Por Bruno Zaidan*
Introdução
O III Congresso Internacional de Marxismo e Psicologia aconteceu durante os dias 12 a 15 de novembro em Goiânia, na UFG. A última edição havia sido realizada em 2012, na cidade de Morelia, no México, e um relatório dessa edição, produzido por Ian Parker, pode ser acessado em Discourse Unit.
O congresso reuniu algumas centenas de estudantes, pesquisadores, intelectuais, militantes, e com uma presença importante de militantes do PSOL na sua organização. A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco acompanhou o congresso, participando dos espaços de debate e apresentação de trabalhos e também realizando algumas entrevistas com alguns convidados internacionais.
Neste artigo, buscamos apresentar algumas discussões levantadas ao longo dos 4 dias de congresso, e que nos auxiliam a pensar uma prática revolucionária de libertação à luz do marxismo.
A natureza de classe da psicologia
Uma das principais questões que permearam os debates do congresso diz respeito a qual a natureza da relação entre a psicologia e o capitalismo e qual deve ser a postura dos marxistas diante dela. Para David Pavón-Cuellar, os participantes do congresso se dividiram entre “aqueles que acreditam na psicologia e aqueles que não acreditamos na psicologia.”
Isso porque a psicologia é uma instituição e uma ideologia ligada ao estado burguês, que tem sua formação estruturada na alienação que o capitalismo produz. Ian Parker sistematiza quatro dessas formas de alienação, a partir de Marx, que são: a alienação do trabalho criativo; a alienação dos seres humanos uns dos outros; a alienação na divisão entre mente e corpo; e a alienação entre o ser humano e a natureza.
A psicologia está essencialmente colocada nesse falso dualismo entre mente e corpo, que separa o objeto da psicologia e da fisiologia como se fossem duas coisas diferentes. David Pavón-Cuellar nos diz que “[A divisão entre mente e corpo] é encontrada nessa sociedade, quando temos uma classe que domina e uma classe dominada, e a classe dominante assume o trabalho intelectual e condena a classe dominada ao trabalho manual, e quando o trabalho intelectual se associa a alguns seres humanos e o trabalho manual a outros, nos convencemos de que são duas coisas diferentes”.
Portanto, se é necessário romper com as alienações produzidas pelo capitalismo e produzir uma outra sociedade, não se pode contar que a psicologia será uma aliada para isso, seja como teoria ou como prática. Isso fica evidente na psicologia hegêmonica, que chegou a apoiar a ditadura civil-militar brasileira, sendo o primeiro presidente do CFP um colaborador da ditadura, como revela o livro de Juberto Souza, “Os ásperos tempos da psicologia: do fechamento de espaços institucionais à luta revolucionária durante a ditadura empresarial-militar”, lançado durante o congresso.
Sabah Siddiqui reforça essa ideia, afirmando que “a psicologia hegemônica é reacionária, é regressiva. E fortalece o status quo. Então não acho que a psicologia é uma aliada do marxismo, da luta de classes. O capitalismo criou a alienação. E se somos capazes de romper em direção ao socialismo, ao comunismo, essa fratura não vai existir mais e portanto não precisaremos mais da psicologia na sua atual forma”.
Muitas pessoas, porém, entram na psicologia com a ideia de ajudar a mitigar o sofrimento alheio e dar condições melhores de vida para as pessoas. Susan Rosenthal, porém, nos alerta que “o problema é que você só pode focar no indivíduo e não nas condições sociais, que são a raiz do problema para essas pessoas. Então você se torna parte do sistema de gerenciar esse sofrimento, ao invés de acabar com ele”. Essas pessoas, portanto, esbarram num limite quando apostam que a psicologia é o que pode acabar ou mitigar o sofrimento.
Psicologia crítica e a luta pela libertação
Apesar dessa relação intrínseca entre psicologia e capitalismo, também há muita produção e ação a partir de uma perspectiva marxista e revolucionária na psicologia, e o congresso é expressão disso. Existem abordagens da psicologia que buscaram de partida se conectar diretamente com o marxismo, como a psicologia soviética e a psicologia histórico-cultural, mas também há esse esforço em outras abordagens, e na psicanálise em particular temos visto uma crescente produção nesse sentido, e aqui podemos usar de exemplo o livro “Psicanálise e Revolução: Psicologia crítica para movimentos de liberação” de Ian Parker e David-Pavón Cuellar.
