Esta entrevista com Francisco Kelvim, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) inaugura um espaço da Jatobá sempre dedicado a diálogos com movimentos sociais e pessoas na linha de frente da luta socioambiental. Originado a partir de experiências de organização local e regional no enfrentamento de ameaças e agressões sofridas na implantação de projetos hidrelétricos, o MAB se transformou em uma organização nacional e hoje, além de lutar pelos direitos dos atingidos – antes, durante e depois da construção de empreendimentos -, reivindica também um projeto energético popular.
Rud Rafael – Como você virou integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)? Poderia contar um pouco da história do movimento?
Francisco Kelvim (MAB) – Iniciei a minha luta no Rio Madeira, uma região atingida por Jirau e Santo Antônio, duas grandes hidrelétricas que foram construídas na Amazônia e que atingiram milhares de pessoas no estado de Rondônia. Eu iniciei a minha luta em 2014, no contexto das enchentes que nos atingiram, foi quando tive contato com o MAB e me organizei no movimento. A minha região de Guajará-Mirim, apesar de sofrer até hoje os impactos de Jirau e Santo Antônio, também tem sido estudada no inventário hidrelétrico para construção de outras hidrelétricas.
O MAB hoje tem 32 anos de existência apesar de que a luta das populações atingidas por barragens no Brasil tem pelo menos 40 anos. O movimento se constitui a partir de organizações locais e comissões regionais de populações atingidas por barragens que se organizaram a partir da construção do modelo energético brasileiro desenvolvido no período da ditadura militar. Nesse período, ocorreu a construção de grandes barragens na Amazônia, como Tucuruí, no Pará, Samuel, em Rondônia, Balbina, no Amazonas, assim como em outras regiões do país.
Nosso movimento se desenvolveu a partir das violações do modelo energético que nasceu com a ditadura militar e ganhou características autoritárias, autocráticas e tecnocráticas, e que permanece até hoje atingindo diversas populações. Essas pessoas, que foram tendo seus direitos violados, se organizaram de forma local e regional em 1991, fundando o Movimento dos Atingidos por Barragens como um movimento nacional.
Rud Rafael – Diante de um contexto de financeirização da natureza, crise climática e privatização do setor energético e de outros serviços básicos, quais são as principais lutas e bandeiras do MAB hoje?
Francisco Kelvim – Entre nossas principais lutas está, em primeiro lugar, a luta histórica do movimento para que haja no Brasil uma Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), uma lei que garanta os direitos das populações atingidas. Depois do rompimento da barragem de Brumadinho em 2019, em plena pandemia, em 2020, conseguimos aprovar na Câmara esse Projeto de Lei que foi para o Senado, onde passou pela Comissão de Meio Ambiente e agora está na Comissão de Infraestrutura. Temos pressionado o Governo Federal para que ajude a aprovar esse projeto para acelerar e fazer o que possa ser feito via decreto. Essa política vai determinar quem são
os atingidos, quais são
os seus direitos e como vai ser o tratamento dessas populações.
Em segundo lugar está a criação da política de segurança das comunidades e pessoas atingidas por barragens ou grandes obras hídricas, de mineração etc. O licenciamento ambiental é muito frágil, a política atropela as decisões técnicas, de modo que precisamos de uma política de segurança dessas populações e de uma política de participação para efetivar a segurança das comunidades. Hoje, o que acontece é uma política de segurança para as barragens, apenas para as infraestruturas, não para as pessoas e as comunidades.
Em terceiro lugar, temos pautado a construção de um organismo de Estado capaz de coordenar ações para essas populações. Ações de reparação, ações em relação ao passivo histórico que há com as populações atingidas pela mineração, mas também pelos eventos extremos. O que a gente tem tido com Ministério do Desenvolvimento Regional é insuficiente, por isso estamos pautando que se crie um órgão que pode estar dentro da estrutura do próprio governo, da Secretaria Geral da Presidência da República, com um caráter interministerial, em diálogo com a política nacional de adaptação em mudanças climática.
