Inglaterra para os ingleses?

Rosana Pinheiro-Machado

Olhando exclusivamente para o funcionamento do capitalismo global, é possível entender, numa perspectiva ideal, como uma parte minoritária da esquerda possa defender a saída do Reino Unido da União Europeia. Da mesma forma, não creio que simplesmente devamos defender a permanência como reação automática à pauta defendida pela extrema-direita inglesa.

Como antropóloga, meu desafio é sempre sair do mundo ideal que tanto moveu quanto empacou a ação da esquerda. E aí cabe mencionar a importância de ouvirmos as pessoas comuns e de conhecermos o problema no contexto na prática em que se insere.

Como imigrante na Inglaterra, não há como eu defender uma posição que afeta dramaticamente outros imigrantes, os espaços de resistência, a autonomia das universidades, a circulação de pessoas e, principalmente, a classe trabalhadora inglesa. Principalmente, quando essa posição foi votada de forma emocional, rápida, sem debate público e com base em argumentos de ódio, da arrogância e do isolamento territorial.

Nós estamos chocados. Estamos chocados por todos os nossos companheiros que, desde então, perderam o sono. Chocados com o impacto imediato da crise econômica, que, mais uma vez irá ser paga pela classe trabalhadora.

Foi uma decisão emocional baseada na raiva que assolou a classe trabalhadora inglesa.

Muitos gritaram “devolver o país aos ingleses”. É claro que a xenofobia é uma variável importante. Mas olhar só para ela é um erro imenso. A classe trabalhadora está ferrada e perdeu seu estado de bem-estar social. Aquela fase que o encanador tinha uma casa muito parecida com o do banqueiro acabou.

Mas o que acabou principalmente é a consciência de classe da classe trabalhadora, especialmente do Norte do país, que empobreceu. O desmonte subjetivo da identidade da classe trabalhadora começou com Thatcher, que agiu no âmago do orgulho de classe.

Como diz o escritor britânico Owen Jones, romantizar o trabalhador de uma mina de ferro não é o ideal, mas certamente a identidade negada da classe trabalhadora resulta não apenas na xenofobia, mas no ódio irrestrito à classe política e à própria classe trabalhadora.

“O problema são os pobres” gritava uma trabalhadora de uma universidade que ganha um salário mínimo e referia-se aos camponeses.

As comunidades pobres que votaram para sair anunciaram que votaram porque não aguentavam mais a austeridade e culparam os imigrantes, a política e os próprios pobres por isso.

Temos, como no Brasil, uma massa perdida e revoltada e uma esquerda o Partido Trabalhista incapaz de reorganizar a classe trabalhadora. Uma massa como diria o historiador E. P. Thompson cuja economia moral é defensiva. Ela age para não perder o que tem.

É o que aconteceu na Inglaterra. As pessoas votavam cegamente pela sua vida empobrecida, mas movida pelo sentimento de ódio a tudo, muito bem aproveitado pela extrema-direita, que agora se junta ao coro do “odiamos a política tradicional”.

Como sempre, são os mais fracos que vão pagar pelo desmonte do Estado britânico. A classe trabalhadora desde Thatcher odeia a si própria, assim como odeia o Outro. Projeta-se no mito do sucesso dos empreendedores ao mesmo tempo em que rejeita o imigrante.

É nesse processo de destruição de identidade de classe, de repúdio ao imigrante que o Brexit foi votado. A discussão sobre a questão econômica mais ampla da saída da União Europeia não pode ser feita num plano ideal, negando toda a violência interpessoal por onde emergiu esse plebiscito. Uma decisão que afeta incisivamente o desenvolvimento da ciência, que causa medo entre os imigrantes e que será paga pelos mais pobres não é uma decisão socialista universalista. Uma decisão baseada na falta de debate público e no ódio é uma decisão fascista.

 

Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga, Oxford University.

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