Leonardo José Ostronoff e Felipe Ramos Garcia
A participação dos militares das Forças Armadas na política institucional brasileira ganhou destaque nos últimos anos, especialmente através da figura do presidente Jair Bolsonaro e dos oficiais que compõem seu gabinete. Os primeiros contornos dessa participação assídua dos militares que observamos hoje começaram a ser traçados com a instituição da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011.
Desde então, a caserna tem voltado ao universo simbólico da política de nosso país. Durante o período, a relação da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016) com os militares foi bastante tumultuada, marcada por episódios de declarações públicas de militares da ativa, críticas aos trabalhos da comissão, e que passaram a realizar manifestações públicas contra a presidente em exercício.
A atuação dos militares no contexto do processo de impeachment foi um ponto bastante delicado da nossa história recente, com denúncias de conspiração entre generais e do então vice-presidente Michel Temer.
Com a saída de Dilma Rousseff, em um aceno do ex-presidente Michel Temer (2016-2018), é recriado o Gabinete de Segurança Institucional, que havia sido extinto pela ex-presidente, tendo o General Sérgio Etchegoyen à frente da pasta A nomeação foi uma vitória importante dos militares nessa queda de braço simbólica, já que o general era um feroz crítico da CNV.
Engana-se, porém, quem pensa que essa atuação da caserna é um episódio isolado. Como esquecer dos mais de 20 anos sombrios de nossa Ditadura Militar? Para muitas pessoas, uma geração de milhões de brasileiros nascidos após a democratização, a participação dos militares na política brasileira era coisa do passado, dos livros de história. Desde o império, os militares atuam frontalmente com grupos políticos e, em muitos casos, os compõem.
Há uma vasta bibliografia sobre essa participação e os exemplos não nos deixam mentir: desde a Proclamação da República (a própria com um verniz golpista), passando pelo Tenentismo, pela campanha pela legalidade e pela Ditadura Militar, são inúmeros os momentos em que os militares tiveram papel importante na política institucional brasileira. Porém, desde a redemocratização, não víamos essa atuação de forma tão latente.
O histórico das últimas quatro décadas é marcado por outras questões importantes. A Lei da Anistia, de 1979, foi controversa por garantir anistia “ampla e irrestrita” aos envolvidos nos episódios de abusos e torturas, em sua maioria protagonizados por militares golpistas e que tiveram como vítimas militantes de partidos de oposição, parlamentares, jornalistas, artistas, intelectuais e qualquer um que pudesse ser enquadrado como “subversivo” pelo AI-5. Se, por um lado, a Lei da Anistia marcou o início do processo de abertura política, por outro, ela foi uma ferramenta jurídica responsável pela proteção dos militares que cometeram crimes durante o período de exceção.
A Constituição de 1988 veio como um grande sopro de esperança. Em teoria, ela ampliava direitos políticos e sociais, garantia acesso a serviços públicos de saúde e moradia. Contudo, um problema permaneceu: a questão militar continuou mal resolvida no texto constitucional. O artigo 5º da Constituição apenas menciona que “As Forças Armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República”. O léxico envolvido na escrita do texto pode parecer protocolar, porém, o adjetivo utilizado – permanente – diz muito sobre como a instituição é enxergada pelos militares e como os próprios deputados constituintes lidaram com o problema naquele contexto. O texto não era claro em criar mecanismos objetivos de controle civil sobre as Forças Armadas, problema que seria resolvido somente em 1999 com a criação do Ministério da Defesa, mais de 10 anos após a carta magna. O Brasil passou a ter, enfim, um civil no comando das Forças Armadas.