Por último, temos também a luta pela criação de um fundo. Não adianta ter as políticas se a gente não tiver um fundo que garanta recursos para fazer reparação.
Rud Rafael – O MAB, junto com outras organizações, integra a Plataforma Camponesa e Operária da Água e da Energia. Você poderia falar um pouco mais dessa experiência e de como vem sendo a construção de unidade entre campo e cidade por parte do movimento?
Francisco Kelvim – Desde a década de 90, temos compreendido que a construção de um projeto energético popular para o país, o projeto que a gente quer construir para o Brasil, deve se dar considerando empresas estatais como a Eletrobrás e a Eletrobras, o que passa por disputar mundialmente a produção. A energia é central na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, por isso houve uma ofensiva muito grande sobre o país e, nesse contexto, a partir de 2008 ou 2009, surge a Plataforma Operária e Camponesa de Água e Energia, uma experiência histórica.
E nossa análise estava correta: grande parte do que foi a Lava Jato contribuiu para a destruição da nossa indústria nacional e desse domínio tecnológico, uma ofensiva imperialista sobre o Brasil. Mas a gente, em grande medida, foi vitoriosa. Um exemplo disso talvez seja a campanha que fez com que parte dos royalties da exploração do pré-sal fossem para saúde e para educação. Isso até o golpe de 2016, que destruiu esse marco, mas a gente conseguiu construir essa experiência, e talvez seja a única com essas características hoje do mundo: a união de trabalhadores com os atingidos pelo modelo energético. A reconstrução de nosso país só se dará com soberania e distribuição da riqueza.
Rud Rafael – A ação dos movimentos sociais tem sempre um caráter urgente, de uma demanda que não pode esperar, mas também um caráter mais estrutural, de mudança social de certas desigualdades e opressões. O MAB tem integrado a campanha pelo Marco Nacional de Direitos Humanos e Empresas, que se desdobrou no PL 572/22 que tramita hoje no Congresso. Qual a importância dessa iniciativa?
Francisco Kelvim – Não há no mundo inteiro um marco que regule as atividades das empresas, que trate da responsabilização dessas empresas em decorrência de desastres e violações ambientais e de direitos humanos, algo que defina qual tratamento tem que ser dado a essas populações atingidas, ao meio ambiente, enfim, não existe isso hoje, e isso é um grande problema. A consequência do estágio de acumulação capitalista e da crise econômica que vivemos é que as atividades de exploração mineral energética de petróleo se intensificam numa busca incessante pelo aumento da taxa de lucro das grandes empresas, as quais colocam o lucro acima da vida e do meio ambiente.
Diante disso, temos impulsionado em nível internacional a construção de um Tratado Vinculante no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), assim como o respeito à Convenção 169 para efetivação, garantia e defesa dos direitos das populações que são atingidas pelas atividades das grandes empresas. Este ano se completam 10 anos dessa campanha. Precisamos de uma legislação que consiga identificar e punir as empresas que violam direitos e que consiga também concretizar quais são as violações de direitos humanos e ambientais decorrentes dessas atividades. Então esta é a luta de hoje: ter algo assim no mundo e no Brasil.
Rud Rafael – Hoje, 80% da população vive em cidades, não tem como pensar em transição energética e solução para a crise ambiental sem pensar a atuação no urbano. Poderia nos contar algumas das experiências do MAB que apontam para alternativas nesse cenário?
Francisco Kelvim – A gente tem falado no MAB que a transição energética brasileira é diferente da transição energética que o mundo inteiro está fazendo. Primeiro porque a nossa matriz é barata; segundo porque a gente tem uma combinação de fontes renováveis que lugar nenhum do mundo tem, boa parte da nossa matriz hoje é renovável e emite muito pouco carbono. Não temos que fazer um processo de inversão da matriz como muitos países da Europa que têm dependência da energia nuclear, do carvão etc.
