FALSAS SOLUÇÕES CLIMÁTICAS
Mercado de carbono, net zero e outras falsas soluções climáticas não só mascaram o problema e desviam recursos de esforços verdadeiramente efetivos, como também duplicam a responsabilidade dos países e povos do Sul Global
Maureen Santos
Coordenadora do Núcleo Políticas e Alternativas da FASE e professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Coordena a Plataforma Socioambiental do BRICS Policy Center e integra o Conselho Editorial da Jatobá.
As mudanças climáticas representam uma das maiores ameaças globais que enfrentamos atualmente. O aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE), resultantes principalmente da queima de combustíveis fósseis, da cadeia agroindustrial global e do desmatamento, tem causado um aumento significativo na temperatura média da Terra, levando a uma série de impactos prejudiciais aos ecossistemas e, sobretudo, aos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, comunidades tradicionais e populações mais vulnerabilizadas no campo, nas cidades, e nas florestas.
O Brasil, assim como outros países do mundo, já vem sentindo os efeitos das mudanças climáticas, com eventos climáticos extremos cada vez mais regulares e intensos. Nesse sentido, é crucial avançar em debates e propostas em direção a mudanças sistêmicas, com a adoção de abordagens eficazes para enfrentar as mudanças climáticas e reduzir suas consequências devastadoras. Urge, portanto, distinguir entre soluções reais e medidas que podem parecer benéficas, mas que na verdade funcionavam como distrações que atrasam as decisões e políticas dos Estados, favorecendo as grandes corporações e suas tecnologias: as chamadas falsas soluções.
Seja no âmbito local, nacional e internacional, falsas soluções costumam virar as grandes ações climáticas do momentum e pioram a situação da crise climática a médio e longo prazo. Isso porque, se por um lado, mascaram a urgência real do problema e desviam recursos financeiros e esforços de ações verdadeiramente impactantes, por outro, jogam duplamente a responsabilidade em países e povos do Sul global, os que menos contribuíram historicamente para o problema e, ao mesmo tempo, são os que possuem os recursos naturais críticos utilizados na maioria das falsas soluções verdes propostas.
© Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Dentre as principais falsas soluções, as mais frequentemente apresentadas incluem:
1 – Tecnologias de Captura e Armazenamento de Carbono: As CCS, por sua sigla em inglês, são apontadas como tecnologia promissora por países e corporações globais como forma de reduzir as emissões de CO2, mas sua implementação em grande escala vem favorecendo a indústria fóssil. Isso ocorre porque permitem que a extração de petróleo continue e seja intensificada, gerando uma falsa percepção de neutralidade de emissões (como por meio da Recuperação Avançada de Petróleo – EOR, por sua sigla em inglês). A técnica envolve a captura do CO2 liberado por usinas de energia, fábricas e outras indústrias, e seu subsequente armazenamento subterrâneo em formações geológicas. Nesse contexto, as empresas petroleiras passam de negacionistas climáticas a promotora de “soluções”. Na verdade, além de riscos graves de vazamentos, as iniciativas de CCS atrasam e prolongam a viabilidade econômica dos combustíveis fósseis, em vez de promover uma transição energética justa pautada na diversidade, descentralização, distribuição equitativa e em fontes renováveis.
2 – Mercados de Carbono e Compensação (offseting): A compra e venda de créditos de carbono são as mais antigas falsas soluções, e seguem sendo a principal ação de flexibilização de metas nacionais dos Estados e de compromissos voluntários de empresas e grandes corporações. Existem há décadas, de forma oficial e voluntária, por trás das promessas de oportunidades de financiamento e transferência de tecnologia, enquanto os países e empresas estão em processo de transição para a chamada economia de baixo carbono. No entanto, as experiências no Sul global apontam que essas iniciativas resultam em grandes esquemas que não beneficiam os territórios indígenas e tradicionais por onde os projetos são instalados, além de nem sempre resultarem em uma redução real nas emissões, por servirem como mecanismo de compensação. Emite-se lá e compensa-se aqui: isso produz profunda desigualdade e perversidade, ao fazer com que um povo que seja impactado por uma grande indústria poluente ou um porto de soja não receba reparação, dado que o impacto é compensado em outro local ou com um projeto em outra comunidade. Esse mercado modificou a compreensão do princípio do Poluidor-Pagador ao permitir que poluidores continuem suas atividades sem fazer mudanças substanciais.
