Luíz Arnaldo Dias Campos
8 de janeiro de 1982. O Congresso Nacional Africano CNA, a mais antiga e poderosa organização antiapartheid da África do Sul faz 70 anos de idade. Como parte das comemorações, uma bomba explode o canteiro de obras da central nuclear de Koeberg, a menina dos olhos do regime racista. O atentado tem as digitais da Umkhoto we Size em zulu, a Lança da Nação, movimento armado, criado pelo CNA e pelo Partido Comunista da África do Sul SACP (iniciais em inglês) para impulsionar a luta pela derrubada do apartheid. As forças de segurança do governo sul-africano não têm dúvidas: o mentor do ataque é um branco, judeu e comunista. Seu nome é Joe Slovo.
Primeiros tempos
Joe Slovo e sua família chegaram em Joanesburgo, na África do Sul em 1935, quando ele tinha 9 anos de idade. Vinham de Obelai, na Lituânia, fugindo das perseguições contra os judeus. Em 1942, empolgado com a resistência russa à invasão nazista, Joe se alista nas forças sul africanas que estiveram ao lado dos aliados na luta contra a Alemanha nazista. No front toma conhecimento de uma forma pior de discriminação: os soldados negros eram proibidos de portar armas. Estavam lá apenas para servir os oficiais brancos. De volta, filia-se ao SACP, que desde 1930 é um partido de maioria negra e vai estudar direito na Universidade de Witwatersrand. Lá, começa a namorar a estudante de esquerda Ruth First e inicia sua longa amizade com Nelson Mandela. Tempos depois, Mandela recordaria estes tempos: “Conheci Joe Slovo e sua futura mulher, Ruth First. Então, como agora, Joe tinha uma das mentes mais agudas e incisivas que já encontrei. Era um comunista ardente”. Joe e Ruth trabalharam firmemente para convencer Mandela, então apenas um nacionalista negro, de que na África do Sul a divisão de classes, o imperialismo e o racismo estavam estreitamente conectados. No seu livro, Long Walk to Freedom, Mandela reconheceu que estas conversas foram fundamentais para o avanço de suas posições políticas.
Em 1948, quando Joe conclui seus estudos e vai trabalhar como advogado, a África do Sul adota oficialmente a separação de raças como política de Estado, proibindo os casamentos mistos. A partir daí uma série de leis ao longo dos anos vão estruturar o apartheid. Progressivamente os negros são despojados de suas terras, confinados nos guetos, proibidos de circular nas áreas brancas sem salvo-conduto, privados do direito de voto e obrigados a renunciar à África do Sul como seu país, com sua cidadania transferida para os bantustões, áreas segregadas dentro do território sul-africano, onde seriam construídos países fantoches. Como parte deste processo, em 1950 foi decretada a Lei de Supressão do Comunismo que permitia ao governo colocar na ilegalidade qualquer partido suspeito de ser comunista e tomar medidas contra seus membros. Slovo e Ruth First, que tinham se casado no ano anterior, figuram numa lista de 600 pessoas proibidas de assistirem a reuniões públicas e de serem citadas na imprensa.
Mesmo sob perseguição, Slovo colabora ativamente no desenvolvimento da aliança entre o PC e as forças democráticas antirracistas como o CNA, onde milita seu velho amigo Mandela. Em 1953, o SACP e o CNA, promovem uma campanha de massa contra a Lei do Passe, que obrigava os negros a portarem uma caderneta na qual estava escrito os lugares onde poderiam ir. Em represália, houve mais de oito mil prisões. Slovo e Ruth participam ativamente do movimento, ele, como advogado dos detidos; ela, como jornalista. Em 26 de junho de 1955, Joe e Mandela voltam a se reunir no histórico Congresso do Povo, realizado em Kliptown, onde é lançada a Carta da Liberdade, documento programático que estabelece as bases de uma África do Sul democrática, sem racismo, governada pelo princípio de um homem um voto e onde a “riqueza mineral sob o solo, os bancos e o monopólio da indústria devem ser propriedade de todo o povo”. Aí também é lançada a Aliança do Congresso, composto pelo Congresso dos Democratas (onde os comunistas participam), o Congresso Indiano Sul-Africano, o Congresso dos Mestiços, o Conselho Sul-Africano dos Sindicatos e o CNA, conformando uma poderosa frente antiapartheid. O regime não tardou em contratacar, prendendo e levando a julgamento por alta traição 156 militantes destas organizações, entre eles, Mandela, Slovo e Ruth First. Sem se intimidar, Slovo foi simultaneamente réu e advogado. Para o escritor Anthony Sampson, ele tinha “um cérebro afiado e sem medo, que podia intimidar as testemunhas da polícia e abrir rachaduras na lei, com sua profunda aversão ao funcionamento do Estado”. A ampla mobilização interna e a repercussão internacional do julgamento redundaram no arquivamento das acusações. Mais tarde, o mesmo escritor afirmou que já então, Joe Slovo e Rita “eram nomes que estavam nos lábios de muitos africanos”.
