Por Tatiana Oliveira*
Em muitos países, seguradoras aumentam preços e deixam de atuar em determinados espaços diante do crescente risco climático – uma política que resulta em mais desigualdade e projeta um mundo “insegurável”.
A frequência crescente de eventos climáticos extremos tem levado a uma rediscussão sobre o papel dos seguros e suas métricas. A reconfiguração destes dispositivos, cujo objetivo é precificar e contratualizar a proteção contra riscos, possui efeitos que não podem ser negligenciados, sobretudo em contextos de alta financeirização de políticas sociais e da aceleração dos efeitos da crise climática. Em muitos países, no lugar de ajudar a mitigar os danos dessa crise, a política das seguradoras tem acentuado desigualdades.
Isso ocorre porque a reconfiguração do setor privado na área de seguros se dá de dois modos fundamentais: o aumento no custo do prêmio vinculado à proteção patrimonial, e a desclassificação e não aceitação das propostas de seguro em territórios determinados – muitas vezes os mais afetados ou suscetíveis a eventos climáticos extremos. Para piorar, as políticas públicas de reconstrução, adaptação e predição de desastres ainda são incipientes e não possuem recursos suficientes, sendo incapazes de amortecer os efeitos negativos deste mercado.
A possibilidade de que um mundo convulsionado por recorrentes eventos climáticos extremos tenha a proteção patrimonial suspensa, tornando-se “insegurável”, é a mensagem de um conjunto de reportagens publicadas pelo jornal Financial Times entre fevereiro e agosto de 2014. Nas entrevistas com empresas internacionais de seguros, há o reconhecimento de que o setor foi lento em abordar as implicações das mudanças climáticas.
Além do fracasso das análises estatísticas para avaliar os riscos patrimoniais associados ao clima, as empresas justificam o aumento no custo da aquisição deste tipo de serviço pela perda de faturamento – que nos últimos quatro anos chegou a mais de 100 bilhões de dólares. Outro fator destacado é a retração das resseguradoras, ou seja: quando empresas que compartilham os riscos financeiros das seguradoras desistem de fazê-lo em relação ao mercado de catástrofes naturais.
As seguradoras chegam a afirmar que essas reações ao risco climático – seja pela via no aumento de preços seja por sua saída de determinados espaços – cumprem um “papel social” de alertar sobre perigos patrimoniais em zonas específicas. O fato é que, como resultado, já é possível observar a reconfiguração da ocupação socioterritorial, tanto no campo quanto na cidade, a partir de uma nova camada de exclusão social e racial provocada pela perda patrimonial em função da mudança do clima.
Nesse sentido, o setor imobiliário, um dos primeiros e mais impactados pela financeirização das políticas sociais no mundo, lidera as preocupações relativas aos seguros patrimoniais no contexto da piora dos efeitos das mudanças climáticas. Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais (BIS, na sigla em inglês), a insegurança habitacional pode crescer devido às novas políticas das seguradoras, potencializando a crise no setor, elevando os custos de vida e ampliando as desigualdades.
É o que já se observa nos EUA, onde muitas famílias enfrentam cancelamentos de seguros habitacionais, enquanto outras são excluídas peremptoriamente das coberturas. O Banco da Inglaterra, por sua vez, estima que 7% das moradias no Reino Unido poderão se tornar “inseguráveis” no curto e médio prazo. Já na Austrália, com o agravamento dos efeitos da crise climática, o Climate Council considera que o país pode se tornar inelegível para acessar seguros imobiliários.
No Brasil – onde a crise dos seguros patrimoniais privados ainda não atingiu os patamares dos exemplos acima, e o mercado para esse tipo de produto ainda é reduzido – as políticas públicas seguem sendo fator crucial para limitar e compensar os efeitos negativos das catástrofes climáticas. Nesse sentido, a entrada em vigor do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima pode se tornar importante ferramenta para o enfrentamento desse cenário e do racismo ambiental a ele inerente.
Para isso, a ampliação dos recursos destinados para reduzir os riscos de desastres, bem como para aumentar a capacidade de resposta do governo às necessidades de reconstrução, que existirão, é fundamental. No entanto, o financiamento internacional à adaptação climática e o investimento privado na área ainda segue muito aquém das necessidades do conjunto de países em desenvolvimento e, no caso brasileiro, o orçamento público para esse tipo de política ainda é muito baixo.
Para se ter ideia, em 2024, o programa (2318) de gestão de riscos e desastres, alocado no Ministério da Integração e Desenvolvimento Social, teve cerca de R$300 milhões de orçamento autorizados, sendo apenas R$3 milhões efetivamente pagos – ou seja, 1% dos recursos disponíveis. Por sua vez, um levantamento organizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostra que cerca de R$70 milhões de reais foram canalizados para ações do mesmo programa por meio de emendas parlamentares, o que representa apenas 2% do total dos recursos de emendas direcionadas àquele Ministério.
No fim do dia, as escolhas infernais do capitalismo se impõem: subsidiar, com recursos públicos, o risco assumido pelas empresas, ou investir em planejamento climático e territorial para evitar desastres e vítimas. Nesse contexto, identificar quais populações estão mais vulneráveis e como (e ao lado de quem) o poder público deve atuar é crucial. Somente assim poderemos encontrar soluções efetivas e evitar o aprofundamento de desigualdades sociais e raciais no contexto da crise climática.
Assim, do impacto desigual das catástrofes socioambientais no Brasil e em outros países em desenvolvimento, à insegurança decorrente da financeirização do risco em países desenvolvidos, a luta contra o racismo ambiental cresce. Atualizam-se, afinal, as dinâmicas de despossessão em países ricos, onde se intensificam os impactos negativos sobre comunidades historicamente vulnerabilizadas – marcadamente as pessoas periféricas, migrantes e aquelas pertencentes a grupos étnico-raciais minoritários nesses países.
Nesse contexto, é crucial refletir sobre os novos contornos do colonialismo climático e do próprio racismo ambiental. A restrição do acesso privado e familiar (intergeracional) à proteção contra riscos inesperados já é uma realidade e as disputas relativas à propriedade (moradia, terra e território) podem gerar um crescimento e a intensificação da pobreza e das desigualdades. Há, portanto, uma convergência maior de lutas, que deve fomentar um campo de atuação política aliançada.
Mais do que nunca devemos resgatar os sentidos do internacionalismo desde o chão, sobretudo quando esse chão está cada vez mais seco ou enlameado.
*Pesquisadora pós-doutora pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará e membro do coletivo de pesquisa ReExisTerra.
**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.