenho certeza que esses empregos não seriam para nós e mesmo que fossem! Eu, pelo menos, jamais aceitaria que destruíssem meu lugar e a nossa história e depois pusessem as armas nas minhas mãos.
Hannah Balieiro: A Petrobras ainda está solicitando esse processo de licenciamento da perfuração para o próprio bloco 59, que já havia sido negada outras vezes, não só neste ano, mas muitas outras vezes em anos passado. Este é um processo que corre desde 2018 e, justamente por não cumprir as normativas técnicas exigidas pelo Ibama, ainda não foi concedida a liberação. Nesse momento pós-Diálogos Amazônicos e Cúpula dos Países Amazônicos, é muito frustrante para a comunidade socioambiental não conseguir enxergar um posicionamento claro que direcione ao fim da exploração de combustíveis fósseis na região amazônica. Não existe nenhuma menção ao fim dos combustíveis fósseis na declaração dos países amazônicos, então fica tudo muito de uma forma genérica dentro da declaração, ao invés de apontar caminhos mais claros de como fazer essa transição energética na região amazônica de uma maneira que seja justa.
Simulação do Ibama aponta que vazamento de petróleo na Foz do Amazonas pode impactar 9 países
Thomaz Tavares: Houve uma audiência pública no Oiapoque, onde senadores e deputados do Amapá defenderam a exploração petroleira como alternativa de desenvolvimento da região, escancarando a falta de representatividade socioambiental no campo político do Amapá. Como isso pode comprometer o futuro do estado?
Hannah Balieiro: É escancarado que existe uma hegemonia no cenário político do Amapá. Nenhum de nossos representantes políticos se posiciona contra a exploração de petróleo. É muito comum a gente ouvir discursos de nossos representantes políticos também em contra da conservação do estado do Amapá. O Amapá tem 73% de áreas protegidas e isso não consegue ser visto enquanto uma oportunidade! Principalmente no cenário de crise climática que nós temos hoje, no cenário global, das negociações globais, isso deveria ser algo a ser olhado como uma vantagem! Procurar estratégias a partir da conservação. O estado do Amapá é um dos que menos emite carbono no Brasil inteiro e isso não é visto pelos nossos governantes enquanto uma oportunidade, uma possibilidade da gente pensar uma nova economia voltada para uma qualidade de vida e para a conservação também.
Isso deixa o estado indo na contramão de uma agenda global. Mundialmente, a gente tem, através das negociações internacionais, o Acordo de Paris sendo o nosso principal guia para um futuro em que a gente não atinja o ponto de não retorno da Terra. E ele aponta para que a gente segure as nossas emissões de gás carbono para que a gente não ultrapasse o aumento da temperatura global para mais de 1,5°C. Então, isso é uma oportunidade, a gente pode olhar para o estado do Amapá como um dos estados mais conservados do Brasil e, dentro desse cenário global, entender isso enquanto vantagem, não enquanto desvantagem.
Nas negociações internacionais, o Brasil sempre teve um posicionamento extremamente importante, porque coloca dentro da agenda internacional, desde os debates lá na Eco 92, o conceito de sustentabilidade. Então o Brasil tem essa responsabilidade internacional. Enquanto o Amapá poderia estar sendo um estado modelo, pensando uma nova economia baseada na conservação, ele acaba se tornando um estado que quer ir contra esse movimento global de redução das emissões de carbono.
Thomaz Tavares: E como as comunidades locais que dependem dos recursos naturais na foz do Amazonas estão sendo consultadas e envolvidas nas decisões sobre a exploração de petróleo?
Hannah Balieiro: Até o momento não houve nenhuma consulta.