Gilberto Maringoni
Como tem sido a experiência na Câmara Federal com um governo de extrema direita? E quais diferenças você vê para a atuação local? É um desafio em todas as dimensões. O ambiente da Câmara tem outra escala, com uma complexidade muito maior em relação à Câmara Municipal de BH. Estou na Comissão de Cultura, ocupando a segunda vice-presidência. É a primeira vez em que o PSOL está na mesa de uma comissão, o que é muito importante, ainda mais com a presidência de Benedita da Silva (PT-RJ), uma mestra maravilhosa que sempre me acolheu e orientou. Mas o contexto geral é de desmonte muito acelerado e violento, com essa ala extremista e autoritária que ganha força no Congresso. Na área da Cultura houve tentativas de censura e asfixia no financiamento das políticas públicas. Foi uma espécie de prisma para compreender toda a conjuntura brasileira. Também atuei na denúncia e apuração do crime da Vale, em Brumadinho, direcionando o mandato na busca da responsabilização da empresa e na defesa das populações atingidas. Participei de uma comissão externa que propôs uma revisão da legislação sobre mineração, e depois da CPI que investigou o crime.
A Vale financiou muitos políticos mineiros e, portanto, é também um poder político. Como foi fazer esse enfrentamento à mineração predatória? Havia uma influência da Vale sobre parte dos parlamentares. Isso ficou ainda mais escancarado quando conseguimos levar alguns dos Projetos de Lei que construímos na comissão para apreciação do plenário. A Vale entrou pesado para inviabilizar mudanças significativas, mesmo após os crimes em Brumadinho e em Mariana, com a Samarco. É impressionante como essas empresas conseguem determinar boa parte do jogo parlamentar. Agora, está em curso o processo de acordo para reparação de danos sociais e ambientais, e vemos como a Vale continua controlando a cena do crime e dando as cartas, prejudicando as populações atingidas. Tudo com certa conivência do Judiciário e dos outros poderes. Compreendi não ser possível banir a mineração do Brasil, embora essa fosse a perspectiva desejável. O desafio é como reduzir os danos da atividade, que necessariamente causa destruição, e como torná-la mais responsável e segura.
A Vale também foi financiadora de alguns setores da cultura. Existe alguma blindagem feita pela empresa nesse campo? O financiamento de ações culturais nos territórios deve ser exigido das empresas, não de qualquer maneira. Sabemos os riscos que isso traz de cooptação, manipulação, relações clientelistas e de como isso se torna um ativo para as corporações. Mas não exigir que tenham esse tipo de reparação mínima é também ilusório. Não acho que devamos prescindir desse vínculo entre formas de reparação, destinando parte da fortuna que levantam na exploração predatória para que, minimamente, possamos reconstruir esses territórios. Dessa forma, devemos fazer uma transição para sair da minero dependência usando parte dos recursos da atividade minerária para a diversificação da matriz econômica. Várias cidades teriam vocação para o turismo, economia popular e solidária, produção de alimentos saudáveis, e mesmo para desenvolvimento industrial. Mas isso não é cobrado dessas empresas. Tentamos emplacar mudanças na tributação, mas a Vale entrou de sola e não permitiu. Hoje, a tributação da mineração no Brasil é ridícula.
A cultura talvez tenha sido uma das áreas mais tumultuadas do governo Bolsonaro, com uma forte ofensiva reacionária. Como isso se dá na comissão? A extinção do Ministério da Cultura foi o primeiro gesto do governo de que aprofundaria algo já em curso. Desde o golpe de 2016, isso vem numa toada cada vez mais grave. Na sequência, os secretários de Cultura vêm sempre com uma linha desastrosa, negacionista, delirante e muito coerente com o projeto bolsonarista. A cultura acontece sob um clima fundamentalista de perseguição à diversidade, com cerceamento do pensamento crítico e com tentativa de censura, não só de conteúdo, mas principalmente com a retirada de recursos da área, de maneira brusca e num volume inacreditável. Com a pandemia, tivemos um desastre total. Aprovamos a Lei Aldir Blanc para socorrer artistas e espaços culturais. Fizemos seminários temáticos para resgatar um pouco da história das políticas culturais, a questão dos povos e comunidades tradicionais e combatemos a tentativa de submeter a cultura ao pensamento mercadológico. A comissão passou a ser, como disse a Benedita, o partido da Cultura. Vários embates foram travados e tentamos ter uma concertação progressista para defender o básico.