A Lança da Nação
21 de março de 1960. Na cidade de Sharpeville, nos arredores de Joanesburgo, 20 mil pessoas participam de um protesto contra a Lei do Passe, organizado pelo Congresso Pan-Africano, organização comandada por Steve Biko, o criador do Movimento da Consciência Negra, posteriormente assassinado na prisão. Apesar do caráter pacífico da marcha, a polícia abre fogo de metralhadora, matando 69 pessoas e fazendo 180 feridos. É o ponto de virada. Para muitos, a campanha não violenta contra o apartheid tinha entrado num beco sem saída. No ano seguinte, o CNA e SACP resolvem constituir o Umkhonto we Size a Lança da Nação um movimento formalmente autônomo, mas dirigido politicamente pelas duas organizações. No seu manifesto de lançamento o UK, como ficou conhecido, dizia: “A paciência das pessoas não é infinita. A hora de qualquer nação chega quando restam apenas duas opções: submeter-se ou lutar. Esta hora chegou para a África do Sul. Não nos submetemos e não temos escolha a não ser usar todos os meios ao nosso alcance em defesa de nosso povo, do nosso futuro e da nossa liberdade”. O Umkhonto we Size, significava a abertura de uma frente armada na luta contra o apartheid. Seus comandantes eram Nelson Mandela e Joe Slovo.
O início dos anos 60 é um marco para a luta de libertação dos povos africanos. Em Gana, o governo nacionalista de N’krumah, relança o pan-africanismo; em Angola, o MPLA de Agostinho Neto e em Moçambique, a Frelimo de Eduardo Mondlane e Samora Machel dão início a luta armada contra o colonizador português, processo que o PAIGC de Amílcar Cabral tinha iniciado anos antes na Guiné-Bissau e Cabo Verde. Irmão de armas destes movimentos, o UK, entretanto, reserva ao enfrentamento armado uma missão diferente. Para a Lança da Nação, o papel das ações armadas é reforçar a luta de massas, desmoralizar o apartheid e tornar ingovernável o país, animando a resistência, a caminho da insurreição popular.
Nos seus dois primeiros anos o Umkhoto we Size se lança numa campanha de sabotagens e ações de propaganda armada, cuidadosamente preparada para causar o menor número possível de vítimas. O recrudescimento da luta obriga seus comandantes a buscarem proteção no exterior. Slovo escapa para a Inglaterra, mas Mandela, provavelmente denunciado por um agente infiltrado da CIA, é preso quando tentava passar a fronteira entre a África do Sul e Botswana. Levado a julgamento é condenado à prisão perpétua. Em 1963, Ruth First é detida e passa 117 dias numa solitária e, depois de solta, se reúne a Slovo no exílio em Londres.
Na capital britânica, Slovo se dedica a preparar as campanhas armadas no território africano a partir do escritório do CNA em Goodge Street. No período entre 61 e 63, o UK realiza 200 ações de sabotagem e consegue sobreviver a diversos golpes da repressão. Slovo, além de fazer o planejamento das ações militares, viaja constantemente para União Soviética, Argélia, China, Cuba, República Democrática Alemã e Iugoslávia, articulando apoio político e militar. Além disso, escreve teorizando sobre as particularidades da luta armada na África do Sul. Critica a teoria do foco guerrilheiro de Régis Debray, insistindo que o papel da luta armada é reforçar o trabalho subterrâneo e a luta de massas.
Ruth dá aulas, faz conferências e se torna uma das mais conhecidas ativistas antiapartheid. Nestas atividades aproxima-se da esquerda revolucionária europeia, torna-se amiga de Tariq Ali e outros intelectuais da chamada Nova Esquerda. Isto rendeu discussões tempestuosas com Slovo, que era tido como pró-soviético incondicional. Divergências à parte, seguiram juntos, se amando e cooperando estreitamente com a luta clandestina na África do Sul.
Tempos de guerra
25 de Abril de 1975 em Portugal, o Movimento das Forças Armadas derruba a ditadura fascista e põe fim a mais de 400 anos de dominação colonial lusitana na África. Em pouco mais de um ano, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe se tornam independentes. Para o Umkhonto We Size se abrem espaços seguros onde o comando e a retaguarda podem se instalar. Um ano depois, a repressão policial contra o levante de milhares de estudantes negros em Soweto, gueto nos arredores de Joanesburgo, causa 600 mortes. No mundo inteiro uma onda de indignação se levanta contra o apartheid. Isolado, o racismo sul-africano começa a viver seu capítulo final. Slovo e Ruth se mudam para Maputo, com a cobertura da Frelimo. Incansável, Joe planeja ações, escreve, viaja para Angola, onde supervisiona os cursos para futuros guerrilheiros, faz uma visita de aprendizado ao Vietnam e se torna, na prática, o inimigo número um do regime racista da África do Sul. Em 1980, o regime racista da vizinha Rodésia chega ao fim, derrotado pelas guerrilhas da maioria negra. A luta antirracista na África do Sul ganha mais um santuário e se fortalece ainda mais.
