Mobilidade humana em tempos de crise climática: entre a emergência e a invisibilidade

Por Rede Sul-Americana para Migrações Ambientais (RESAMA)*

Fatores ambientais e climáticos interagem com vulnerabilidades sociais que resultam em um crescente cenário de migrações e deslocamentos forçados. Apesar disso, a discussão desta temática no âmbito das políticas públicas ainda é tímida

aumento e intensificação de eventos vinculados às mudanças climáticas (inundações, alagamentos, furacões, deslizamentos de terra, elevação do nível do mar, aumento de temperaturas, secas, desertificação e degradação ambiental) responde a um cenário de crise climática global que pode dar lugar a desastres mais disruptivos e amplamente midiatizados, como as enchentes no Rio Grande do Sul em 2024, ou desastres profundos e mais silenciosos, nem tão veiculados pelas mídias tradicionais, como o agravamento da seca na Amazônia. Em ambos os casos, estes eventos geram uma série de impactos nos territórios, comunidades, cidades e populações, sobretudo para os grupos mais vulnerabilizados. Um destes efeitos é a (i)mobilidade humana por fatores ambientais, que abarca diversos movimentos como a migração (movimento menos forçado), o deslocamento (movimento mais forçado), a realocação planejada (quando não é mais possível permanecer no lugar) e inclusive a imobilidade, seja involuntária (quando não se tem os meios e recursos para migrar) ou voluntária (quando, mesmo com recursos, as populações optam por manter seus vínculos socioterritoriais). 

A mudança do clima e questões ambientais de modo geral não são, no entanto, os únicos fatores que contribuem para estas (i)mobilidades. De fato, em muitos dos casos, o fator ambiental ou climático se soma, agrava e atua como detonante (gatilho) em contextos de fragilidades socioeconômicas, políticas, culturais e ambientais já existentes. A (i)mobilidade humana acontece como forma de resposta a desastres, ao risco de que aconteçam, ou à perda de modos de vida e meios de subsistência, em cenários agravados por fatores estruturais e de vulnerabilidade preexistentes, como pobreza, insegurança alimentar, discriminação, violência, falta de acesso a serviços básicos e infraestruturas, entre outros. Desta forma, os desastres e outros impactos ambientais e climáticos geradores de (i)mobilidades humanas não são fenômenos naturais, mas são fruto da interação entre as questões ambientais e as vulnerabilidades geradas por dinâmicas de exclusão e discriminação social, econômica e espacial. 

É por esta razão que os desastres com maiores impactos geralmente ocorrem em locais com marcada disparidade na distribuição de recursos, desigualdade de oportunidades, e com baixa capacidade de resposta. A faceta social dos desastres, sejam disruptivos ou silenciosos, está majoritariamente atrelada ao fato de que estes são eventos previsíveis e, em grande parte, passíveis de planejamento e prevenção por meio da redução de riscos e locais inseguros, o combate às vulnerabilidades preexistentes e com o fortalecimento das comunidades afetadas. 

Isto ressalta outro aspecto fundamental para compreendermos as (i)mobilidades humanas no contexto de agravamento dos efeitos da crise climática: a vulneração de direitos durante todo o ciclo do movimento. Isso porque a mobilidade humana por fatores ambientais não se reduz ao momento em que acontece o movimento, mas inclui também o momento prévio (já que as vulnerabilidades e exposição a riscos ambientais e climáticos deixam as populações suscetíveis à migração, deslocamento ou imobilidade) e o momento posterior (quando as populações deslocadas, geralmente após um desastre ou por risco deste, retornam aos seus locais de origem precisam ser realocadas devido aos riscos ou à perda de suas moradias, dos modos de vida e meios subsistência). 

