Yuri Silva
Primeira mulher transexual eleita para o Congresso Nacional, Erika Santos Silva, a Erika Hilton, obteve 256.903 votos no estado de São Paulo nas eleições de 2022. Os votos que ela recebeu a colocaram na 9ª posição entre os parlamentares mais votados do maior estado do Brasil. Mas, mais do que isso, posicionaram a garota de Franco da Rocha, vítima de tantos preconceitos e transfobia ao longo da vida, num lugar bem localizado na história da política nacional.
Ao lado de Duda Salabert, do PDT de Minas Gerais, que também foi eleita deputada federal, Erika Hilton levará a pauta LGBTQIAP+ para o Congresso Nacional de forma inédita, numa bancada da diversidade ainda tímida, mas que, diz ela, ainda será maior que a bancada do retrocesso. “Estamos plantando e semeando para as próximas gerações”, afirma a parlamentar do PSOL-SP.
Com a potência política de seu próprio corpo, vivências e construções políticas, a pedagoga que tornou-se vereadora de São Paulo com uma votação histórica em 2020 promete transpor as pautas que carregou na Câmara Municipal para o nível nacional, com uma atuação ampla. Mais do que somente a pauta da diversidade e dos direitos de travestis e transexuais, Hilton lista como suas prioridades a defesa da cultura, o combate à fome, a educação, as pautas climáticas e a segurança.
Símbolo de uma nova esquerda que emerge no Brasil, Erika Hilton defende, ainda, nesta entrevista exclusiva para a Revista Socialismo e Liberdade, a renovação da forma de fazer política, o retorno dos setores progressistas “às bases” e a utilização de uma linguagem mais simples para abordar assuntos complexos. E diz que bradar reivindicações importantes sem uma abordagem pedagógica sobre a população pode dar espaço para discursos extremistas de direita contrários a nossas pautas.
Yuri Silva: Como estão sendo os primeiros dias como deputada federal eleita?
Erika Hilton: Eu ainda estou vivendo como vereadora, vindo à Câmara, fazendo as coisas de vereadora… Eu ainda não tive esse momento de viver como deputada eleita, ainda estou vivendo como uma vereadora. Acho que a única coisa que eu tenho feito como deputada eleita é tentando virar voto para a gente conseguir eleger o Lula presidente e Haddad governador de São Paulo agora no segundo turno. Essa tem sido a minha tarefa mais próxima de uma deputada.
YS: Essa edição da Revista Socialismo e Liberdade é histórica e um dos motivos é essa entrevista, com a primeira deputada federal transexual eleita para ocupar uma cadeira na Câmara Federal, no Congresso Nacional. Como é que você se sente, Erika, nesse lugar? Já caiu a ficha?
Erika: A ficha está caindo aos poucos. Acho que ainda tem bastante ficha para cair. Estou vivendo, indo e acontecendo, mas a sensação é de um resgate histórico de uma humanidade, de vitória contra um processo de exclusão, de marginalidade e silenciamento. É a sensação que eu tenho carregado mais forte comigo nesse momento. Eu me sinto vingada pelas minhas, eu me sinto vingada, eu me sinto abrindo um caminho que durante muitos anos nós, enquanto movimento, batalhamos para abrir. Eu me sinto impactada por ser o meu corpo, a minha voz que se levanta neste momento tão conturbado da nossa história, por ser parte de um grupo tão vulnerável que é o grupo de pessoas trans e travestis no Brasil e a minha voz se levantar para ocupar um assento dentro do Congresso Nacional. Mas eu não tenho ainda a noção da dimensão que isso representa, eu ainda nem sei dizer ao certo como eu me sinto, como eu acho que vai ser tudo isso. Mas de fato eu sinto que nós viramos uma página e temos muitas outras para serem viradas, nós temos muito o que fazer ainda. Nós chegamos nesse lugar pela primeira vez e essa chegada é reflexo de toda uma luta histórica, ancestral, que me antecede e me impulsiona para esse lugar. E é com essa sensação que eu fico, a sensação de que eles não me mataram, eles não me calaram e agora terão que me engolir.
YS: Além de você, a Duda Salabert, do PDT, também foi eleita por Minas Gerais, nesse lugar de bancada das trans. Outras mulheres trans disputaram e não elegeram. Vocês duas fizeram história, mas ainda é pouco diante do tamanho da reparação que o Brasil tem a fazer com a população LGBTQIAP+, sobretudo com a população ‘T’. Você acha que vai viver o momento em que a bancada da diversidade será maior do que a bancada do retrocesso?
