Carla Luciana Silva
É muito importante que no momento atual estejamos retomando o tema da influência da Revolução Russa no Brasil. As pesquisas se debruçaram, em linhas muitos gerais, sobre duas ordens de questões:
a) a influência no movimento operário, as relações com os movimentos anarquistas e sindicalistas pré-existentes, a construção do socialismo;
b) a influência no campo das ideias, ensejando a disseminação da teoria marxista. Do ponto de vista da organização da classe trabalhadora, podemos apontar algumas questões de interesse:
1) a possibilidade da construção do poder da classe trabalhadora por meio de uma revolução dos trabalhadores.
2) a organização e a centralização da classe em mecanismos organizativos: os partidos comunistas, e a partir da III Internacional, a existência de um órgão centralizador das formas da revolução da classe trabalhadora do mundo. Inicialmente operária e camponesa, ao longo das décadas seguintes, essa classe seria ampliada, e a questão do combate contra a burguesia passaria de questão central a secundária, e finalmente descartável, com a imposição de leituras que buscavam a aliança com a burguesia progressista.
O historiador Frederico Bartz mostra que a classe operária tinha interesse no tema da revolução, mas que sua forma de buscar informação não era a imprensa burguesa. Desde lá estava colocada a parcialidade da imprensa burguesa e a necessidade de construção de uma imprensa da classe trabalhadora: “Uma das principais preocupações dos operários que escreviam nos periódicos operários era informar corretamente sobre o que ocorria dentro da Rússia, devido às notícias desencontradas que se tinha do país e à maneira que os ‘jornais burgueses’ apresentavam o que estava acontecendo no território controlados pelos bolchevistas”. O autor mostra que, já em 1919, havia a preocupação na imprensa operária de trazer fontes internacionais e de fugir dos textos que apenas desqualificavam qualquer comportamento que destoasse da vida burguesa, muito comum na grande imprensa da época.
A questão sobre a “recepção das ideias marxistas” no Brasil esteve colocada por Leandro Konder. Ele percebeu a existência de considerável bibliografia disponível com temas correlatos, seja da Primeira Guerra Mundial, o Mundo dos Sovietes, e as transformações que vinham dos conflitos Inter imperialistas do início do século XX. Isso tudo leva ao interesse por literatura, publicações em jornais da grande imprensa e debates políticos em geral.
O fato é que a revolução, apesar da diversidade política da esquerda, passou a ser a grande referência: “Os horrores da guerra e a revolução na Rússia, com as expectativas de difusão pela Europa Centro-Oriental e alhures, estimularam ampla mobilização das massas operárias de todos os quadrantes e a revolta dos povos caídos sob domínio imperialista” quadro este bastante distante da realidade brasileira daquele momento. Mesmo a opção histórica pela restrição da expansão do socialismo irradiada desde a URSS não implicou menor impacto no mundo simbólico e organizativo da classe trabalhadora mundo afora: “Se, por um lado, a revolução socialista tendeu a ficar restrita à própria Rússia, dentro do seu es – paço original, por outra parte tendeu a espraiar-se por vastas áreas do planeta, ainda que não sob a forma de revolução socialista, ainda que a rebelião operária tenha estado por toda parte”.
Muito posteriormente, nos anos 1960, Moniz Bandeira colocou o problema do “ano vermelho”. Segundo ele, “Karl Marx penetrou, no Brasil, pela mão de Tobias Barreto, que leu O Capital, em alemão, e o citou muito amiúde em Questões vigentes, obra de 1888.” A questão mais relevante, no entanto, seria pensar uma ampla e consistente divulgação da obra de Marx, o que somente ocorreria em meados do século XX. Ampliar o leque de leitores para além do movimento dos trabalhadores organizados e da academia segue sendo um desafio para um projeto de hegemonia de classe.
O grande legado da URSS foi a experiência da revolução da classe trabalhadora. Por outro lado, acirrou-se a disseminação de distintas formas de anticomunismo. Tornando-se o programa comunista hegemônico na esquerda como meio de derrubar o poder burguês, e sendo a URSS a principal referência desse projeto mundial (ainda que sem práticas internacionalistas), os discursos antipopulares, contra a autonomia da classe trabalhadora estariam organizados em torno da ojeriza ao “comunismo”, sem especificações históricas. O discurso anticomunista se construiria em torno de lendas, imaginações e construções fantasiosas que permitiam dar sentido a profundas formas de medo: medo do inimigo desconhecido e a criação de um inimigo a quem devotar medo. Certamente no mundo ocidental o peso das construções ideológicas da Igreja.
Católica em torno do medo e da culpa contribuíram sobremaneira para a ampla aceitação social dessa ideologia. Mas esse amálgama anticomunista não fica restrito ao catolicismo, já que se constitui em torno de uma formação discursiva moral.
