Gabo: a força política da literatura

 Lívia Verena Cunha do Rosário

     Uma órfã que chega à cidade carregando um saco com ossos dos pais; um cigano alquimista que transmuta o tempo; um homem seguido por borboletas amarelas; uma virgem perturbadoramente bela que ascende ao céu; uma população inteira acometida pela “praga da insônia”; mortos que visitam os vivos; uma criança que nasce com rabo de porco; uma chuva que dura quatro anos, 11 meses e dois dias. A galeria de acontecimentos fabulosos em Macondo, a cidade inventada por Gabriel García Márquez, é variada e curiosa. A realidade da fantasia e a fantasia do real permeiam esse cenário mítico, que ao mesmo tempo assemelha-se a tantos outros.

Protagonista do chamado boom da literatura latino-americana, o romance Cem anos de solidão, de 1967, atraiu o olhar da crítica para a produção do continente. Utilizar um quadro familiar para traçar um quadro político não era novidade. O próprio realismo fantástico também não. Gabo, como era conhecido, deixou explícita a inspiração em A metamorfose, de Kafka, para desenvolver sua obra-prima. Contudo, o realismo fantástico em Cem anos de solidão reflete a habilidade ímpar do autor, jornalista de formação, em reinventar a história romanceando-a e, por isso mesmo, enchendo-a de riqueza.

A solidão acomete por um século sete gerações de um mesmo clã, os Buendía. Aurelianos, Arcádios, Úrsulas e Amarantas “como se o tempo desse voltas sobre si mesmo” – têm suas vidas entrelaçadas ao apogeu e à decadência da própria Macondo. Gabo, natural de Aracataca, na Colômbia, ilustra a trama com aspectos folclóricos da terra natal e, com sua imaginação prodigiosa, denuncia o abandono da própria América hispânica.

A chegada do progresso transforma Macondo de povoado ermo em cidade grande. Forasteiros resolvem plantar banana em larga escala e a economia floresce. No entanto, uma greve de trabalhadores rurais é reprimida pelo Exército e centenas de pessoas são assassinadas. O único sobrevivente do levante é tido como louco, e a história oficial “esquece” o massacre. A companhia bananeira simboliza a face mais visível da inserção do continente no capitalismo mundial: a de eterna exportadora de matérias-primas. Aos ciclos de decadência sucedem os ciclos de euforia, mantendo todo um povo preso às amarras do subdesenvolvimento.

Da carpintaria da escritura conforma-se diante de nós a América Latina em sua estrutura patriarcal, colonialista, dependente. O continente sincrético e conservador, marcado pela concentração fundiária, pela corrupção e pelos golpes de estado. O microcosmo Macondo é uma alegoria da América Latina empobrecida, fantasticamente violenta e injusta. Um lembrete de como a realidade pode ser tão absurda quanto a ficção. Por outro lado, a força dos símbolos dá conta de representar Colômbia, Caribe, América, mundo. Afinal, a solidão pode pesar nos ombros de todos nós, a qualquer tempo.

“Era como se Deus (…) mantivesse os habitantes num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber com certeza onde estavam os limites da realidade” (2009, p. 217).

Cem anos de solidão figura como o mais importante livro escrito em língua espanhola depois de Dom Quixote. Gabo alcançou em vida o reconhecimento merecido e ganhou o Nobel de Literatura em 1982; sentiu cedo os rigores da censura e acabou por exilar-se no México, onde faleceu em 2014. Seu perfil ideologicamente de esquerda, aliado à sua sincera simpatia por Cuba, foram ingredientes suficientes para aproximá-lo de Fidel Castro.

O espírito revolucionário na narrativa é personificado pelo Coronel Aureliano Buendía, “que promoveu 32 revoluções, tendo perdido todas, e teve 18 filhos, de 18 mulheres diferentes”. Mesmo diante da opressão, do saqueio, dos cataclismos, da peste e da fome, o engajamento social de Aureliano o transforma em herói da resistência, em meio à luta solitária, “o essencial é não perder a orientação”.

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo” (2009, p.7).

O famoso começo condensa o assombro do homem ao deslumbramento do menino. O espanto frente ao ordinário e extraordinário conduz a genealogia imaginada por Márquez. As vicissitudes que marcam a travessia da linhagem também se refletem em transgressão, o devir dos Buendía é uma autêntica busca por rupturas. Se a solidão é universal, a esperança também é.

Há 50 anos, o épico latino-americano, fantástico em todos os sentidos, legitima a literatura como força política sobretudo ao representar vozes historicamente à margem e enreda leitores de todos os cantos para enveredar-se com a “estirpe de solitários”, que seguem vivendo em um recanto qualquer da América Latina.

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