Lívia Duarte
São três da manhã. Há disparos. Ninguém vê de onde vêm. Amanhece, pessoas no chão. São 10? São 20? O sangue lava as valas. Dezenas de pessoas choram. Uns por quem foi. A maioria se reconhece como quem pode ir.
De que lugar do mundo falamos? Vale a pena mudar nossos avatares nas redes sociais? Fazer menção com cores em palácios? É válido o luto?
De que lugar do mundo falamos? Pará, Amazônia, Brasil. Chacinas em série. Crimes que retroalimentam a espiral da violência impune. São estatísticas, mas não somente. São pessoas. Humanas e humanos. Seres cujo sangue irriga um mar de conivência, e de solidão até na hora da morte. Ninguém sabe, ninguém viu, ninguém sente. Ninguéns.
Gabriel, Frank, Eunice, Hugo, Alex, Eduardo, Helder, Edvaldo, Flávio, Rosivaldo, Fagner, Erisvaldo, Luciano, Anderson, Glauber, Ronaldo, Rerysson, Jhoni, Elvis, Joelson, Jacilene, Walber, Edison, Carlos, Caio… São 25 vítimas (na verdade, veio a se saber depois, dois outros feridos não resistiram aos ferimentos, totalizando 27 vítimas fatais da maior chacina de 2017). Todas assassinadas na Grande Belém, entre os dias 20 e 21 de janeiro deste ano, em apenas mais uma das muitas chacinas que aqui acontecem. O que têm em comum, além da idade entre 16 e 30 anos e a cor da pele? São vítimas de uma máquina de matar, que age, muitas vezes, sob proteção oficial.
Os números revelam uma verdadeira guerra: no Pará, tão rico e tão perversamente espoliado, são chacinas em série. O medo ecoa. Em 2017, de janeiro para cá, são pelo menos 46 pessoas assassinadas com evidentes sinais de execução na Grande Belém. Se adicionarmos os mortos nos intermináveis e impunes conflitos no campo, soma-se quase 70 vítimas, oferecidas em sacrifício a uma sociedade que virou a máquina de matar.
A região Norte do Brasil carrega o histórico dilacerado de acumular índices de massacres, que não revelam apenas o retrato do medo e a violência por condições de sobrevivência, como também revelam a inoperância do Estado em garantir minimamente condições de vida e segurança. Por que não sabemos o que se passa? Por que está tão longe de nós, estando tão perto? Por que não ocupa os telejornais? Não vira notícia ou faz parte do vendável nortista, como o açaí ou o jambú?
Nessa grande engrenagem capitalista, não há lugar para uma mídia que noticie a solidariedade e luto por quem não tenha olhos azuis, não seja branco e não tenha morrido embarcando em um aeroporto internacional.
Estamos impregnados da seletividade que aponta para o que é belo ou feio, para quem devemos amar, com quem devemos casar e até por quem choramos.
São pessoas todos esses numerais pintadinhos de cores diferentes! São gente de carne, osso e sonhos, esses traços em relatórios de violência.
Para tornar o quadro mais assustador, há nos dias que correm uma espécie de aceitação e legitimação dessa guerra de extermínio. Parte expressiva da sociedade, acuada pelos indecentes números da criminalidade, passa a depositar suas esperanças nos chamados “justiceiros”, responsáveis por “limpar” as áreas da periferia, impondo uma lei sangrenta em nome de uma suposta “paz social”. Ledo e fatal engano. As milícias são a outra face do crime, policial-bandido, a serviço, não raro, de organizações e quadrilhas de narcotraficantes.
Em janeiro de 2015, após uma chacina que ceifou a vida de 11 inocentes na periferia da capital paraense, ocorrida na madrugada entre 4 e 5 de novembro do ano anterior, foi aprovado o relatório da CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Pará. Lá, com todas as letras, dezenas de suspeitos de integrarem esses bandos criminosos fardados ou não é um elenco de pedidos de providências, formulados a partir do trabalho corajoso dos deputados Edmilson Rodrigues (PSOL) e Carlos Bordalo (PT), respectivamente autor e relator da comissão. O governo do Estado, como sempre, fez ouvidos de mercador e novos e mais sangrentos episódios de execuções foram se sucedendo.
