Camila de Caso
Crise sanitária no Brasil
Vivemos uma crise econômica mundial provocada pela disseminação do coronavírus que tem natureza distinta das crises anteriores observadas no capitalismo. Neste caso, o início da crise se deu no mundo real, na esfera produtiva, posteriormente atingindo os mercados financeiro e de crédito.
Desde a década de 1980, o capitalismo intensificou a fase de globalização com nova estrutura de integralização do comércio gerando uma nova ordem econômica a partir da competição entre os distintos sistemas de produção nacional. De um lado tivemos o movimento de centralização do capital e de outro a descentralização da produção.
Agora, a globalização mostra a face perversa: a interdependência imposta pelas cadeias globais de valor, em prol da maior especialização e eficiência, oculta uma imensa vulnerabilidade para empresas e Nações. A necessidade de importação de peças da China para continuidade da produção global é uma realidade. Num primeiro momento, pouco a pouco, os polos industriais de cada país foram fechados a fim de conter a disseminação acelerada do vírus a partir da importação de peças intermediárias para a garantia da continuidade das cadeias produtivas e os impactos no mercado acionários foram imediatos.
O segundo fator que corroborou para a desorganização das cadeias produtivas globais foi a queda na produção industrial e de serviços. Nos primeiros meses do ano a produção chinesa registrou queda de 13,5%, cuja participação no PIB mundial é de quase 20%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). As vendas no varejo e o investimento em ativo fixo caíram 20,5% e 24,5%, respectivamente, nos dois primeiros meses do ano.
Sinais de desabastecimento
A interrupção de importação dos países europeus a fim de conter a disseminação do vírus em meio a medidas protecionistas somada à contração industrial da China já dá sinais de um desabastecimento de bens intermediários.
Concomitante, tivemos a disputa geopolítica entre Arábia Saudita e Rússia que evidencia a interdependência das cadeias globais de valor já citada. Esse enfrentamento que se traduziu para desvalorização do preço do barril de petróleo no mercado internacional é também exemplo dessa interdependência ao afetar diretamente as cadeias produtivas e as empresas do setor de energia. Ela é particularmente negativa para países dependentes da renda do Petróleo. Vale notar que internamente teremos também efeitos negativos na arrecadação dos Estados extratores da matéria-prima advindos da perda de fonte de royalties em um momento onde se fará necessário o aumento do investimento e transferências de renda.
Ao que tudo indica, os efeitos da crise sanitária no Brasil serão devastadores. Se na economia é possível diminuir a perda de lucro e reverter a tendência de longo prazo, quando tratamos de vidas as decisões devem ser tomadas imediatamente. Temos demandas urgentes nas áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia, assistência social e trabalho. O que nos traz de volta sempre a mesma questão: de onde virá o dinheiro para que o Estado consiga atender às demandas de investimento público? Como financiar o combate ao covid-19?
Distribuição de renda
São inúmeros os mecanismos que o Estado detém para conseguir atenuar os efeitos econômicos e proteger a população mais vulnerável garantindo uma renda básica durante o momento de pandemia. É necessário também que o Estado assista às pequenas e médias empresas e que nacionalizem os fluxos de rendimento para que não jogue à própria sorte parcela da população que historicamente carrega o país nas costas, por meio da produção de seu excedente.
É verdade que em uma economia como a brasileira as restrições financeiras para o gasto público são poucas, se não inexistentes. Aqui, o Estado deve agir rápido de maneira a assegurar que todos, inclusive a classe trabalhadora, possam tomar as necessárias medidas de isolamento social de modo a reduzir ao máximo a velocidade de disseminação do vírus para que o sistema de saúde dê conta da demanda.
Porém, se, ao contrário do divulgado pelos economistas mainstream, é verdade que o Estado não está quebrado, também é verdade que se tivéssemos avançado em pautas que aumentam o poder de arrecadação, ao invés de reformas que reduzem gastos, estaríamos, hoje, em situação melhor do que a atual.
É necessária uma reforma tributária no Brasil que tribute mais os super-ricos e traga alívio financeiro para a população brasileira.
Sem tocar no essencial
O ano de 2019 foi marcado pelo primeiro ano do governo Bolsonaro, no qual a principal medida foi aprovar a Reforma da Previdência, ou seja, diminuir direitos da classe trabalhadora para garantir a continuidade das taxas de lucro do setor privado.
Também em 2019 tramitaram no Congresso Nacional duas propostas de reforma tributária. Uma na Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição nº 45 de 2019 apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e elaborada em parceria com o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Outra no Senado Federal, a Proposta de Emenda à Constituição nº 110 de 2019 que tem conteúdo idêntico ao substitutivo aprovado na Comissão Especial da Proposta de Emenda à Constituição nº 293 de 2004 da Câmara dos Deputados, tendo como relator o Deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR).
É importante destacar que ambas as propostas visam a simplificação de impostos, não avançam nos principais problemas de nossa atual carga tributária. A diferença entre as duas propostas que tramitaram em 2019 no Congresso Nacional é a escolha de quais impostos e/ou tributos seriam unificados. Vale ressaltar também que a vontade política do atual Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em se chancelar perante o mercado financeiro fez com que a PEC nº 45 de 2019 avançasse mais no Congresso trazendo maior protagonismo a Casa. Em decorrência do exposto, trataremos de detalhar mais a Proposta da Câmara dos Deputados.
