José Afrânio A. de Santana Filho
O fenômeno da “precarização”, sobretudo no que Ricardo Antunes entende a partir da “nova morfologia do trabalho”, diz respeito ao processo de informalização do trabalho, ou seja, na falta de contratação ou regulamentação nas relações de emprego. Para o referido autor, a ideia é de que a informalização amplia e intensifica a forma como o trabalho produz valor, desencadeando um movimento estrutural, precarizando outras categorias do trabalho que não necessariamente são informais, mas que também sofreram com o processo supracitado.
Sobre esse processo de insegurança nas relações de trabalho, é importante verificar que a reforma trabalhista de 2017 foi um forte catalizador, sobretudo no que tange ao aumento da informalidade e na estagnação da criação de novos em pregos. Esses resultados são o completo oposto daquilo que fora divulgado como proposta, que era justamente de incentivar a contratação e, portanto, diminuir a informalidade. Isso é verificado a partir da pesquisa desenvolvida pelo IBGE/PNAD, 2019 (realizada dois anos após a reforma).
Em estados do Nordeste, a exemplo de Alagoas, em 2019 (ano em que ainda não se falava da pandemia da Covid-19) a taxa de informalidade atingiu 47,2%, superando a média nacional, também crescente, de 41,1%.
Comércio ambulante
Assim, é diante desse cenário nacional de insegurança trabalhista e de aumento da informalidade que muitos encontram na camelotagem (uma forma de exercer o trabalho informal) a maneira de prover minimamente seu sustento e de seus familiares. Essa atividade é regulamentada pelo município em que é desenvolvida, justamente porque não se trata, na maioria das vezes, de um trabalhador que presta serviço para alguma empresa (com vínculo empregatício), mas de alguém que em função desse processo estrutural de insegurança trabalhista está entregue à própria sorte, sobrevivendo da venda de suas mercadorias.
Dessa forma, essa regulamentação municipal é realizada a partir de uma secretaria que emite um documento chamado de “título administrativo, unilateral e discricionário”. Este consiste na licença expedida pelo município para que o trabalhador exerça as atividades.
Mas, o que de fato é um título administrativo unilateral, precário e discricionário? Bem, recorrendo ao direito administrativo, conforme preleciona o professor Carvalho Filho, percebemos que se trata de uma licença para que o trabalhador exerça suas atividades, mas que poderá ser cancelada a qualquer tempo e por qualquer tipo de fundamentação da autoridade responsável, sem que o trabalhador ambulante possa reclamar qualquer natureza de direito ou garantia após essa revogação. Em outras palavras, é como se o camelô enfrentasse mais uma etapa da precarização do trabalho. Além das moléstias da informalidade e do trabalho em si (posto que não possui horário fixo, pois em geral são trabalhadores de baixa qualificação, e têm sua atividade pautada especialmente pelo esforço físico), sofre com a incerteza da revogação da sua licença, que pode culminar em ilegalidade da atividade de camelô, na apreensão das mercadorias e até na prisão, como já existem exemplos.
Potencial transgressor
É nesse sentido que o professor Lênin Pires dirá que a concessão dessa licença confere ao ambulante o predicado de “potencial transgressor”, posto que essas regulamentações terminam por serem arbitrárias, de modo que o âmbito decisório da secretaria municipal acaba desaguando na própria noção de desconfiança, apresentando o camelô como um desviante em potencial.
O outro lado desse processo, refere-se à militarização que compreende a própria guarda municipal, que, não obstante ao que fora previsto no Estatuto, enquanto prerrogativa de prevenção de atividades violentas e preservação do patrimônio municipal, na prática, aparece mais como um braço armado da ostensividade vigilante, que desemboca, por vezes, na criminalização, do que como provedores da urbanidade. Não raro observamos agentes policiais de segurança na condição de secretários municipais, a frente dessas pastas, endossando a perspectiva de vigilância desses trabalhadores, praticando enquadro, apreensão de mercadorias e até prisões.
Considerando o cenário atual de pandemia, é possível, em nível de hipótese, imaginar que todo esse cenário se adensou. Especialmente, no caso dos trabalhadores informais, com a impossibilidade de exercer as atividades de modo remoto e a insuficiência do auxílio emergencial e demais políticas públicas sanitárias, tiveram que voltar às ruas, violando, inclusive, os decretos estaduais e municipais que proibiam esse tipo de comércio. Ao violar esses decretos os camelôs incorrem em mais um ilícito que, termina por configurar, possivelmente, mais uma etapa na precarização do trabalho dessa classe.
É assim que o cantor e compositor de reggae baiano, Edson Gomes, expressa bem o sentimento do trabalhador ambulante quando em sua canção intitulada “camelô” diz: “Olha doutor, podemos rever a situação, pare a polícia, ela não é a solução”, expressando a força ostensiva que recai sobre essa atividade ambulante de comércio. Nesse sentido, segue o referido cantor dizendo: “Não sou ninguém e não tenho pra quem apelar”, que também é muito expressivo da insegurança que passa um trabalhador ambulante, sobretudo no que se refere ao título administrativo precário, que pode ser revogado sobre qualquer fundamento. Ainda nesse contexto, o cantor diz: “quando a polícia cai em cima de mim até parece que sou fera”, trecho bem expositivo da truculência policial, da abordagem e da prisão que, infelizmente, tem sido menos rara.
Riscos sanitários
A pandemia da Covid-19, potencializada pela péssima e negacionista gestão, principalmente por parte do executivo federal (não ocultando a má condução dos prefeitos e governadores), coloca para classes tão precarizadas, a exemplo dos camelôs, riscos financeiros e sanitários determinantes. Além disso, riscos relativos à criminalização no que tange à perseguição e prisão dessas pessoas, uma vez que existem exemplos concretos de prisões feitas justamente a partir da vigilância municipal exercida sobre essa classe de trabalhadores.
Sobre essa forma de fazer política dos espaços públicos, o pesquisador Carlysson Alexandre estudou a forma como o medo pode se transformar em política de inimizade. O referido pesquisador, em sua dissertação, concluiu que as categorias do “medo” e da “insegurança”, principalmente nos espaços públicos, possuem estreita ligação à pobreza. Nesse sentido, as políticas públicas municipais carregariam em seu bojo a vigilância e a criminalização a fim de “proteger” ou “separar” os “bons cidadãos” daqueles que são perigosos (a exemplo da classe de trabalhadores empobrecida dos camelôs). Assim, é dessa maneira que o Estado institui um inimigo, uma figura que não pode integrar os espaços públicos, sobre a qual não se pode confiar ou dar-lhe qualquer forma de segurança para permanecer nesses espaços sem que seja vigiada e perseguida.
O camelô se insere justamente nesse registro. Trata-se de uma classe empobrecida, refém de uma política trabalhista ultraliberal precarizante, com baixa qualificação profissional e baixa renda, na qual o processo de precarização do trabalho termina por desembocar na criminalização.