Erika: Acho que nós estamos dando passos importantes para essas mudanças. A humanidade passou por inúmeras mudanças. A nossa sociedade está passando por uma mudança extremamente ruim e eu acho que as mudanças ruins também trazem, logo ali na frente, mudanças positivas, porque as pessoas começam a compreender coisas para além de suas caixinhas. Acho que a chegada das primeiras parlamentares trans ao Congresso Nacional significa, sim, uma transformação, significa uma mudança. Nós vamos encontrar muita resistência, muito enfrentamento, não vai ser da noite para o dia, não vai ser já na próxima legislatura que nós veremos isso [uma bancada da diversidade grande], mas eu tenho certeza de que isso é um passo importante, é um passo importante de ocupação dos espaços de poder por esses grupos sociais e é um passo importante para que a gente aumente a nossa participação e a nossa presença nesse lugar. Então eu sonho, sim, e acredito que será possível. Talvez a minha geração não veja, mas nós estamos plantando e semeando frutos para que as próximas gerações possam ver. E eu acredito nisso, afinal são esses frutos e essa esperança, de esperançar, que me motivam, me impulsionam e que me movimentam para continuar ocupando esse lugar. Então eu acho que nós temos que acreditar nisso sim e que será possível.
YS: Além da pauta da diversidade, do respeito à identidade de gênero e à sexualidade, você é uma parlamentar, na Câmara Municipal de São Paulo, que leva à frente outras pautas que dizem respeito à democracia e ao combate às desigualdades. Como é que você vai conseguir fazer isso também em âmbito nacional, no Congresso? Como você conseguirá transpor a sua luta sobre essas outras pautas para nível nacional?
Erika Hilton: Acho que vai ser até mais fácil. Acho que, quando a gente começa a falar sobre a fome, sobre população em situação de rua, sobre sucateamento da educação, sobre saúde, a gente vai conseguir, talvez, caminhar muito mais fácil do que a gente vai conseguir caminhar nas pautas que são caras para a comunidade LGBTQIA+. Isso porque hoje no Brasil existe um ódio gratuito à nossa comunidade e esse ódio está muito enraizado dentro do parlamento. Para mim, é de suma importância conseguir levar essas pautas, como as questões de raça, gênero e sexualidade, mas também debater e discutir outros temas que são importantes dentro do modelo de sociedade que eu defendo, dentro do modelo de sociedade que eu acredito e dentro daquilo que eu acho que deve ser central na discussão desse país. Eu cito como exemplo o enfrentamento à fome, o enfrentamento às crises climáticas, a diminuição da população em situação de rua, a questão do encarceramento em massa no nosso país, a violação dos direitos humanos. Eu pretendo abordar todas essas temáticas e mostrar ao Congresso Nacional que eu não serei uma deputada de pauta única, assim como eu não fui uma vereadora de pauta única e incidi nas mais diversas pautas. Fui a vereadora que construiu o Fundo Municipal de Combate à Fome, atuando diretamente com a questão da fome, presidi a Comissão de Direitos Humanos e nós trabalhamos com imigração, trabalho análogo à escravidão, entre tantos outros temas que envolviam as questões dos direitos humanos, não se limitando ao olhar que o racismo e a LGBTfobia impõem a nós que só sabemos ou falaremos de um único tema. Não sei falar apenas de um único tema e não falarei apenas de uma única coisa.
YS: Você presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo, como vereadora, o que é um prestígio. Há quem passe legislaturas e legislaturas sem aprovar um projeto, como é o caso do presidente que infelizmente governa o Brasil. E há também quem sofra dificuldades para legislar porque passa por interdições no parlamento. Como você está se preparando para não sofrer interdições na sua atuação em meio a tantos parlamentares homens, brancos, das bancadas da bala, da bíblia e do boi, na Câmara Federal, e conseguir ter destaque na sua legislatura?
Erika: Eu ainda não estou me preparando para esse momento, porque eu ainda estou focada no segundo turno, ainda estou em campanha, ainda não consegui nem assimilar o que de fato me espera no Congresso Nacional. E eu sei que não será algo fácil, pois essas bancadas estão lá a todo o vapor tentando nos silenciar, nos intimidar, nos congelar, nos boicotar. O Congresso Nacional é uma máquina muito dura, muito suja e eu espero que, da mesma forma que eu conseguir avançar e caminhar aqui dentro da Câmara Municipal, eu possa fazer também no Congresso Nacional, com diálogo, com boas proposições, de uma forma republicana, utilizando muito esse “parlar” que deve ser o sentido do parlamento para que a gente possa tramitar, encaminhar, lograr êxito e ter sucesso naquilo que para nós é importante. Mas para me preparar, para olhar de fato como será isso, eu ainda não consegui; talvez depois do dia 30 de outubro, depois de eu dar uma breve descansada, eu consiga começar a me planejar e me organizar melhor.