A PEC nº 45, de 2019, avança ao simplificar a incidência de tributos sobre bens e consumos na carga tributária brasileira popularmente conhecida por ser caótica pela quantidade de impostos oficiais divididos entre municípios, estados e a União. Porém, é limitada e não atinge o principal problema: a falta de progressividade na tributação de renda e patrimônio no Brasil aprofunda e reproduz a desigualdade social. Ou, como disse Eurico Marcos Diniz de Santos, diretor do CCif, em audiência pública da “Comissão Especial da PEC 45/2019 Reforma Tributária” no dia 01 de outubro de 2019, não há reforma, é somente uma simplificação de impostos.
Redistribuir recursos
No momento que o debate econômico colocado pelo Ministério da Economia, dirigido por Paulo Guedes, diz respeito a falta de recursos para financiar e viabilizar o isolamento social a fim de salvar vidas a partir de transferência de renda para a população em maior vulnerabilidade a qual o praticado ao redor do mundo por governos tanto de esquerda quanto de direita é urgente e necessário que seja debatida a arrecadação de tributos como função redistributiva para a sociedade.
Se o debate permeia o campo de que o Estado não tem capacidade financeira de honrar com suas obrigações, sendo omisso e severo ao não interferir ativamente para diminuir o caos social que a população já vinha se deparando e que se intensifica a partir da crise sanitária, é necessário que se diminua a incidência de tributos sobre bens e serviços que o Brasil se encontra acima da média dos países da OCDE em proporção ao PIB e aumente progressivamente a incidência de tributos sobre renda e patrimônio dos super ricos. Grosso modo, o objetivo prioritário da PEC 45/2019 desenhada é promover a migração para um novo modelo com dois impostos: um imposto moderno sobre o valor adicionado, batizado de IBS; e um Imposto Seletivo (IS) com incidência sobre bens específicos cujo consumo se deseja desestimular (bebidas alcóolicas, produtos do fumo etc.).
A implementação do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) se propõe a simplificar a carga tributária brasileira a partir da unificação de tributos que incidem sobre o consumo de bens e serviços. A simplificação se dará sobre impostos e contribuções da esfera da: (I) União, sendo esses, IPI, PIS e Cofins; (II) na esfera Estadual, ICMS; e (III) Municipal, ISS. Portanto, podemos dizer, com conforto, que a proposta de unificar as alíquotas desses cinco tributos e alterar a arrecadação dos entes federativos colocando como substitutivo o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) visa apenas simplificar a tributação de bens e serviços no país.
Discurso simplista
É senso comum que a carga tributária brasileira é pesada no bolso da população e de difícil compreensão. Por isso, o discurso raso de que uma proposta de reforma tributária que simplifique, a partir da unificação e diminuição das alíquotas incidentes, e que modernize o sistema de tributação, trazendo a falsa percepção de sobra de renda a partir da redução de alíquota sobre alguns bens e serviços no pagamento de impostos para o governo, tem forte apego popular.
Diferentemente dos tributos brasileiros, o IBS vem no formato do Imposto sobre Valor Agregado (IVA). No modelo qual de tributação, os impostos e regimes cumulativos e não cumulativos de recolhimento convivem entre si, dificultando o aproveitamento de créditos tributários, e fazendo “efeito cascata” ao longo da cadeia produtiva e sobre as exportações e investimentos. No novo modelo, a literatura internacional informa que o imposto sobre valor agregado tem mecanismo de pleno aproveitamento de créditos tributários, fazendo com que a incidência se dê de maneira não cumulativa e exclusiva sobre o consumo final e nem sobre as exportações e investimentos.
Em outras palavras, podemos afirmar que a incidência cumulativa ao longo da cadeia de produção, desde o fornecedor de matéria prima até o consumidor na ponta, se soma o valor de cada etapa da cadeia produtiva acumulando ao longo do processo até chegar no valor acumulado final, recaindo sobre o consumidor. Esse seria o “efeito cascata”.
Já o modelo não cumulativo, ou seja, o do imposto sobre valor agregado, a cada etapa do modo de produção se é descontado o valor do tributo pago na etapa anterior do valor dessa nova etapa, porpelos economistas mainstream, é verdade que o Estado não está quebrado, também é verdade que se tivéssemos avançado em pautas que aumentam o poder de arrecadação, ao invés de reformas que reduzem gastos, estaríamos, hoje, em situação melhor do que a atual. É necessária uma reforma tributária no Brasil que tribute mais os super-ricos e traga alívio financeiro para a população brasileira.
Alterar a carga tributária
Nos estudos de tributação internacional, o princípio da não cumulatividade foi pensado para garantir o ressarcimento integral do imposto incidente sobre bens e serviços utilizados na atividade produtiva. A ideia por trás do IVA é taxar o consumo e não a produção, em especial a partir do modelo apresentado pelo IBS na PEC nº 45/2019, na qual não há alteração da carga tributária brasileira e muito menos no percentual dos impostos que recaem sobre bens e consumo, renda e patrimônio.