3 – Geoengenharia: São intervenções em grande escala em sistemas terrestres (oceanos, atmosfera, crosta terrestre, etc.) para manipular o clima, deliberadamente, como a dispersão de partículas na atmosfera para refletir a luz solar. É considerada falsa solução por ser uma abordagem incerta e arriscada, com potencial para desencadear efeitos colaterais graves e imprevisíveis. Essas medidas violam o Princípio da Precaução, base da proteção da diversidade biológica global.
4 – Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono (BECCS): A ideia de usar plantações de espécies únicas em forma de monocultivo para capturar carbono e depois queimá-las para gerar energia, capturando o carbono liberado. É uma operação é complexa e suscita preocupações sobre a competição com a produção de alimentos e os graves impactos socioambientais. Além do problema do monocultivo como modelo de agricultura hegemônica, trata-se de uma medida antiecológica, aliada aos problemas apontados sobre CCS acima. Por ser uma intervenção em larga escala é também considerada geoengenharia, mas tem sido vista como oportunidade em estudos como do próprio Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), indo na direção oposta da moratória de geoengenharia estabelecida pela Convenção de Diversidade Biológica.
5 – Agrocombustíveis de grandes monoculturas: O uso de culturas agrícolas para produzir biocombustíveis baseadas na monocultura de espécies como soja, milho e palma africana, levam ao desmatamento, à competição por terras agrícolas, e ao uso massivo de agrotóxicos. Além disso, as monoculturas levam à pressão produtiva e de financiamento para a agricultura familiar e camponesa, impactando também nos preços dos alimentos e nos necessários esforços de soberania alimentar.
© Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
6 – Energia Nuclear: Aos poucos, as emissões líquidas zero foram se tornando a base das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) dos países e de seus compromissos de longo prazo no Acordo de Paris, e são também a grande ação climática de corporações transnacionais e empresas nacionais. Há, no entanto, sérias questões ligadas à confiança de que as emissões atuais e futuras serão compatíveis com as remoções de gases de efeito estufa, já que há profundos problemas relativos à efetividade, critérios, governança, monitoramento, transparência e limites entre redução e remoção de carbono biológico e industrial. Essa falsa solução vem servindo de distração para cortes reais de emissões e mudanças sistêmicas que vão no direcionamento das causas da crise climática.
A lista é extensa e poderíamos mencionar muitas outras, mas há um elo entre todas as falsas soluções verdes: no fundo, trata-se principalmente da ocupação, posse e expropriação de terras. Por isso, é fundamental fomentar e ampliar a regularização fundiária, a demarcação de terras indígenas e a titulação de terras quilombolas e de outras comunidades tradicionais. Onde tem população originária, tem floresta em pé e sociobiodiversidade viva e protegida, segurando os avanços do capital especuladora, verdadeira raiz da crise climática.
A forma mais eficaz para lidar com as mudanças climáticas envolve a redução real e significativa das emissões de gases de efeito estufa, a transição justa para fontes de energia renovável, o investimento em eficiência energética, a preservação de ecossistemas naturais, a agroecologia como forma de assegurar os direitos à terra, a proteção ecológica dos biomas e a soberania alimentar, e uma mudança profunda nos sistemas de produção, distribuição e consumo.
Sem mudanças estruturais, as tecnologias por si só não resolverão a crise climática. Isso significa mudar o padrão desigual de distribuição de terra e de alimentos, no Brasil e no mundo. Não existe solução fácil e por isso é fundamental evitar a armadilha das falsas soluções. Não prejudicar os esforços para realmente mitigar os impactos das mudanças climáticas é fundamental para garantir um futuro com justiça ambiental e climática para as gerações vindouras.