Luciete Silva
Ubiratan Ribeiro
Extermínio e descaso podem ser vistos como coisas diferentes. “Extermínio”, segundo o dicionário Priberom, significa assolação, destruição. Já “descaso”, significa demonstração de desinteresse, desrespeito. No caso de alguns segmentos, como os povos indígenas e negros, articular estes dois conceitos nos ajuda a pensar em como, por muito tempo, a sociedade brasileira viu esses povos como seres inferiores. E se hoje podemos afirmar que são e estão entre os mais oprimidos, parece ser pelos resquícios destes tempos passados, ainda tão presentes.
As diversas nações indígenas foram afastadas e expulsas de suas terras pela ganância e o desrespeito, seja dos governos, ou também da sociedade, que simplesmente ainda os enxerga como sendo um povo nas terras brasileiras e não um povo a quem pertencem as terras brasileiras. Assim, continuam sendo a cada dia negligenciados, desrespeitados e exterminados de forma constante e violenta. Mesmo nos dias atuais, a assolação contra os povos indígenas continua, com requintes de perversidade. A PEC 215, que segue a pleno vapor, visa conceder a responsabilidade pela demarcação de territórios indígenas para os parlamentares congressistas, estes que em sua maioria representam interesses do grande capital, do latifúndio e agronegócio; um Congresso onde as comunidades indígenas quase não possuem representação. Diante de nossa latente crise de representatividade, essa PEC é apenas uma mostra de como ainda hoje vivem ameaçados esses povos tradicionais.
Por outro lado, sem muitos esforços, podemos constatar que outros povos, por meios e razões diferentes e ao mesmo tempo parecidas, sofreram uma brutal penalidade, como a chamada escravidão negra. Foram trazidos para estas terras para enriquecer senhores e outras nações, e até os dias atuais, podemos observar que certa parcela desta população, ou sua maioria, ainda sobrevivem à margem de bens, serviços e direitos, às margens da democracia e da cidadania.
Entendemos o racismo na sociedade como algo estrutural. Fruto de um processo histórico de surgimento e expansão do capitalismo, em sua fase de mercantilismo, quando nossos ancestrais foram sequestrados de suas terras, nos países africanos, e trazidos nos porões imundos de navios negreiros, atravessando o Atlântico negro, num processo que combinou a escravização negra com o genocídio das populações indígenas para estabelecer a exploração do pau-brasil, como fase inicial do processo de espoliação de nossas terras e nossas riquezas, passando pelo ouro e a prata, a cana-de-açúcar, a borracha, o café.
O povo negro nunca foi incluído no projeto de civilização que os “donos” do país formularam, trazendo imigrantes europeus para ocupar os cargos assalariados quando o capitalismo se organizou de forma a precisar de mão de obra remunerada para consumir os produtos ingleses, em expansão nessa etapa mercadológica. Havia até mesmo estudos “científicos” que inspiraram muitas defesas apaixonadas em relação a uma suposta inclinação “natural” dos negros ao crime, devido ao nosso formato do crânio. Sempre fomos suspeitos, e desde então havia uma intenção de eliminar nossa existência “para o bem da humanidade”. A “lei da vadiagem”, durante a monarquia, vai nesse sentido de negar aos negros e negras o direito ao espaço público. O tempo passou, o processo histórico nos relegou às periferias, e hoje ainda somos estes “suspeitos” nas ruas escuras, vítimas da criminalização, da perseguição, da violência: “bandido (negro) bom, é bandido morto”. Ainda lutamos pelo direito à cidade.
um olhar sobre o genocídio da população negra brasileira
A população negra lidera os índices entre os mortos por causas externas ou causas violentas, tais como confronto com a polícia militar. São tantos os casos que alguns estudos e pesquisas comparam os dados com os períodos de guerra. Só no ano de 2015, foram mais de 50 mil mortos. Destes, segundo o Mapa da Violência, 77% são negros, jovens e moradores das periferias, um índice muito alarmante. Nessa guerra não oficial, os jovens negros são exterminados, eliminados e alguns muitos são aprisionados, isolados e apartados do convívio social e dos direitos que uma certa Carta Magna “garante”, ou ao menos deveria garantir, a todo jovem, a todo cidadão.
