Edmilson Rodrigues
Nestes tempos em que a desesperança quer plantar sua semente no coração do povo, é imprescindível manter a cabeça erguida e enxergar o horizonte das reais mudanças reclamadas por nosso povo.
A necessidade, portanto, de se pensar um projeto de futuro é imprescindível. É urgente pensarmos transformações estruturais no modo de produção capitalista, mas apenas a dimensão econômica não explica tudo. Há relações sociais que não são econômicas. Mais: a ação humana não se dá fora do espaço. O próprio espaço geográfico é este híbrido de sistemas de objetos, de fenômenos técnicos e de ações sociais.
Os governos podem cumprir um papel de fomento às transformações estruturais. Isto significa ter um programa de transformação que, do ponto de vista estratégico, aponte para um futuro de dignidade, justiça social e democracia. Isto significa dizer que um governo deve ter um programa de caráter estratégico revolucionário. Deve ter compromisso com as transformações estruturais, com um programa que expresse uma prática contra-hegemônica. Deve promover um combate diuturno e de longo prazo à hegemonia atual que garante a exploração da riqueza produzida pelo trabalhador, a única fonte de produção de riqueza, e ao mesmo tempo garante a manutenção das opressões de todas as formas.
Tivemos uma oportunidade importante de governo com Lula e Dilma. Mas faltou no lulismo um projeto contra-hegemônico. O governo, por dentro da ordem, trabalharia, potencializaria as ações contra a ordem.
Nosso governo seria democrático e popular, porque baseado num programa democrático popular, um conceito construído coletivamente pelas esquerdas brasileiras que participaram do PT.
Este governo, que nos apontasse para um futuro humanizante, deveria ser antimonopolista. Isto é, as grandes corporações, incluindo as financeiras, não deveriam ser prioridades. Se queremos afirmar a possibilidade e o sonho de uma sociedade diferente, um projeto econômico há de apostar naqueles que vivem do trabalho e efetivamente geram a riqueza: os trabalhadores e as micro e pequenas empresas devem ser objeto prioritário da ação do governo, e não o investimento de recursos públicos para viabilizar a ciranda perversa do rentismo, hoje predominante.
Ao mesmo tempo, este programa deve ser antilatifundiário. Basta ver que os heróis cantados em verso e prosa pelos neoliberais são os latifundiários, o que é uma falácia. Apesar de deterem 54% das áreas agrícolas brasileiros, produzem menos da metade dos alimentos brasileiros. A produção familiar, que detém apenas 26% das terras agrícolas, produz mais da metade. A grande produção, além de não gerar emprego, contribuindo para o desemprego no campo, gera êxodo rural, violenta direitos e patrocina crimes contra trabalhadores sem-terra.
A máquina de lucros que se relaciona com o agronegócio produz commodities, que em geral pouco ajudam a produzir a justiça social. Ao contrário, produzem mais injustiças.
O agronegócio não gera empregos, ao usar alta automação e máquinas poderosas, e não alimenta os brasileiros, pelo fato de a soja não ser alimento prioritário para nenhum povo do mundo. Muito menos a soja transgênica, que serve apenas para alimentar o gado criado na Europa ou nos EUA e Canadá, que em geral tem produção subsidiada: dois dólares ao dia para cada cabeça de gado.
Ao mesmo tempo, nosso programa de governo deve ser radicalmente democrático e, portanto, baseado em propostas de transformações estruturais, voltadas à produção de um futuro que está além da sociedade atual. Deve ser um governo que acredita na força do povo e, nesse sentido, no protagonismo participativo. Não se trata de apenas reunir, chamar as populações para eventos, formar conselhos e passar a falsa ideia de que se está decidindo. É o exercício do poder popular no debate do Orçamento, na decisão da prioridade dos gastos dos recursos públicos e no controle de cada licitação e de cada obra. Se isso ocorre, não há necessidade de pactos do diabo com a grande burguesia, em nome de uma governabilidade que só leva a uma situação de ingovernabilidade.
Não há necessidade de mensalões, mensalinhos ou propinodutos se o povo se apodera do processo de governo e desenvolve mecanismos de controle social sobre os gastos dos recursos públicos.
Além destes quatro elementos, há uma dimensão importante, que tem duas faces: o internacionalismo solidário e a soberania nacional. Um país para ser soberano deve afirmar laços que vão para além das relações intraterritoriais. Infelizmente, a experiência de governo Lula, ao abandonar o programa democrático-popular, se ateve apenas a administrar a crise do sistema. No momento em que o mundo ofereceu taxas de crescimento maiores e houve certa virtuosidade no processo de acumulação global foi possível investir uma pequena parte dos recursos advindos deste período em programas sociais.