YS: Mas você teve vários grupos sociais, além da população LGBT, das mulheres negras, do movimento negro de uma forma geral, na sua campanha. Quais são as pautas centrais da atuação da Erika nacionalmente? O que a Erika vai levar como pauta dela e vai carregar nas costas e que vai virar projeto de lei, que vai ser alvo central da sua legislatura?
Erika: A fome é uma das pautas que para mim são prioritárias. É preciso tirar esses milhões de brasileiros que se encontram em situação de fome no nosso país, e esses 33 milhões de brasileiros com fome no Brasil são em sua grande maioria negros, mulheres, parte da comunidade LGBTQIA+, povos indígenas que estão completamente dilacerados por essa política de morte colocada em prática pelo governo Bolsonaro. É preciso enfrentar as questões trabalhistas, é preciso enfrentar as questões de segurança pública do nosso país, e essas, para mim, são questões caras. A educação, que foi muito importante em minha vida, foi sucateada, desmontada pelo teto de gastos, mas também por toda a perseguição imposta à pesquisa e às universidades públicas. É preciso retomar os investimentos na educação, é preciso construir e consolidar junto aos servidores uma educação pública de qualidade em nosso país e enfrentar a devastação climática que o Brasil passou nos últimos anos, com essa boiada a solta do agrotóxico, do agronegócio, do agro para todos os lados, desmatamento, causando grilagem, esse caos que atinge também as populações negras, as populações mais pobres vítimas das enchentes, que são as vítimas dos desmoronamentos, que são as vítimas de todo esse caos. Então, se eu precisasse colocar em tópicos, eu diria que a fome, a segurança urbana, o meio ambiente e as questões sobre crise climática, educação e cultura. A cultura foi sucateada e desmontada, a gente não tem um orçamento digno para a cultura, se destruiu o Ministério da Cultura, colocaram à frente da Secretaria da Cultura e da Fundação Palmares sujeitos que são completamente avessos à cultura, nefastos no que diz respeito ao setor cultural. E a cultura salva vidas da comunidade LGBTQIA+, do povo negro, a cultura é a perpetuação da nossa história, da nossa identidade, do caminho que nós queremos traçar. Então essas são pautas que martelam em minha cabeça o tempo inteiro. Claro, a saúde também é uma pauta fundamental. Nós vamos ter que elencar prioridades em um Brasil tão devastado como é esse Brasil que nós estamos passando agora. Mas eu tentei pincelar algumas das pautas que para mim estão ali latentes todos os dias no meu imaginário e que fazem parte dessa refundação do Brasil.
“Eu me sinto vingada pelas minhas, eu me sinto vingada, eu me sinto abrindo um caminho para gente como eu”
YS: E como foi a campanha? Você sofreu muitas violências durante a campanha, embora você tenha tido
uma votação retumbante?
Erika: Não, essa eleição foi diferente, eu não sofri, pelo menos não presenciei, não fui alvo direto de nenhuma violência. Eu não fui abordada de forma ruim nas ruas, eu não me lembro de ter visto algo extremamente agressivo e violento nas redes sociais. Pode ser que tenha tido e eu tenha sido blindada, mas a minha percepção, como eu vivi essas eleições, não fui vítima de ataques e violências. Muito diferente de quando tinha começado, pois eu vinha sendo vítima de ameaças e ataques constantes ao longo do meu mandato e a eleição passada também foi uma eleição dura, uma eleição com fake news, com ataques etc. Essa campanha eu passei só recebendo amor, carinho, confiança e preocupada, porque nós estávamos muito preocupados, essa eleição foi uma eleição de extrema preocupação, mas não fui vítima de episódios de violências gritantes.
YS: O resultado eleitoral mostra que, se o Congresso de 2018 teve uma composição à direita, o de 2022 consegue ser pior. O PL de Bolsonaro fez a maior bancada da Câmara Federal e nomes abomináveis como Damares, o astronauta Marcos Pontes, Sérgio Moro, Magno Malta e outros foram eleitos senadores. Como é que você vê esse cenário político para o próximo período? Um governo nosso vai ter muita dificuldade de governar o Brasil?