A vulnerabilidade social da juventude negra reflete a baixa representatividade política que o setor social tem no poder público. O Estado brasileiro não sabe como lidar com a juventude, oferecendo como solução para seus problemas a polícia. Os chamados “autos de resistência” são um mecanismo que, na prática, dá poderes à polícia para julgar e punir o “infrator” in loco, com a pena capital. Um mecanismo jurídico que facilita atitudes arbitrarias, a impunidade desses assassinos, e que tem um grande papel na reprodução do genocídio em curso no país. A violência extermina nossa juventude, interrompe sonhos, gera sofrimento e é fruto de um processo de criminalização da pobreza e militarização das periferias. É sem dúvida questionável o papel que desempenha a polícia nesse contexto.
O descaso também extermina. Afinal, territórios hostis tendem a fragilizar os já vulneráveis, que aí têm o chão de sua sobrevivência. A fragilidade da vida humana nestes territórios, a negligência e a exploração convêm a determinados grupos. A violência estrutura uma engrenagem macabra da morte, gerando lucros para poucos e miséria para muitos. É o “necro-poder”, estabelecido sobretudo na ponta da pirâmide em um contexto no qual a indústria das armas e o narcotráfico têm papel fundamental; papel este que penaliza apenas quem opera no varejo, a mão de obra barata e descartável, segundo a lógica do sistema. O sensacionalismo acompanha essa indústria da morte gerando ódio, incentivando o fascismo e com forte apelo entre a população iludida, assustada com a violência apresentada pelos programas de TV com viés policial, cheios de pretensões políticas. A pauta da criminalização do povo negro pobre conquista na marra corações e mentes, enquanto a morte violenta atinge jovens, mulheres e homens sem perguntar quem são. De diferentes formas, mas com a mesma indiferença.
E a polícia?
Num país como o nosso, em que a desigualdade social se estrutura na desigualdade racial, em que as senzalas de ontem são as favelas de hoje, em que há perseguição cultural, com fogo nos terreiros e pedradas nas ruas, é evidente a existência de cidadãos de primeira e segunda categoria.
É urgente discutir o papel da polícia. Mais ainda, é urgente discutir o que seria política de segurança pública para o combate à desigualdade. Também se faz fundamental uma profunda discussão com toda a sociedade sobre a chamada “guerra às drogas”, uma política iniciada na primeira metade do século passado com viés racista, xenofóbico e sem nenhuma intenção de resolver o problema. Tanto é que, até hoje, nunca em lugar algum resolveu a questão do tráfico e do uso de drogas. Pelo contrário, aumentou a violência, “justificou” ações arbitrárias da polícia nas periferias, violações de direitos humanos, tortura, condução coercitiva, excessos e abusos, aumentando a violência, o medo e as mortes. É o principal motivo de encarceramento de jovens, principalmente de mulheres: entre 2000 e 2012, o encarceramento feminino aumentou 246% e o masculino, 130%.
As encarceradas são em sua maioria mulheres negras e pobres. Algumas cometeram furtos, outras foram usadas como mulas para transportar drogas ilícitas em prol da manutenção de seu uso, ou ainda como forma de agradar, ou mesmo cumprir demandas arquitetadas por seus namorados, maridos…. Algumas são mães com filhos pequenos, outras se tornam mães na cela. Lá permanecem por tempo indeterminado, apenas por não ter quem as represente, enquanto lá fora os verdadeiros culpados se mantêm livres, aliciando novas vítimas de um sistema que a cada dia colabora para que haja mais e mais encarceradas sem prazo para a liberdade.
Até 2015, o Brasil tinha pouco mais de 600 mil pessoas encarceradas. Em comum, o fato de serem em sua maioria negra, sem escolaridade e da periferia. Coincidência? Não, racismo. O lugar social do negro e da negra tem sido a marginalidade e a exclusão. Por que o negro e a negra não estão nas universidades públicas? Educação é um direito, não uma mercadoria que deve ser comprada ou mesmo disputada. O descaso é também uma decisão política.
O descaso com a prestação dos serviços públicos, como a educação e a saúde, o sucateamento e a precarização destes, é também uma política de extermínio daquelas e daqueles que dependem exclusivamente destes serviços. Muita gente tem morrido nas filas de hospitais, muitas gerações têm sido perdidas pelo descaso com a educação nesse país. No contexto capitalista brasileiro, o neoliberalismo é para poucos e o conservadorismo serve aos brancos. A política de Estado Mínimo, as privatizações, as terceirizações são, desta forma, medidas que aprofundam a desigualdade e a miséria; aprofundam o racismo no nosso país.
