Gilberto Maringoni
Para Paulo Buss, ex-presidente da Fiocruz e um dos principais sanitaristas brasileiros, um sistema de saúde pública articulado internacionalmente seria decisivo para um combate mais eficiente à Covid-19. Em suas palavras, “O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS, e não agem pela lógica do mercado”. Na entrevista a seguir, ele fala de como o combate à doença poderia ser mais eficiente.
Entrevista: Paulo Buss
A pandemia da Covid-19 poderia ter sido evitada? E o desenrolar poderia ter sido diferente no Brasil? Os profissionais que trabalham com doenças infecciosas e epidemiologia já sabiam que a emergência de uma pandemia nessas condições era algo previsível. Nos anos precedentes, aconteceram epidemias de influenza, de Sars-Cov e de MERS [síndromes respiratórias variantes anteriores ao coronavírus, identificadas entre 2002- 12]. O surto de Ebola aconteceu em 2015 e foi contido a tempo, pois eclodiu em um lugar em que o transporte é muito precário. Apesar disso, houve casos nos EUA e na Europa. Mas ele despertou tremendo susto e houve uma reação importante, que pouca gente conhece, por parte das Nações Unidas. Foi um grupo de trabalho dirigido pela doutora Amina J. Mohammed, em que se desenvolveu um relatório com uma série de medidas sugeridas, mas nenhuma foi adotada. O mundo continuou fazendo de conta que aquele relatório era só mais uma peça das muitas da ONU. Já o Sars-Cov-2 o novo coronavírus aconteceu na China, em uma região altamente populosa, com um transporte abundante, pela infraestrutura negocial da região, e rapidamente se difundiu. Então, podemos dizer que seria evitável. Reduzir o impacto e a difusão também seria possível. Mas, para isso, deveria ter havido resposta e responsabilidade por parte dos dirigentes, que não fizeram o dever de casa proposto por aquele grupo de trabalho.
De março de 2020, quando a OMS classificou a Covid-19 como pandemia, até dezembro, não havia vacina. Teria sido possível conter a doença com lockdowns e outras medidas não medicamentosas nesse período? Houve um desdém por parte das principais autoridades dos países afetados após a ocorrência na China. Os governos da Itália e do Reino Unido minimizaram o problema. Não queriam impacto sobre a economia. A China fez aquele estardalhaço de fechar tudo, mas os países acreditaram não ter sido aquilo que gerou a contenção, e sim a própria história natural da doença. Se tivessem tomado as medidas de contenção tal como a China, que tem uma experiência grande com esse tipo de doença, teriam reduzido não só o número de casos nesses países, como também dado tempo de organizar a resposta dos sistemas de saúde. O grande problema é que a massa de pessoas que passa a ter necessidade de cuidados médicos ultrapassa e muito qualquer capacidade instalada. O ex-ministro da Saúde do Brasil, Luiz Henrique Mandetta, alertou isso o tempo inteiro. Ele estava muito bem assessorado por profissionais competentes da área de vigilância, e que foram catapultados porque o mandatário maior da nação fez ouvidos moucos e operou exatamente como as lideranças da Europa que negligenciaram a questão. Mas lá, rapidamente voltaram atrás. No Brasil, infelizmente, foi o contrário. Continua a negligência e, como estava incomodando, Mandetta foi demitido.
Parece claro que uma pandemia como está só pode ser combatida por meio de políticas públicas. Qual tem sido o papel do Estado e da saúde pública nos principais países? Quando os casos começaram a se distribuir, a OMS convocou um grupo de especialistas imediatamente. Esses técnicos muito precocemente disseram que se deveria utilizar com rigor o regulamento sanitário internacional, fazendo isolamento, identificação de casos, fechando alguns lugares etc. E houve claramente um rechaço a isso porque os governantes sabem que a iniciativa privada não quer nunca reduzir os lucros. A própria arrecadação pública, que seria reduzida, fez com que os governos ficassem muito resistentes. Faltou esse reconhecimento do papel de autoridade sanitária internacional para a OMS. E esse é um defeito que continua. Foram apresentados três relatórios na Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2021. Um da comissão independente, liderada pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, Helen Clark, e a ex-presidenta da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf; outro do Comitê de Emergências da OMS; e o terceiro do comitê que analisa o funcionamento do regulamento sanitário internacional. Os três foram unânimes em dizer que a OMS atuou dentro dos limites, com razoável grau de acurácia, mas que seriam necessárias mudanças. Uma delas é a tensão entre a recomendação frente a uma pandemia e a soberania dos países. Essa tensão, que é do multilateralismo, não é específica da saúde. E os países, mais uma vez, decidiram agir por conta própria, sempre pensando nos atores econômicos e políticos internos.