Erika: Eu acho que um governo nosso terá dificuldade de governar o Brasil, porque nós estamos diante de uma disputa de narrativas, uma disputa de agendas, e não será fácil. Mas é claro que com um governo nosso será menos pior e muito mais possível, até porque, no contexto da ascensão dessa direita, nem necessariamente todos os parlamentares são de extrema direita. Existe ali uma corja muito grande que está acostumada a dançar e a se comportar conforme a música que toca. E com um governo nosso a gente consegue meio que, de alguma forma, dar algum toque, algum tom para administrar todo esse caos, esse terror que será, sem sombra de dúvidas, o Congresso Nacional. Um governo que não seja nosso será realmente o ápice do retrocesso, da desgraça e da destruição mais brutal que a democracia do nosso país já passou. Então eu acho que vai ser, sim, difícil para um governo nosso, mas eu acho que um governo nosso terá capacidade de alguma forma se utilizar desse centrão, se utilizar dessa gente que se comporta conforme a banda toca, para levar adiante pautas que são importantes e essenciais para nós.
YS: Como você analisou a diferença tão estreita entre o Lula e o Bolsonaro no primeiro turno? O que justifica esse voto bolsonarista que não é rastreado?
Erika: Eu acompanhei muito angustiada. Eu não estava conseguindo nem celebrar a minha vitória, que já estava ali colocada, eu já tinha sido eleita mesmo antes das urnas terminarem de serem apuradas, e eu estava completamente preocupada. Primeiro por essa surpresa que as pesquisas não conseguiram rastrear esses números do Bolsonaro. Para o Lula as pesquisas foram muito precisas, mas para o Bolsonaro nós percebemos que existe um bom grupo enrustido, envergonhado, que não declara o seu voto, e isso me desperta preocupação. Eu acho que nós temos possibilidade de virar todo esse jogo, e nós vamos virar. Tenho certeza de que no dia 30 nós sairemos vitoriosos, porque o povo brasileiro já não suporta mais. O Lula já é vitorioso com mais de 6 milhões de votos à frente do Bolsonaro. Mas isso [a resiliência bolsonarista] demonstra o quanto nós precisamos fazer um trabalho de base profundo, o quanto nós precisamos encontrar uma comunicação simples para dialogar com a sociedade e o quanto nós precisamos mostrar à sociedade o que está de fato na mesa de negociação e os desafios que a sociedade enfrenta para acompanhar a política. Quando nós vemos o Bolsonaro, que representou o que representou, que fez o que fez, chegando no segundo turno com o número de votos que chegou, nós enquanto esquerda brasileira precisamos chamar para nós a responsabilidade de uma lição de casa que é preciso começar a ser feita imediatamente e começar a ser feita com uma linguagem mais simples, colada com a realidade das pessoas, conectada com as bases populares de nosso país. É dessa forma que eu avalio esses números, eu avalio esses números como o exercício de que nós temos que nos conectar com o povo. As pessoas passaram pelo que passaram e não são apenas os fascistas que estão indo votar no Bolsonaro, não é apenas a elite, porque a elite não faz esse número de votos. Tem muita gente sofredora, tem muita gente que penou nas mãos desse governo e que ainda assim, por algum motivo, está indo às urnas depositar o voto nele. Então isso me traz apreensão, isso me traz angústia, isso me traz dor. Ainda há muito o que se compreender e isso me traz o chamado da responsabilidade para que a gente possa fazer a nossa parte para evitar que, daqui quatro anos, outro Bolsonaro possa surgir.
YS: Em todos os discursos que nós fizemos no último período, a gente dizia como primeira frase: “Nós precisamos derrotar o Bolsonaro, mas, mais do que derrotar o Bolsonaro, precisamos derrotar o bolsonarismo”. Agora nós vamos terminar a eleição, provavelmente derrotando o Bolsonaro, mas com o bolsonarismo bastante cristalizado. O que a esquerda precisa fazer para derrotar o bolsonarismo e o discurso de ódio que ele representa?