Em todos esses anos nos quais a caserna foi protagonista de momentos políticos importantes da história brasileira, os militares cultivaram – e cultivam – uma ideia de que seriam “guardiões” do Estado brasileiro e responsáveis pela manutenção da ordem interna. Uma instituição permanente, como diz o texto de 1988. A crença de que as Forças Armadas seriam o último bastião da democracia é difundida entre parte do oficialato e reverbera no discurso bolsonarista, que é ampliado por apoiadores em manifestações defendendo a “intervenção militar constitucional”. Não obstante, os últimos anos foram também marcados por um aumento na participação de militares em várias esferas da administração pública, como saúde, segurança e educação. O ano de 2018, o último do governo Michel Temer, foi marcado por outros dois episódios emblemáticos envolvendo a caserna. Numa movimentação política bastante influenciada pelos militares, Temer nomeou o General Joaquim da Silva e Luna para o Ministério da Defesa – a primeira vez que um militar ocuparia o cargo desde a criação da pasta – e em paralelo assinou o decreto federal de Intervenção no Estado do Rio de Janeiro, sob o comando do General Walter Braga Netto. Os episódios marcaram de vez a volta dos militares para a política no Brasil.
A partir daí e, mais representativamente, com o governo Jair Bolsonaro, os oficiais passaram a atuar de forma mais ostensiva e clara na política institucional brasileira. Durante a pandemia, a gestão do Ministério da Saúde, comandada pelo General Eduardo Pazuello, acumulou fracassos lamentáveis. A péssima condução dos trabalhos durante o combate à COVID-19 foi, inclusive, motivo de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
Soma-se a esse fracasso a atuação pífia dos ministros chefes da Casa Civil, General Walter Braga Netto e depois o General Luiz Eduardo Ramos. Esperando conseguir “passar a boiada” nomeando generais para a articulação política, Bolsonaro esbarrou em um Congresso também armado e que fez os generais desempenharem mais uma vez um papel lamentável na República. Além de falharem na missão de uma articulação política eficiente, que desse celeridade à aprovação de projetos importantes para o país, os militares acabaram sendo substituídos por Ciro Nogueira, um hábil político do chamado centrão.
Além disso, o triste papel desempenhado pelos militares na cruzada bolsonarista contra a legitimidade das urnas eletrônicas, colocando em xeque o processo eleitoral brasileiro, é a pá de cal que faltava para enterrar de vez o restante de credibilidade que as Forças Armadas tinham com a população brasileira. Se antes do governo Bolsonaro a instituição era uma das que mais gozavam de simpatia e confiança da população brasileira, hoje é responsáveis por colocar o Brasil entre os países que menos confiam em suas Forças Armadas. Ainda assim, muitos dos oficiais superiores e generais que protagonizaram todos esses episódios lamentáveis de incompetência, deslegitimação do processo eleitoral e desestabilização das instituições foram às urnas, nestas eleições, pedir os votos dos brasileiros e brasileiras.
Nesse momento crucial da história brasileira, estamos indagando se haverá ou não um golpe de Estado, se os militares respeitarão o resultado das urnas e se o Brasil está no limiar de uma guerra civil. Tudo isso inflamado por generais que se aproveitaram da oportunidade para tornarem-se protagonistas da política nacional, um papel que não lhes cabe, que não cabe a nenhum militar em nenhum país democrático. Felizmente, o apoio a um golpe não é bem visto pelos brasileiros e brasileiras e o 7 de setembro parece cada vez mais retornar a uma posição meramente simbólica que tem no calendário brasileiro. Que os generais voltem a fazer o que fazem bem, que é pensar e discutir as políticas nacionais de Defesa do nosso país. Nacionalistas que se pretendem, não lhes cabe o papel de agir politicamente, mas de pensar as estratégias de proteger o território e a população. No momento em que o presidente só inflama seus apoiadores e cria um clima de tensão, o fato de os militares endossarem o discurso e jogarem mais lenha na fogueira só mancha ainda mais a história da instituição.
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- Leonardo José Ostronoff é Doutor e mestre em Sociologia pela USP e pela Universidade de Coimbra. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
- Felipe Ramos Garcia é Doutorando em Sociologia pela FFLCH/USP, mestre, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UNESP. É pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e colaborador do Observatório da Segurança Pública da UNESP e do grupo de pesquisa Democracia, Militares e a Esquerda Militar no Brasil.