Cada uma destas etapas demanda uma série de ações e políticas específicas direcionadas a: mitigar e implementar medidas de prevenção e redução de risco de desastre ambiental e climático; implementar medidas de adaptação, resiliência e planejamento territorial; reduzir as vulnerabilidades socioeconômicas estruturais; garantir a participação na avaliação do risco ambiental e climático que afeta os territórios; outorgar garantias para que a migração seja uma opção como recurso de adaptação (e não apenas de sobrevivência); a realocação em áreas não expostas a riscos; garantir o direito de participação efetiva e tomada de decisão na realocação planejada; direito à reparação e ao restabelecimento do tecido social e cultural, entre outras. Por esta razão, é preciso interiorizar que o desastre, seja disruptivo ou silencioso, não se esgota na situação de emergência. Ele é antecedido por uma série de fatores de vulnerabilidade (passíveis de ser endereçados por políticas públicas) que dão lugar ao desastre, e cujos impactos se prolongam no tempo, exatamente quando a situação de emergência “passa”, agravando a situação de invisibilidade e abandono das pessoas deslocadas. Neste contexto, como amplamente observado nas inundações no Rio Grande do Sul em 2024, muitas pessoas perdem não apenas suas moradias, mas também sofrem perdas humanas, materiais e culturais, a perda de modos de vida, de meios de subsistência, de vínculos socioterritoriais, do tecido social, de histórias, de memórias, e outros tantos elementos que fazem possível a vida digna em comunidade. 

Apesar do crescente cenário de migrações e deslocamentos forçados por fatores ambientais e climáticos em todo o mundo, a discussão desta temática no âmbito das políticas públicas ainda é tímida. No âmbito internacional, alguns esforços têm sido feitos para reconhecer os chamados “refugiados climáticos” a fim de garantir alguma forma de proteção das pessoas afetadas por este fenômeno. Contudo, por se tratar de um instituto específico de proteção com grande peso político para os países e aplicado em casos de perseguição, estes esforços não têm avançado. 

Dada a complexidade deste fenômeno, é preciso uma abordagem integral e transversal que articule diferentes frentes e agendas de trabalho. No âmbito nacional, é preciso articular a agenda ambiental e climática, junto à de Redução de Risco de Desastre (RRD), mobilidade humana e direitos humanos, a fim de prevenir o deslocamento e as remoções forçadas. No âmbito local, também será necessário articular as agendas de planejamento territorial, habitação, infraestrutura e serviços sociais com o objetivo de garantir o direito das pessoas: (i) a permanecerem nos seus territórios e comunidades com segurança e dignidade, (ii) de optarem pela migração quando assim o decidirem, ou (iii) decidirem pela realocação planejada quando comprovadamente necessária (como medida de último recurso), garantindo a participação delas na avaliação do risco ambiental e climático, e a inclusão das perdas e danos no processo. Em todos os cenários, e em particular para o último, é preciso que as comunidades e seus habitantes expostos a riscos de desastres se apropriem desta discussão em torno da reivindicação da proteção e garantia de direitos nas diferentes etapas do ciclo do movimento. 

Hoje, além de projetos de lei sobre o tema (entre os quais destacamos o PL No. 1.594 de 2024 – Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos, da deputada Erika Hilton) e a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (que aborda em parte os desastres por barragens), não existe no Brasil uma política de proteção para as milhares de pessoas que já estão sendo afetadas por este fenômeno ou para as que podem vir a sê-lo. É preciso reivindicar a inclusão da (i)mobilidade por fatores ambientais e climáticos nas políticas públicas, já que para algumas comunidades a migração e a realocação será talvez a única estratégia de adaptação ou medida de último recurso. Do mesmo modo, é preciso ficarmos atentos à forma como estas políticas serão construídas. Considerando que os grupos mais afetados são aqueles que menos tem contribuído para a crise climática e que mais sofrem com o atual sistema de exclusão social e racial, como as populações indígenas, rurais, tradicionais, negras, quilombolas, migrantes, faveladas, entre outros, esta temática deve ser abordada desde uma perspectiva interseccional, antirracista e de justiça ambiental e climática, garantindo que o risco climático não seja instrumentalizado para o benefício de determinados grupos de interesse. 

Há, ainda, uma série de desafios em relação a este fenômeno, como a insuficiência de dados para visibilizar os deslocados e migrantes por fatores ambientais, um melhor entendimento das dinâmicas locais onde acontece a (i)mobilidade, a falta de políticas específicas de proteção, entre outros. Contudo, isso não pode servir de argumento para o Estado e os representantes políticos se isentarem da responsabilidade de reconhecer e proteger os direitos da população afetada, nem para negar à população o direito de migrar e de permanecer com dignidade e segurança em
seus territórios. 

*Composta por especialistas independentes, pesquisadores, acadêmicos e profissionais, a Rede aborda, desde 2010, a temática da mobilidade humana relacionada a fatores ambientais, objetivando o reconhecimento e protecção das pessoas deslocadas ou imobilizadas em contextos de catástrofes, alterações climáticas e degradação ambiental (https://www.resama.org/)

**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.

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