Mas em 17 de agosto de 1982, o braço terrorista do apartheid alcança o casal Slovo. Ruth morre na explosão de uma carta bomba enviada para o Centro de Estudos Africanos, onde trabalhava, na capital moçambicana. Anos mais tarde ao relembrar o terrível episódio, Joe Slovo diria: “Você nunca esquece, na verdade nunca perdoa. A punição mais efetiva para aqueles que a mataram é forçá-los a viver numa África do Sul democrática.”
Acompanhando e incentivando o ascenso da mobilização contra o apartheid, o Umkhonto we Size multiplica suas ações, que crescem em quantidade e qualidade. Os “soldados de Joe”, como são chamados, disparam foguetes contra delegacias de polícia, atacam com explosivos uma refinaria de petróleo, explodem uma usina de energia e bombardeiam a mais importante base militar da Força Aérea da África do Sul. Em 1985, Slovo é o primeiro branco convidado para fazer parte do Comitê Executivo Nacional do CNA e no ano seguinte é eleito Secretário Geral do SACP. Em março de 1988 as forças sul-africanas, que haviam invadido o território angolano, buscando derrubar o governo progressista de Agostinho Neto, são derrotadas pelas tropas da República de Angola com o apoio de voluntários cubanos. A vitória de Cuito Cuanavale faz dobrar os sinos para o apartheid. A África do Sul é obrigada a ceder a independência da Namíbia, território que ocupava ilegalmente, e as forças guerrilheiras da Swapo, organização aliada do CNA vencem as eleições de 1990. Neste mesmo ano o Umkhoto we Size contabilizava 40 toneladas de armamento contrabandeado para o interior da África do Sul e dez mil homens em armas. Joe Slovo, chamado pelos racistas de “o coronel da KGB” era o pesadelo da direita sul-africana.
As tarefas da paz
11 de fevereiro de 1990. Num dos dias mais emocionantes da história da África do Sul, Nelson Mandela é libertado da prisão, depois de 28 anos de cárcere. Sua libertação é fruto de um impressionante movimento de massas, articulado com o isolamento internacional do regime racista. Para o presidente sul-africano, Frederico De Klerk, chegara a hora de perder os anéis para não perder os dedos. No processo de negociação que se abre, Mandela chama para o seu lado o branco mais odiado pelos brancos reacionários e racistas da África do Sul: seu amigo e camarada de armas, Joe Slovo. Anos mais tarde Mandela explicaria esta indicação como fruto não só do apreço pessoal, mas também como reflexo da relação excepcional entre o CNA e o SACP. Ele destacou que os comunistas da África do Sul jamais tentaram aparelhar ou manipular o CNA. Referindo-se diretamente ao PC Sul Africano, Mandela disse: “Eles lutaram para defender o CNA como o parlamento dos oprimidos, contendo dentro dele pessoas com diferentes visões ideológicas, unidas pela Carta da Liberdade.”
Em virtude das novas atribuições, Slovo deixa o estado-maior do UK e defende a saída negociada para impedir a guerra civil, não só entre a maioria negra e os brancos, mas também entre os próprios negros, já que organizações como o Inkhata, de maioria zulu, a serviço dos racistas, prega o separatismo e comete atos violentos contra militantes do CNA, ameaçando mergulhar o país num caos armado.
Durante o processo, De Klerk tenta por todas as formas afastar Slovo da condição de negociador, chegando a ameaçá-lo com a prisão, porém esbarra na sólida resistência do CNA. O líder comunista se torna um dos mais importantes construtores da fase final do processo que, em última análise, liquidou as instituições racistas e instaurou a democracia multirracial em troca da manutenção das propriedades dos brancos. Dez dias depois do lendário comandante da UK anunciar o fim unilateral dos combates, Mandela compareceu pessoalmente ao comício de relançamento do Partido Comunista. Lá, debaixo dos aplausos de 50 mil trabalhadores, quase todos negros, recordou que ele e Slovo compartilhavam a ideia de uma África do Sul não dividida por raças, hipotecando mais uma vez sua solidariedade e gratidão ao SACP e seu líder Joe Slovo.
Quando se elegeu presidente, Mandela nomeou Slovo ministro da Habitação. Ele ficou menos de um ano no cargo, porém. Morreu em 1995, vítima de câncer. Como última homenagem, foi enterrado no cemitério de Soweto, o bairro do memorável levante que contribuiu enormemente para a derrocada do apartheid. Mais tarde, lembrando o fato, Gillian Slovo, a filha mais velha das três que Slovo teve com Ruth disse “Minha mãe está enterrada em Maputo e meu pai em Soweto. São poucos os brancos que estão nestes lugares”.