Essa questão do preço tem que ser central: não podemos ter a matriz elétrica mais barata e ao mesmo tempo a segunda conta de luz mais cara do mundo! É preciso ter um processo de participação da população para discutir isso dentro do governo, no Ministério de Minas e Energia, disputar a conta de energia. Também temos que reivindicar o saneamento e água tratada nas grandes cidades.Além disso, cabe ressaltar que não há saídas possíveis para as mudanças climáticas e para a transição energética sem considerar a proteção da floresta amazônica: o desmatamento da Amazônia é o principal responsável pelas emissões de CO2 no país. E não podemos esquecer dos outros gases de efeito estufa. No caso do metano, somos um dos maiores emissores, principalmente por conta da produção de gado para exportação.
A transição energética brasileira não poderá ser construída se a gente deixar que as grandes empresas, como a Total, a Exxon e a Shell sigam determinando os rumos. Essa transição ainda está muito voltada para exportação, como no caso da produção de hidrogênio verde, a qual não está atrelada ao crescimento do país, nosso crescimento industrial e nossa demanda de energia – isso se chama colonialismo. Não podemos aceitar a imposição à América do Sul e África de uma transição energética que sirva à exportação para outros países. Temos que incidir nesse processo, inclusive no novo marco do setor elétrico, no qual também está sendo discutido o hidrogênio verde.
O MAB tem construído experiências que apontam para um projeto energético popular. Nos últimos anos, por exemplo, fizemos 240 hortas em quatro estados da Amazônia, promovendo a produção de alimentos de base agroecológica e produção de energia fotovoltaica para irrigação. Isso fez com que as famílias aumentassem sua produção e a diversificassem, porque se você consegue ter investimento, você diminui a conta de energia e, dessa forma, a família tem condições para diversificar, aumentar a produção, investir no lote e também fazer com que a gente diminua sua vulnerabilidade econômica e alimentar.
Temos também a experiência do Veredas Sol e Lares, que é uma experiência muito importante que vamos inaugurar este ano: a maior usina de energia solar flutuante da América Latina, um projeto que a gente construiu na região norte de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, em parceria com a Cemig a partir Projeto de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da Aneel, a Agência Nacional de Energia Elétrica.
A gente construiu um projeto que atualmente beneficia 1.200 famílias num processo de hibridização do reservatório da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta em Grão Mogol, no Vale do Jequitinhonha. É uma PCH antiga, que não gera mais energia, e fizemos um processo de hibridização, transformando um de seus reservatórios através de placas flutuantes: uma usina de geração fotovoltaica, não mais hidráulica, e tudo isso foi desenvolvido a partir de uma pesquisa social e com o domínio da tecnologia pelos próprios atingidos na região. É uma experiência piloto muito bonita que mostra a capacidade que a gente tem de construir experiências que demonstram, de forma concreta, nossos princípios.
Rud Rafael – Do ponto de vista internacional, como vocês vêm atuando e que diálogos e experiências podem servir de ferramenta e de horizonte para nós? Aproveite também para destacar qualquer outra questão que considere importante.
Francisco Kelvim – Construímos, a partir de 2016, o MAR, que é o Movimento de Afetados por Represas, que antes era uma articulação só da América do Sul, depois da América Latina, e hoje também temos trocado experiências com outras partes do mundo, principalmente a Europa e a África. Hoje há 19 países do continente americano que participam e na África outros quatro países, além de alguns na Europa. Se tornou uma grande articulação entre os atingidos por grandes obras de mineração e hidrelétricas, principalmente organizações que lutam pela defesa da água e contra iniciativas de sua privatização.
O MAR se tornou um instrumento através do qual temos trocado experiências de luta, experiências concretas que apontam para o projeto energético popular que a gente tem construído em conjunto com essas organizações, em linha com nossos princípios. Temos tem impulsionado hoje muitos intercâmbios também entre essas organizações, porque o inimigo é o mesmo, o inimigo são as atividades de exploração do meio ambiente nos territórios e, portanto, a luta se dá em campos diferentes, mas de formas similares. Podemos aprender e trocar em conjunto.
Por Rud Rafael (MTST)
Assistente Social, militante
do MTST e integrante da
Frente Povo Sem Medo