A partir de 1959, com a Revolução Cubana, novas luzes e ferramentas são propostas à classe trabalhadora na América Latina. A direita conservadora desloca o foco da URSS para Cuba. Já os Estados Unidos não propõem a Aliança para o Progresso como forma de organizar o controle ideológico nos países latino-americanos, tendo como foco os perigos que Cuba representaria para os mesmos. Neste contexto, se consolidaria a ditadura de 1964 no Brasil e as práticas mudariam, ocorrendo um deslocamento de “inimigo”. A URSS perde força em nome da fantasiosa “Ilha de Fidel”, de Che Guevara e do foquismo. Influências maoístas jogariam a luta para o campo. A impossibilidade de um único partido da revolução era associada ao medo da guerra de guerrilhas, os “muito Vietnãs” que poderiam vir a crescer nas matas brasileiras.
A esquerda que fez a resistência com a luta armada durante a ditadura, sob as mais distintas vertentes, não teve como ampliar o debate da revolução publicamente naquele momento. A Polop parece ter sido a organização que mais buscou essa discussão sobre o caráter da revolução brasileira. Não por acaso ela foi usada pelos militares como “prova cabal” de que a revolução brasileira estaria sendo gerada antes do AI-5.
A direita brasileira nunca suportou, de nenhuma forma, que a esquerda buscasse a discussão concreta de formas de construção de poder para a classe trabalhadora. Claro que, na clandestinidade, entre os presos e entre os exilados, o debate ficava no campo teórico, embora, legitimamente, acreditassem estar construindo uma forma de revolução brasileira.
Quando finalmente a democracia liberal foi restituída, fruto de imensas lutas populares nos anos 1980, o império soviético começava a desmoronar. O debate veio prenhe de política e a defesa do abandono do horizonte socialista estava marcada na cena intelectual, especialmente na forma da adoção da perspectiva democrática, que para alguns se colocaria no lugar do socialismo. Voltariam ao debate questões sobre as formas da revolução e as opções da/para a classe trabalhadora.
Justamente nesse quartel histórico Paulo S Pinheiro e Michael Hall6, em 1979 publicavam uma coletânea de documentos sobre “a classe operária no Brasil”. Era um momento mais que oportuno, com a retomada das greves e mobilizações no país. Não há, nesses documentos, um que seja de discussão específica sobre a Revolução Russa e suas influências na classe operária. Há, sim, discussão sobre os anarquistas e a Internacional Comunista (documento de 1922) e sobre o PCB e a IC (1924). O ano de 1917 é marcado pela maior greve geral até então realizada e, segundo os organizadores da obra, a pauta da greve transcendia à classe operária, “e esse apelo a outras camadas assalariadas ajuda a explicar a força do movimento”. A greve centrou-se na defesa do direito de organização e de leis sociais que assegurassem elementos básicos como “jornada de oito horas e semana inglesa”, “aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário”, entre outros itens que exigiam o “direito de associação para os trabalhadores”. Ano de greves, os documentos levaram à “greve histórica”, e não “à Revolução”.
O livro organizado por Daniel Reis Aarão, que trazia documentos sobre “a revolução brasileira”, ou seja, as organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971, e os distintos relatos de militantes da clandestinidade, mostram que a URSS e sua revolução mantiveram-se presentes como norte decisivo marcadamente no âmbito dos militantes oriundos do Partido Comunista. Exemplos disso seriam Gregório Bezerra e Luiz Carlos Prestes. Mas é preciso ressaltar que, para além das querelas envolvendo as posições do partido e sua relação com a URSS, a experiência soviética, mais que o “modelo soviético”, seguia sendo um norte, uma prova da luta concreta da classe trabalhadora. Entretanto, pouco conhecida. Pouco estudada, teria ela virado um tabu a partir de 1956?
Indubitavelmente, a URSS ocupou um lugar central no anticomunismo brasileiro até o início dos anos 1960. O golpe de 1964 foi ainda construído sob discursos inflamados do “perigo vermelho”. Padres falavam nas igrejas sobre o avanço de “canhões russos” que iriam transformar o Brasil em uma república comunista. O anticomunismo como herança da URSS é fortíssimo, articulado e totalizante. Mostramos que nos anos 1930 que consideramos chave na produção de materiais com esse sentido a vida cotidiana dos brasileiros era colocada em xeque na construção dos relatos do que seria a vida soviética: “o que não se deve ser” caracterizado pela “onda vermelha” de livros que invadiam as livrarias sobre o assunto. Um país que não respeita a religião nem os religiosos; um país sem regras morais, onde até as crianças se organizam em sindicatos; um país onde o sonho das mulheres é poder usar meias de lycra, e assim por diante. Essas ideias construídas iam muito mais para o campo da formação de uma moral burguesa do que para o campo de um debate político de fato.
Bethânia Mariani estudou por um largo período de tempo, de 1922 a 1989 as construções discursivas anticomunistas10. Há uma impressionante mesmice na articulação de valores vinculados aos comunistas, configurando uma formação discursiva anticomunista. Entre eles estão: “perigo vermelho”, “sectários”, “tiranos”, “bandidos”, “subversivos”, etc. Não causa espanto que sejam expressões usadas ao longo dos anos 1960 para caracterizar todos aqueles que faziam a resistência à ditadura. E, infelizmente, não causa estranheza que sejam termos usados na atualidade para caracterizar militantes de esquerda de uma forma geral. Portanto, a atualidade do espectro revolucionário, fruto da luta de classes, é a atualidade da renovação do anticomunismo.