Você leva à Câmara uma contribuição periférica, negra e feminina num Congresso majoritariamente branco, machista, misógino e LGBTfóbico. Como enfrenta esse ambiente? Tive um pré-teste na Câmara de BH, um microcosmo da Câmara dos Deputados. Lá, já tínhamos visto a facção fundamentalista muito invasiva, além de agressividade física no plenário e muito da violência política presente no Legislativo. Uma parlamentar com as minhas características e compromissos, é sempre difícil estar em um espaço que não foi programado para nós. Mas nossa bancada é aguerrida e maravilhosa, apesar de pequena. Consolidamos uma atuação cuja força vem de fora para dentro, porque ali a correlação de forças dificulta avançar com nossas agendas. Há um reconhecimento forte de lideranças como eu, Talíria Petrone, Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna, jovens feministas que passam a ativar outra possibilidade de estar nos espaços de poder. Houve um crescimento de candidaturas de pessoas negras, feministas, periféricas e LGBTI nas eleições de 2020. Acho que é uma tendência, e o PSOL é o partido que mais tem correspondido a esse apelo e a essas novas formas de organização.
Com o fim do auxílio emergencial e com a pandemia ainda em alta, se nada for feito, o que você vislumbra para o futuro próximo? O agravamento muito rápido das condições de vida faz com que a capacidade de auto-organização popular seja muito comprometida. Por outro lado, em função da necessidade de sobrevivência nas comunidades, surgiram iniciativas incríveis de ajuda mútua e busca de alternativas econômicas, além de circuitos de formação política que escapam muito da forma de organização de partidos e de movimentos sociais. Estou muito mais preocupada com a capacidade de a população construir formas politizadas de gestão da vida, buscando o cuidado entre nós, do que com as entranhas do Legislativo ou do partido. É o que me faz ter esperança e disposição para poder continuar existindo na Câmara, apesar de um jogo tão desfavorável para nós. É necessário apostar na institucionalidade para aquele que tenha uma vitalidade fora dela consiga impactar e transformá-la. Nas periferias, você disputa espaço com as igrejas fundamentalistas, em um meio violento e preconceituoso. Como se estabelece essa disputa? É muito difícil, mas os resultados existem.
Nas periferias, você disputa espaço com as igrejas fundamentalistas, em um meio violento e preconceituoso. Como se estabelece essa disputa? É muito difícil, mas os resultados existem. Nas igrejas evangélicas começa a existir um movimento disruptivo de crítica interna ainda diminuto, mas com uma força qualitativa muito grande. Não à toa, tem surgido candidaturas evangélicas progressistas, que buscam em suas comunidades mostrar ser possível confrontar o fundamentalismo e toda a manipulação disfarçada de fé, para ter uma resposta em que fé e política se encontram. Na questão da segurança pública, se conseguirmos dialogar a partir de um trabalho persistente com lideranças críticas, a segurança vem como um dos eixos de organização comunitária. Vou dar um exemplo. Em Belo Horizonte, existia um baile funk muito famoso no Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do país, reunindo milhares de jovens. Ali, começou a haver muito conflito com a polícia, que sempre chegava com muita violência. Eu, ainda estava vereadora e nos reunimos com a Polícia Militar, a Prefeitura e os organizadores do baile e começamos a mediar uma situação para viabilizar a festa, com participação de parte a parte, defendendo o direito à cultura e à cidade. Surpreendentemente, tivemos avanços e o baile começou a acontecer em outros termos. No entanto, quando saímos dessa mesa de negociação, a situação não se sustentou e retrocedeu muito rapidamente. Isso mostra que quando há uma direção política é possível fazer transformações no micro que podem ganhar escala. Acho que o Sistema Nacional de Segurança Pública, tendo outra ação, poderia ter uma resposta de proteção à vida para sair desse modelo repressivo ineficaz e passar a se direcionar para uma política cidadã, com melhores resultados. Restabelecer a democracia em um lugar de decência mínima é a grande tarefa que temos para 2022. Não nos conformamos com o modelo formal de democracia que, sequer, funciona a contento. Resguardar as regras do jogo é algo essencial.