Acontece que o grosso foi investido naquilo que reforça os projetos de interesses imperiais, dos monopólios, inclusive, dos agros negocistas e, no fundo, não se avançou na participação popular. Porque se isso tivesse sido feito, essas outras dimensões não poderiam avançar. Então houve, no máximo, certo ar participativo, mas não uma participação protagônica, porque o poder popular deixou de ser um objetivo estratégico.
O que existe hoje, para lembrar Noam Chomsky, é uma multidão submetida a uma minoria próspera. Talvez isso explique porque a multidão está cada vez mais inquieta.
A crise está instalada globalmente e não é só econômica, mas política, cultural e social. Essa hegemonia é forte, mas permanentemente questionada, porque a racionalidade capitalista não consegue se desvencilhar de seu contrário. A dinâmica capitalista é grávida de contradições, de contra racionalidades à razão do capital que é o lucro, da apropriação privada da mais-valia. Isso, em grande medida, explica as contradições e a derrota do governo baseada no lulismo.
Michel Temer é a expressão de um golpe. Quando a crise se instalou conjunturalmente, diminuindo as margens de lucro dos grandes oligopólios, estes perceberam que não precisavam mais de um governo como o do PT. Então, partiram para o golpe. No entanto, quando Temer diz que tem legitimidade, sem ter, e usa o argumento de que era vice-presidente eleito, ele não está mentindo. Ele participou de um projeto hegemônico que tentava dar ar social a um projeto de manutenção da ordem. Isso é contraditório, apesar de ilegítimo.
É um governo golpista porque não havia razão para o impeachment. Mas Temer era vice-presidente de Dilma, que talvez estivesse fazendo as mesmas reformas se ainda estivesse no governo. Seu governo deu indicações, através de Levy, de que as poucas conquistas sociais poderiam ser revertidas para dar estabilidade ao lucro, para garantir os interesses dos oligopólios ou monopólios.
A ação do lulismo não era contra-hegemônica. Mas era legítima. Inclusive conseguiu ter programas sociais de grande impacto numa sociedade tão estruturalmente fraturada como a brasileira. Quando se comparam os programas de financiamento da produção agrícola, havia no governo Lula R$ 20 bilhões para a produção familiar e R$ 200 bilhões para o agronegócio. Essa política é mantida pelo Temer, mas antes existia um investimento na pequena produção que nunca existira. Por isso, os governos de Lula e Dilma acabaram gerando apelo popular grande. O governo Temer, no entanto, radicaliza todas as políticas destrutivas do futuro brasileiro.
O programa denominado “Ponte para o futuro” é uma verdadeira passarela ao passado. Representa a destruição da possibilidade de um futuro soberano do país. Não diria definitiva, porque temos todas as razões para afirmar a possibilidade desse futuro justo e feliz. Tanto assim que o futuro está em crise, porque há resistência, principalmente dos trabalhadores. Mesmo de alguns que, inclusive, por falta de uma consciência mais clara, apoiaram o golpe e acharam que Temer seria melhor para o país.
Quando se fala em democracia, temos um processo ainda mais grave de fragilização. Vemos crescer o poder aos corruptos eleitos ou não eleitos, baseado na chantagem, na propina e no superfaturamento de obras. Toda a infraestrutura dos últimos anos foi desenvolvida baseada em superfaturamentos para enriquecer empreiteiras, as mesmas que trabalham desde a ditadura e até hoje são financiadoras de campanhas. Isto, porém, não foi invenção do lulismo.
É muito séria a promiscuidade do governo com grandes empresários e a traição na perspectiva de mudança prometida no processo de golpe. Quem acreditou em Temer, acreditou que ele fosse dar continuidade às coisas boas prometidas por Dilma: manter programas sociais e fortalecer o Estado. O povo não tinha consciência de que, depois de 70 anos, iriam destruir a CLT. Que colocariam em xeque a possibilidade de aposentadoria. Ninguém acreditou que as terceirizações seriam radicalizadas e que iriam impor a escravização do povo em pleno século XXI, assim como a destruição das florestas em favor das mineradoras. Nada disso era espera do pelos que acreditaram no golpe.
Por isso, 97% do povo concorda com o PSOL: todos querem Fora Temer, não apenas nós. Queremos eleições diretas. Este é um sonho possível, mas que exige ampla mobilização popular. As mobilizações nacionais já demonstraram o poder do povo. O ato em Brasília em maio foi outra demonstração da força do povo. É a capacidade de luta, o povo na rua, a organização da greve geral, a desobediência civil, a ocupação de praças, ruas e mesmo de órgãos públicos: daí vem a resistência.
Não esperemos das classes e dos países ricos a solução para nossos problemas. É de um país periférico como o Brasil, é das regiões pobres, das comunidades quilombolas e indígenas, dos que vivem do trabalho que virão as formas mais poderosas de resistência dos debaixo. Esta expressão da resistência do poder popular culminará na necessária cassação de Temer e de eleições diretas e soberanas para que um novo governo se instale em respeito ao direito do povo a ter sua vontade soberana exercida.