David Pavón-Cuellar cita alguns desses esforços do marxismo na psicologia, como Lev Vigotsky, Leontiev, Rubinstein, Politzer, Wallon e Lucian Séve, e reafirma que “existiram muitas psicologias marxistas, e para mim, pessoalmente, o que elas oferecem é muito mais valioso do que é possível encontrar nas psicologias do bloco ocidental na mesma época”. Mas também alerta que “seu caráter psicológico as impede de levar até às últimas consequências tudo aquilo que podemos encontrar na hora de abordar a subjetividade. Para começar, há um grande problema na psicologia, constitutivo, de que ela é a ciência da subjetividade, mas pretende ser uma ciência objetiva. Então ela objetiva a única coisa não objetivável, que é o subjetivo. E essa contradição da psicologia é reproduzida com frequência, além de por todas as outras [psicologias], também pela psicologia marxista, ainda que não por todas elas.”
As apresentações de trabalho do congresso refletem de alguma forma essa contradição. Elas mostraram o enorme esforço que os pesquisadores têm feito para colocar a psicologia com uma perspectiva crítica a serviço da transformação social, com boas elaborações acerca de temas ligados à educação, aos trabalhadores de aplicativos, às questões de raça, gênero e sexualidade, e muitos outros temas. No entanto, também é possível identificar que, ao ficarem circunscritos ao âmbito da psicologia, muitos enfrentam um limite ao apontar ações para a superação dessas questões.
Para Ian Parker, o que a psicologia crítica faz é “abrir um espaço para essas pessoas pensarem de outra forma sobre o processo de transformação pessoal e também fazerem uma conexão entre a transformação pessoal e a transformação política”. Isso é feito em “aliança com o argumento feminista de que o pessoal é político. Mas quando fazemos isso, sempre temos que lembrar que o político não é apenas pessoal, o que também é um argumento que muitas feministas socialistas apresentaram”.
Sabah Siddiqui fala algo similar em referência à psicologia crítica. “Somos alienados uns dos outros. Alienados de nós mesmos. E eu acho que a psicanálise pode nos dar alguma pista, não sobre transformar o mundo, mas como pensar sobre o trabalho psíquico de fazer essa transformação. Se feita criticamente, a psicologia nos dá algumas ferramentas para entender como podemos trabalhar juntos coletivamente e como podemos lidar com nossas emoções mais difíceis enquanto somos parte de uma luta maior”.
Esses apontamentos mostram que ainda que não mudem a natureza de classe da psicologia, existem formas de fazê-la que possam contribuir para as lutas por libertação, ao invés de serem um entrave.
O congresso e suas perspectivas
Na nossa perspectiva, o congresso cumpriu dois papeis fundamentais.
O primeiro foi se conectar com a principal luta por libertação que acontece hoje no mundo, que é a luta contra o genocídio em Gaza. A mesa de abertura foi a maior evidência disso, com bandeiras da Palestina em todos os lugares, e um companheiro palestino na mesa, Tareq Allada, que fez uma fala comovente denunciando as agressões do estado de Israel. Ian Parker também reforça esse aspecto, agregando o hino da Internacional Comunista na sessão de abertura, e diz que “é muito evidente que esse é um espaço para os psicólogos se politizarem e quebrarem as maneiras tradicionais e conservadoras com que a psicologia geralmente é feita”.
Além disso, ele apresenta uma forma como a psicologia pode apoiar a luta palestina, dando o exemplo das iniciativas da Red Clinic, na qual atua, de apoio aos psicoterapeutas que trabalham em Gaza e na Cisjordânia. “Temos que lembrar que os psicoterapeutas palestinos trabalhando no estado de Israel geralmente são treinados por psicoterapeutas que são aliados com o estado de Israel, e essa supervisão faz com que seja muito difícil para os psicoterapeutas palestinos conectarem a psicoterapia com a resistência política. Porque seus supervisores dirão que se os clientes deles estiverem pensando muito radicalmente ou querendo entrar em ação contra o estado sionista, que eles devem encerrar a terapia ou entrar com medicação psiquiátrica.”