Mulheres são negligenciadas ao entrar em um consultório médico por serem negras, outras são impedidas de ter tratamento simplesmente por sua condição humilde e falta de informação. Mães são ignoradas ao buscar atendimento para os filhos nos postos de saúde, nas filas para creche, ou mesmo em lojas, por se presumir que lá entraram para roubar. Simplesmente por ser quem são: mulher negra, pobre, suspeita.
As periferias onde vive a população negra são um território onde se aprende, com a morte, a sobreviver no silêncio. Estes descasos e violências sistematicamente cometidos, por poucos denunciados e por muitos ignorados, ainda fazem do país um celeiro de injustiças e um palco para as desigualdades. O racismo e o preconceito, cometidos de forma tão escancarada, e ao mesmo tempo tão dissimulada e “mal disfarçada”, nos fazem, até hoje, um povo que em nome de uma falsa amabilidade, aquela tal “cordialidade”, comete injustiças e violências, amparado por um Estado conivente.
São tantos os casos, os fatos, e as desagradáveis verdades embutidas na reprodução do racismo, que situações envolvendo mulheres, negras, pobres, miseráveis, não incomodam, não assustam. Não há justiça nem sensibilidade para com elas. O racismo não é algo isolado para essas mulheres e homens que sobrevivem às margens de uma quase inexistência. O racismo para essas pessoas não aparece de vez em quando. É cotidiano, é estrutural, direto e indireto.
Encarceradas, faveladas, assassinadas por negligencia ou mesmo por parceiros que acreditam na manutenção da impunidade. Essa triste realidade não é encontrada em livro de ficção, mas nas páginas de uma vida dura. A violência cotidiana crescente, que cerca a vidas dessas jovens mulheres negras, mães trabalhadoras, sem acesso e sem direitos, vem, sobretudo daquele que deveria proteger: o próprio Estado. Como explicar, como apontado no Mapa da Violência, que enquanto o número de mulheres violentadas brancas diminuiu, os índices de mulheres negras violentadas aumentaram?
Essa realidade demonstra que o Estado sempre enxergou estes segmentos, mulheres, indígenas e negros, como meros seres sem direitos e, portanto, úteis apenas para a mão de obra subalternizada. Mesmo sendo distinto do extermínio, o descaso também é letal. Os formatos e contextos são diferentes, mas o alvo são os que sempre estiveram historicamente distantes do Estado. A legalidade continua provocando a negligencia, que provoca o descaso, que mantém o extermínio.
Portanto, é imprescindível fazer o corte étnico ao pensar a desigualdade social brasileira. Combater o racismo, acabar com o genocídio da população negra é urgente. Como explicar que justamente no momento em que temos implantadas mais Políticas de Promoção da Igualdade Racial (PIR), haja um salto absurdo nos índices de extermínio da juventude pobre, negra e periférica; um grande aumento de encarceramentos, sobretudo femininos? O avanço do conservadorismo é o avanço do racismo no nosso país. A democracia precisa chegar nas periferias, a cidadania deve sair do papel. É urgente defender a concretização da laicidade; uma educação pública, democrática e de qualidade; um sistema de saúde público digno, humanizado; a legalização do aborto. Distribuir as riquezas do país é uma necessidade. Não menos importante é acabar com a farsa da “guerra às drogas”: é preciso legalizar e descriminalizar as drogas, repensar o papel da polícia e da política militarizadas, acabando com os chamados “autos de resistência” ou a “resistência seguida de morte”, mecanismo jurídico que contribui com o extermínio de jovens e que acaba arquivado pelo judiciário majoritariamente branco brasileiro. Enfim, são precisas mudanças estruturais na sociedade, e isso não cairá do céu, mas será conquistado com muita luta e resistência!
Ocupar, resistir e transformar! Até a vitória! Um solene viva à União dos Palmares!
“Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido por dez anjos armados A pomba branca tem dois tiros no peito… dois tiros no peito” Facção Central
Luciete Silva é membro da Executiva Nacional do PSOL e militante do Círculo Palmarino.
Ubiratã Ribeiro é militante do PSOL e do Círculo Palmarino.