A uniformização das alíquotas dos impostos incidentes sobre bens e serviços apenas redistribuirá a carga entre esses dois setores, isto é, não altera a estrutura da carga tributária, que continuará num patamar de pouco menos de 50% sobre o consumo, enquanto a tributação sobre renda e patrimônio permanecerá inalterada. O que deveria ocorrer, para aumentar a progressividade tributária, seria a redução da proporção de impostos pagos com bens e serviços para a população brasileira taxando mais renda e patrimônio.
A PEC propõe também a implementação do Imposto Seletivo (IS) que tem índole extrafiscal, cobrado sobre determinados bens, serviços ou direitos com o objetivo de desestimular o consumo. Ponto de outra forma, o IS completa o modelo proposto incidindo sobre bens específicos cujo consumo se deseja desestimular (exemplos, bebidas alcóolicas, produtos do fumo etc.). O modelo de IS visa a mudança de comportamento dentro da sociedade e não aumentar a arrecadação do Estado, por isso o caráter extrafiscal, o que for arrecadado via IS será descontado do valor arrecadado do IBS. Dessa forma, IBS e IS são complementares.
Modelos internacionais do que podemos colocar para elucidar o IS seria a tributação de meio ambiente. Será de competência federal e base de incidência ampla que incidirá em uma única etapa (monofásica) sobre bens e serviços específicos.
Portanto, a incidência é monofásica sendo a tributação realizada apenas em uma etapa do processo de produção e distribuição, e nas importações. Sendo assim, o IS e o IBS são tributações complementares.
Justiça tributária
A reforma tributária sempre foi uma bandeira importante para os partidos de esquerda por ser um instrumento que, bem aplicado, pode levar à distribuição de renda da sociedade. A pandemia causada pelo novo coronavírus, ao mesmo tempo que provocou um aumento expressivo de demandas da sociedade por ampliação dos serviços de saúde, vem ocasionando uma queda abrupta da arrecadação, fruto da redução da atividade econômica. Estima-se que os Estados e o Distrito Federal sofrerão uma perda de arrecadação da ordem de R$ 14 bilhões nos próximos três meses, como informa o Conselho Nacional de Política Fazendária do Ministério da Economia (Comsefaz).
O governo Bolsonaro tem sido rápido em apresentar medidas para limpar o fluxo de rendas negativas do sistema financeiro, porém não age nem de longe com a mesma responsabilidade com a sociedade. O Estado tem que agir no sentido de dar segurança para a sociedade que se encontra em alta vulnerabilidade. As medidas urgentes de combate ao covid-19 devem ser financiadas a partir de aumento do endividamento público e o mundo deverá se acostumar por um longo período a viver com suas economias com alto grau de endividamento em relação ao PIB.
A proposta do PSOL
No Brasil, quase 30% da renda está na mão de 1% da população, as regras tributárias privilegiam os mais ricos, em prejuízo dos mais carentes. Um momento crítico como este deve ser visto como uma grande oportunidade de trazer maior justiça à distribuição de rendas no país. O litígio tributário chega a cerca de 40% do PIB brasileiro já descontado os créditos podres, ou seja, irrecuperáveis. Desse modo, o PSOL apresentou pro – postas na PEC 45/ 2019 e retoma o debate dentro da Câmara dos Deputados a partir de medidas de:
. Eliminação da isenção da taxação de lucros e dividendos gerando um impacto de R$ 55 bilhões
. Aumentar a alíquota de Imposto sobre Herança para os super-ricos, impacto positivo de R$ 35 bilhões
.Criação de cobrança do Imposto sobre Propriedade de Veículos Auto motores (IPVA) para aviões e embarcações de passeio, impacto de R$ 4,6 bilhões.
. Implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), impacto de R$ 36,7 bilhões.
. Criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas da Pessoa Física (CSPF), impacto de R$ 28,1 bilhões.
Por fim, nossa atual carga tributária é altamente regressiva com 48,44% dos tributos incidindo sobre os consumos de bens e serviços, quando a média dos países da OCDE é de 32,55%. Temos uma carga tributária em relação ao PIB alinhada à média dos países da OCDE, porém concentradora de riqueza.
O sentimento que o cidadão comum tem de que paga muitos impostos, mostra-se uma verdade pela alta regressividade da carga tributária brasileira, que faz com que os mais pobres e a classe média paguem mais impostos proporcionalmente a sua renda recebida em relação aos superricos. A regressividade da carga tributária afeta diretamente o bolso da maior parcela da população. Para além de fonte de financiamento de políticas públicas, o sistema tributário é um instrumento de política econômica indireta que permite aumentar a renda disponível da população sem que para isso se mexa nos gastos do governo. É possível e urgente a alteração da carga tributária brasileira incidindo mais sobre renda e patrimônio e reduzindo a tributação sobre bens e consumo. Os governos que quão antes resolverem a crise sanitária, apresentarão também retomada econômica mais acelerada, como até mesmo o FMI vem demonstrando. O que falta é vontade política deste governo.