Essa conexão com as lutas em curso diz respeito a uma orientação para a luta por libertação, que é fundamental. Susan Rosenthal debate que “nós temos que voltar aos básicos. Ter uma orientação de classe. Uma orientação para a classe trabalhadora, que enfatize a solidariedade, a auto emancipação. E as ações acima das palavras. É preciso colocar a teoria para teste e ela não pode se desenvolver sem ser testada em ação”.
O segundo aspecto importante do congresso foi a capacidade de conectar tanta gente na psicologia interessada em avançar na relação com o marxismo, tanto no Brasil quanto no mundo. O congresso teve na sua sessão de abertura cerca de 300 participantes, e contou com mais de uma dezena de convidados internacionais.
O internacionalismo foi um ponto alto do congresso, e Sabah Siddiqui reconhece “o esforço do trabalho de tradução, de falar mais devagar, para poder se comunicar, para poder fazer conexões. Ter o esforço de falar em língua ou um estilo que outra pessoa pode entender. Não acho que isso seja menor, é um trabalho significativo”.
Já David Pavón-Cuellar se surpreendeu com a quantidade de pessoas que trabalham com psicologia marxista no Brasil, “nunca pensei que houvesse tantas, entre estudantes de pós-graduação, estudantes de graduação e professores. No México não somos tantos e existem países onde é praticamente inexistente. Para isso servem esse tipo de evento, para nos reconhecermos uns aos outros.”
Sabah Siddiqui fala de como a psicologia “pode eliminar o entusiasmo. Fazer as coisas parecerem mortas. Então estar em um espaço tão vivo, com pessoas tão jovens pensando e animadas com seus trabalhos, tem algo nesse congresso que faz a psicologia, que pode parecer tão morta, parecer viva”.
Essa capacidade de colocar em contato tantos militantes, pesquisadores e trabalhadores da saúde em contato revela uma potência criativa empolgante, e ajuda a abrir perspectivas para a construção de uma vida e uma subjetividade que não esteja sob as amarras do possibilismo do capitalismo, mas que possa construir e se forjar em uma revolução.
Entrevistados
Ian Parker. Professor emérito da School of Business da University of Leicester (Reino Unido). Suas contribuições para o campo da psicologia crítica são diversos. Trabalha, dentro outros, com os seguintes temas: psicanálise, análise discursiva, marxismo, ideologia, poder. É cofundador (com Erica Burman) da Discourse Unit, uma rede acadêmica interdisciplinar e que hospeda o Annual Review of Critical Psychology.
David Pavón-Cuellar. Professor de Filosofia e Psicologia da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo (México). Doutor em Psicologia pela Universidad de Santiago de Compostela (Espanha) e doutor em Filosofia pela Universidad de Ruan (França). Suas produções estão inseridas dentro do campo da psicologia crítica, dentre elas podemos destacar estudos da teoria lacaniana, da análise do discurso e do marxismo. Diretor da Revista Teoría y Crítica de la Psicología e editor associado da Revista Psychology and Politics International.
Sabah Siddiqui. Professora de Psicologia na Krea University (Índia). É psicoterapeuta, com mestrado em Psicanálise pela Ambedkar University Delhi (Índia) e doutorado pela The University of Manchester (Inglaterra). Entre seus temas de estudos estão: práticas de cura pela fé; métodos de psicologia crítica, etnografia e geografia social; sexo, gênero e poder (violência de gênero, abuso doméstico e sexual, violência contra mulheres e meninas com deficiência e violência contra mulheres consideradas loucas). É membra dos conselhos editoriais de Psicanálise, Cultura e Sociedade e da Annual Review of Critical Psychology.
Susan Mary Rosenthal. Médica canadense, militante do grupo Justice For Workers.
*Bruno Zaidan é psicólogo, da coordenação nacional do Movimento Esquerda Socialista e Coordenador de Projetos na Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.