Erika: Não temos uma resposta pronta, não é como uma receita de bolo. Eu acho que nós vamos tatear muitas formas de enfrentar o bolsonarismo, pois não existe uma resposta única. Mas nós precisaremos retomar as bases, precisamos voltar a fazer política com as pessoas, a política simplista, a política do cotidiano, a política do dia a dia, a política onde as pessoas se reconheçam. Essa esquerda precisa ser preta, precisa ser feminista, precisa ser operária, trabalhadora, conectada e dialogando com aquilo que as pessoas enfrentam e vivem em seu cotidiano, simplificando e traduzindo os processos políticos para que as pessoas se sintam pertencentes e parte desses processos. Isso é extremamente necessário, não dá mais para ficar numa bolha acadêmica, numa bolha teórica, numa bolha intelectualizada, enquanto os territórios estão abandonados, enquanto a gente não volta para esse território para dialogar com essa população, com essas pessoas que estão lá vivendo as vidas delas e não estão acompanhando a TV Câmara, TV Senado. Essas pessoas estão lá recebendo fake news, então nós vamos ter que hackear a comunicação da internet. A esquerda também precisa dominar os meios de comunicação para conseguir se conectar com essas bases, com essas pessoas, com esses territórios, e eu acho que essas são algumas das formas de, de fato, voltar a criar uma conexão com as massas. Temos que enfrentar também esse sentimento de ódio adormecido na cultura brasileira. É preciso olhar para o racismo, para a transfobia, para a LGBTfobia de modo geral. É preciso olhar para todas essas ilusões que estão embutidas no sentimento do povo brasileiro, porque é desse sentimento que a extrema direita se utiliza para criar essas grandes ondas, eles não criam nada novo, eles utilizam aquilo que está ali, adormecido, cultivado no sentimento humano, e nós vamos ter que desconstruir esse imaginário.
YS: Você acha que nós da esquerda perdemos a capacidade de dialogar com uma parcela da população e explicar o projeto que a gente quer para o Brasil?
Erika: Acho. Acho que, em algum momento, a gente perdeu um pouco dessa capacidade de continuar trazendo as pessoas com a gente. Tudo isso foi parte de um processo, com a demonização do próprio PT, o Mensalão… E a esquerda que muitas vezes grita que quer o fim da polícia militar, o aborto, as drogas, sem fazer um debate pedagógico, sem conscientizar, sem informar; apenas brada que quer tudo isso e isso cria um distanciamento, cria uma guerra cultural na qual essa canalhada se aproveitou para surfar e para cooptar pessoas de bem, pessoas que não são más, que não são fascistas, que não são corruptas, que não querem andar com armas, que não querem matar pessoas, mas que são movidas por esse sentimento adormecido que já está incutido na cultura. E a gente, ao perder essa capacidade, perde pessoas para o lado de lá.
YS: Há uma avaliação teórica com muita adesão de que a ascensão das lutas “identitárias”, embora eu e você não gostemos desse termo, é um dos motivos para o fortalecimento do bolsonarismo. Ou seja, as pautas de raça, de gênero, da população LGBTQIAP+, a ascensão dessas pautas e desses discursos motivaria uma reação da extrema-direita, gerando fenômenos como Bolsonaro e dando espaço para que a base popular seja disputada pelo facismo. Primeiro queria saber se você concorda com essa análise. E depois: como a gente pode lidar com isso sintetizar essas pautas consideradas identitárias por parte da esquerda junto com a luta classista?
Erika: Eu concordo que esse terror todo vem, sim, de uma ascensão e de uma chegada dessas pautas. Com o avançar dessas pautas, o bolsonarismo e a sua agenda avança contra nós. Existe um sentimento na sociedade brasileira de que o lugar do negro é na precarização, o lugar da travesti é nas esquinas, o lugar das mulheres é servindo os seus maridos. Nós precisamos enfrentar isso com a educação, com conscientização, nós precisamos enfrentar isso primeiro dizendo “o Brasil é um país racista, houve racismo no Brasil e isso não foi reparado”, “o Brasil é um país LGBTfóbico”. Mas, ao contrário disso, cria-se uma narrativa de “imagina, isso daqui não existe”, tenta-se diminuir os horrores que nós enfrentamos neste país. E isso dá brecha para que a gente não consiga se aprofundar em um debate conciso com a sociedade, um debate de enfrentamento a todas essas estruturas. Gerações e gerações vêm sendo alimentadas por este ódio, por essa intolerância, por essa desinformação, por essa enganação, e isso é um instrumento muito poderoso para a crescente de ondas fascistas. Essas ondas se utilizam desses sentimentos: o ódio, o racismo, a intolerância, a LGBTfobia. E esses sentimentos ainda estão presentes em boa parte da população brasileira e nós só vamos conseguir enfrentar isso através de desenvolvimento de políticas públicas, da criminalização dessas práticas e de um debate pedagógico, de um debate educacional, de rever os modelos de sociedade que estão colocados desde as capitanias hereditárias, desde a invasão das Américas. Isso é uma verdade e acho que nós só vamos conseguir fazer esse enfrentamento se usarmos políticas públicas e educação no enfrentamento da desinformação, da ignorância, do preconceito e fazer com que as pessoas se conscientizem de que isso existe e que nós precisamos falar sobre isso para de fato superar.
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Yuri Silva é jornalista, mestrando de Gestão e Políticas Públicas pela FGV EAESP e editor-chefe da Revista Socialismo e Liberdade