Henrique Vieira
Não generalizar o(a)s evangélico(a)s é uma tarefa essencial para a esquerda contemporânea. Entender que nem todos eles e elas são conservadores é uma demanda urgente. Sabemos que há um setor religioso extremista, fundamentalista e com forte poder político, econômico e midiático, que efetivamente representa um risco à democracia, aos direitos humanos e à diversidade. Este segmento se constitui, cada vez mais, como projeto político partidário, ocupando espaço nos poderes legislativos e executivos. Esse campo, de fato, precisa ser denunciado e pedagogicamente enfrentado. Mas, para isso, é preciso perceber que não se trata da totalidade e não representa a pluralidade da experiência evangélica no Brasil e no mundo.
O primeiro passo para essa compreensão é ter uma noção da história do campo evangélico, que nasce das Reformas Protestantes dos séculos XV e XVI a partir de um racha dentro do catolicismo romano. É preciso falar em reformas, no plural mesmo, porque já ali existiam diferentes manifestações teológicas, políticas e territoriais. Aconteceram rachas dentro da nobreza e expressões mais radicais entre os camponeses. Em todo caso, existia uma crítica à hierarquização, ao monopólio sobre a leitura bíblica e um fomento à liberdade de consciência e ao acesso do povo aos textos sagrados. O termo “evangélico” tinha relação com aquilo que deriva do Evangelho, da qualidade do Evangelho em protesto contra dogmas que exploravam os fiéis, em sua maioria pobre. É dessa raiz que nascem o protestantismo histórico ou clássico e, posteriormente, inúmeras outras vertentes.
Este protestantismo chega mais forte e de forma mais organizada ao Brasil no século XIX. A primeira onda protestante é conhecida como Protestantismo de Imigração, representada especialmente por anglicanos e luteranos. Esta vertente não apresentava um ideal de evangelização, ou seja, não vinha para o Brasil tendo a conversão como objetivo, mas, basicamente, buscava terra, trabalho e renda. Posteriormente, no contexto do fim do século XIX e do início do século XX, surgiu a onda conhecida como Protestantismo de Missão, isto é, com objetivo de evangelização em terras brasileiras. São expressões dessa vertente as igrejas Batista, Presbiteriana, Congregacional e Metodista.
Em 1910 aparece a primeira onda pentecostal, especificamente em Belém do Pará, com uma liturgia mais renovada e com o fenômeno litúrgico das línguas estranhas, não inteligíveis à compreensão humana. O maior exemplo desta vertente é a Igreja Assembleia de Deus (atualmente a maior denominação evangélica do Brasil). Posteriormente, na década de 80, ganha força o movimento neopentecostal, que tem como características específicas a teologia da prosperidade e a ênfase em curas e milagres. O maior exemplo desta vertente é a Igreja Universal do Reino de Deus.
Este breve e resumido histórico é apenas para demonstrar como, desde o início e por natureza, o campo evangélico é difuso, diverso, repleto de variações e não cabe em uma formulação única. Esse segmento religioso é o que mais cresce no Brasil, especialmente entre as camadas populares. A Frente Parlamentar Evangélica é a promoção da justiça social, bem como ao combate à intolerância religiosa. Um exemplo histórico foi o Congresso “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”, realizado em 1962, em Recife. Naquele contexto havia uma posição daquele campo evangélico em apoio às reformas de base do governo Jango. Inúmeras lideranças evangélicas foram militantes contra a ditadura civil-militar brasileira.
Na atualidade existem movimentos como a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, a Frente Teológica Latino Americana (FTL), o Coletivo Esperançar, o Coletivo Entre Nós, a Rede Fale, entre outras expressões organizadas, além de igrejas locais comprometidas consciente e programaticamente com pautas populares. Existem diferenças entre estas organizações, mas há um fio condutor comum que aponta para o compromisso político com a democracia, a justiça social e o combate à desigualdade e à concentração de riquezas. Dentro do campo evangélico, desde a década 1970, existe também a chamada Missão Integral, perspectiva teológica que busca uma abordagem bíblica que compreende e valoriza a integralidade da experiência humana. Seu lema é “O Evangelho todo, para o ser humano todo e para todo ser humano”. Isto significa que o Evangelho não pode ser apático diante das questões sociais, pois elas são partes importantes e constitutivas da vida. A Missão Integral não tem um conteúdo revolucionário, mas certamente apresenta uma significativa possibilidade de diálogo com todos e todas que desejam a construção de uma sociedade socialmente mais justa e equilibrada.