Em um trecho deste relatório está a síntese dramática do que são efetivamente esses grupos de supostos “justiceiros”: está provado que “o ‘justiçamento’ não passa de simples extermínio, conduta autoritária, criminosa, atentatória contra o Estado Democrático de Direito, as liberdades individuais e constitui-se como poder paralelo aos poderes constituídos sempre é motivado por dinheiro ou vantagens de qualquer natureza, não existe ‘justiçamento’, existe oportunidade de ganhar dinheiro”. Mais claro, impossível.
Mas é no mínimo ingênuo acreditar que esse fenômeno esteja ligado à opção deste ou daquele governo, somente. Essa tal máquina de matar negras, negros e indígenas tem nome: capitalismo, na sua fase monopolista. Esse é o inimigo a combater, pela simples razão de estar na raiz de toda essa tragédia mais que anunciada, ou em um trocadilho exato: não anunciada. Um Brasil que se embrutece e naturaliza a matança sistemática das maiorias sociais negros e negras, indígenas, que respondem por cada sete de cada dez massacrados no país, segundo os insuspeitos dados do Atlas da Violência no Brasil, com números compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com base nas estatísticas de 2015. O estudo revela que pessoas negras têm chances 23,5% maiores de perderem a vida de forma violenta que as de outras raças. Quase 60 mil vítimas de homicídio: uma guerra civil não-dita, não declarada.
Isso precisa parar. Agora, sob pena de sacrificarmos de forma irremediável o futuro de nosso país.
E quando isso acontecerá? Quando essa matança insana de pobres, com cor específica cessará? Exatamente quando os pobres se livrarem do medo, essa companhia angustiante que povoa nossos dias e noites.
Libertos do medo, os pobres se levantarão. Se tornarão gigantes, trazendo em seu peito a força de nossos ancestrais; as lanças da Mãe África e as bordunas de nossos parentes da invencível floresta.
É preciso manter a esperança viva. Talvez, acender a esperança seja o nosso principal papel. Dar voz aos sonhos que não interessam a ninguém. Como viva há de ser a vida de nossos irmãos e de nossas irmãs de todas as latitudes.
Penso, ao refletir sobre tantos mártires, que a luta nunca é em vão. Quando iniciei esse artigo, pensava no sonho sonhado por Salvador Allende, sob o cruel bombardeio e em meio às chamas assassinas que consumiam o La Moneda. No transe final, que também teve a importância histórica desconhecida naqueles dias, Allende lembrou que, um dia, homens e mulheres livres haverão de transitar pelas alamedas de um mundo novo. Hoje, pensei em como Allende, gigante em seu pensamento e ações, pode ser equiparado a um outro gigante sul-americano, de sonhos muito menos noticiados: o cacique tupinambá Guaimiaba, que tombou em solo parense em 1619, na beira do rio com jeito de mar, atingido em combate por um tiro de arcabuz enquanto sonhava em retomar seu lar, o que somente seria possível com a derrota do português invasor e de suas armas que cuspiam fogo e morte.
O local onde tombou Guaimiaba foi o berço de Belém. Forte do Presépio, depois Forte do Castelo, depois, Santa Maria de Belém do Grão Pará. Desde criança me chamavam a atenção aqueles canhões coloniais voltados para o continente e não para o exterior, como seria de se esperar. O “inimigo” era o povo da floresta e a chamada “civilização” trouxe, na verdade, a semente da barbárie. Mas como lembrou o genial poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro aquele nicho original da cidade do Pará nasceu sob o “sol de afiadíssimos cristais (…) Flechas tupinambás de Guaimiaba cravaram-se no chão da história. (…) A memória vivendo de memórias relidas na memória, segue os passos tão leves destas tardes caminhantes nos tempos não perdidos de Belém” (Para ler como quem anda nas ruas, 1998).
Nesses tempos de desmonte e de ataques aos direitos do povo brasileiro, é hora de retomar a caminhada e refletir também sobre o Brasil que não passa nos telejornais. Vamos acreditar, construir, lutar e abrir a garganta, aumentar o eco para essa utopia possível, nos empoderando e nos vestindo da realidade, da dor e da coragem dos povos.