Contudo, para além desse campo mais organizado, considero importante olhar com cautela para a espiritualidade evangélica que se desenvolve no dia-a-dia em nosso país. Por que cresce tanto? Existiriam nessa experiência dispositivos progressistas e rascunhos de resistência? Acredito que sim. Um espírito comunitário sobrevive em muitas igrejas hoje. Em uma sociedade individualista, pautada pela competição, pela concorrência, pelo medo e pela perda de laços de afetividade, muitas igrejas ainda se afirmam como espaços de convivência, comunhão, escuta, diálogo, percepção e acolhimento de dilemas pessoais e coletivos. Há horizontalidade e empoderamento de individualidades esquecidas. Muitas pessoas marginalizadas na sociedade por sua cor, renda e endereço encontram em diversas comunidades de fé um espaço de autoafirmação, de fala, de valorização das suas vidas. Vale lembrar que o segmento evangélico cresce especialmente nas camadas populares e empobrecidas da sociedade brasileira.
Estas observações não têm por objetivo, em hipótese alguma, negligenciar que existe um extremismo evangélico de veia patriarcal, racista e lgbtfóbica, com graves e perversos efeitos em nossa sociedade. É preciso apontar que o conservadorismo não é monopólio ou exclusividade dos evangélicos, mas representa um pensamento do senso comum da sociedade brasileira. O desafio é grande e percebê-lo não deve nos desanimar, mas, sim, ampliar nossa capacidade de enfrentar a intolerâncias e prosseguir na luta. É preciso furar o bloqueio, vencer o estigma, compreender a complexidade desse campo, estabelecer pontes pedagógicas e incentivar a formação de quadros em nosso partido capazes de produzir está síntese e atuar no trabalho de base e pela base. A consolidação de uma polarização esquerda versus evangélicos não é coerente, nem frutífera ou estratégica. Tal polarização cria um obstáculo para o avanço de pautas populares, além de não ser condizente com a realidade.
Ainda é preciso, no esforço deste texto e na condição de teólogo e pastor, resgatar a memória histórica e subversiva de Jesus Cristo de Nazaré. Como afirma dom Pedro Casaldáliga, em Jesus, Deus se fez carne e se fez classe. Para os cristãos e as cristãs, Jesus é o próprio Deus assumindo a história, a corporeidade, a humanidade. Qualquer expressão teológica que se afaste dessa dimensão concreta e política da vida vai contra o espírito mais original do Evangelho. Como afirma Leonardo Boff, “Jesus foi tão humano que só podia ser Deus”. Isto significa que a espiritualidade cristã tem os pés na terra, na dimensão popular.
Além disso, cabe lembrar que Jesus foi pobre, andou com os miseráveis, amaldiçoados e excluídos da sua época; condenou o acúmulo de riquezas e venceu preconceitos históricos. Foi preso, torturado e assassinado por subversão pelo Império Romano, a pedido de uma elite religiosa que o considerava herege e desviado. Em outras palavras, Jesus foi vítima da raiva dos fundamentalistas, do próprio Estado e dos religiosos que se sentiam donos, defensores e procuradores de Deus na terra. A vida de Jesus aponta para um compromisso radical com os pobres e com os corpos vítimas de violência, tortura e exploração. A origem do Evangelho é popular, periférica, antissísmica. É desconfiada e desapegada das estruturas de poder, pautada em vínculos comunitários. Resgatar essa dimensão é desmontar o castelo fundamentalista e isso se faz necessário, especialmente em nosso tempo, para defender a democracia, celebrar a diversidade, enfrentar discursos de ódio e afirmar uma prática de amor e o amor como prática.
A despeito dos coronéis da fé, mercadores da religião que enriquecem às custas do sofrimento do povo, e independentemente dos fiscalizadores dos corpos, mais apegados a uma doutrina do que à dignidade humana, existem e resistem evangélico(a)s lutando pela democracia e pelo Estado laico.
Irmãos e irmãs combatendo o racismo e afirmando que a Bíblia é um livro negro, apesar da interpretação tantas vezes branca e racista. Irmãs lutando contra o patriarcado e o machismo, tão presentes no cristianismo institucional. Irmãos e irmãs lutando contra o preconceito que impõe sofrimento e mata LGBTs todos os dias. Irmãos e irmãs que, a partir da sua fé, lutam por terra, moradia, direitos, cidadania e pelo pão de cada dia. Na base de muitos movimentos sociais, como MST e MTST, existem evangélicos e evangélicas nas lutas.
Enfim, é essencial não generalizar o campo evangélico e pedagogicamente partir para o encontro, para o diálogo e para a luta popular.