Muitas pessoas têm feito um paralelo com uma pandemia de 100 anos atrás, a da gripe espanhola, apesar das estatísticas muito precárias da época. Existe algum ensinamento que possamos tirar daquela situação? Antes de mais nada, é preciso lembrar que o mundo estava saindo da I Guerra Mundial naquele momento. Apesar das contradições a respeito, os movimentos de tropas foram responsáveis por imensas ondas de contaminação. Se estivessem vivendo um momento de paz, muito provavelmente a pandemia não teria sido tão intensa. Penso que a mudança demográfica, tecnológica, e de capacidade de mobilidade faz com que tenhamos poucas lições dessa pandemia de influenza, ocorrida de 1918 a 1920. Naquele momento, não tínhamos nem antibiótico, que só apareceu na década de 1940. A tecnologia era muito primitiva. A saúde pública se originou com a Revolução Industrial [na segunda metade do século XVIII, na Grã-Bretanha] e as práticas estatais apareceram com a Lei dos Pobres [de 1601, também na Grã-Bretanha], ocasião em que o então líder da saúde na Inglaterra disse: “não sei se são pobres porque são doentes ou se são doentes porque são pobres”. Mas não havia uma autoridade sanitária mundial. A Liga das Nações surgiu depois da I Guerra [em 1919], e logo se criou um comitê de saúde, que foi o anteprojeto de OMS, surgido em 1948.
A América Latina ainda é o covidário global, como se tem falado há alguns meses? Sim, embora já se veja na África em um crescimento de casos muito preocupante, além do sudeste da Ásia. Já se sabe que essas curvas ascendentes estão relacionadas ao Ocidente rico, com a liberação precoce das atividades. Nesses outros países, que têm economias mais atrasadas com menor mobilidade urbanas, como é o caso da África, a taxa de contato se reduz e o progresso da pandemia é mais lento, mas o crescimento de casos é inexorável, pois a pobreza dá outra sustentação para a expansão.
Na Argentina, houve uma tentativa de lockdown na grande Buenos Aires, mas a taxa de vacinação não estava alta. Com isso, vimos uma alta de infecção nos últimos meses. O que contribuiu para o alastramento do vírus ali? A explicação dos especialistas locais é de que, no início da pandemia, houve uma séria intervenção estatal para o lockdown. Mas, quando o vírus começou a ter fôlego para circular, eles reabriram. Foi uma abertura precoce. Isso, associado a uma baixa taxa de imunização, facilitou muito. A abertura aconteceu porque parecia que o comportamento do vírus não seria como nos outros países, mas o resultado foi desastroso.
Em Cuba, também houve um controle inicial pelo lockdown. O que contribuiu para a alta recente de casos ali? Seria a volta do turismo no início do ano? Sim, abriram a economia desesperadamente no verão. E os turistas, ao mesmo tempo em que poderiam estar levando a doença, poderiam também se contaminar. Por conta do bloqueio, acabou faltando seringa e agulha, entre outras coisas. E olhe que Cuba tem uma medicina de muito boa qualidade. Uma enfermagem muito boa, a mortalidade infantil muito baixa, mas a pandemia chegou por esse caminho
No Brasil, o governo federal tem jogado a responsabilidade para os estados. Mas é possível existir uma política nos entes subnacionais diferente da nacional? Nessas condições, seria possível fazer algo como uma contra política sanitária? As afirmações do governo federal são falaciosas. Por exemplo, quem regula a mobilidade por meio das viagens interestaduais, dos aviões, são autoridades federais, como a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Um governo estadual pode ter feito uma política melhor do que outro, e muito melhor do que o governo federal, mas não foram realizadas ações controladas a partir de Brasília. O resultado é que a mobilidade continuou farta e fácil, particularmente nas rodovias federais e nas atividades dos caminhoneiros, que deveriam ter sido fortemente estimulados a adotar medidas sanitárias. Um exemplo bem-sucedido foi o do Maranhão. Mesmo quando detectaram casos da variante indiana por lá, atuaram com extrema habilidade e, de fato, tiveram uma das melhores performances a favor da saúde. Em compensação, há exemplos muito ruins, como o Rio de Janeiro, com uma péssima gestão da pandemia, com um governador e um secretário de saúde negociando por baixo do pano, e ao mesmo tempo construindo estruturas completamente inadequadas, apenas para inglês ver. Como consequência, a letalidade é muito alta no Rio.
Como o senhor avalia a política implementada pelo governador de São Paulo, João Doria? Gosto muito de algumas pessoas que compõem a equipe. Por exemplo, levou João Gabbardo, que estava no Ministério na gestão Mandetta. O próprio grupo de gestão da crise funcionou razoavelmente, embora São Paulo não mostre um desempenho muito melhor do que os outros estados permanecendo na média em termos de denominador. Mas ali temos o principal aeroporto internacional do país.
Se o senhor se tornasse Ministro da Saúde, quais seriam as primeiras medidas que tomaria hoje? A coisa mais importante é o fortalecimento da rede de atenção primária, qualificando e dando condições de trabalho aos profissionais. Estamos com uma rede de mais de 50 mil equipes de saúde da família, que é quase inigualável no mundo, mas que tem um subfinanciamento muito grande. Precisamos de um verdadeiro abastecimento de mão de obra, com presença de enfermagem, médicos, agentes comunitários etc. Isso se perdeu. Algo bem feito nos governos do PT, até à época do ex-ministro José Gomes Temporão, foi a enorme valorização da saúde da família. Mas atenção primária não é atenção imediata. Teríamos que, imediatamente, promover uma valorização no sentido de adequar os profissionais de saúde e os materiais. Se existe uma distribuição bem feita da rede, com regras bem definidas e indicadores de alerta, nós rapidamente detectaríamos onde a circulação de um vírus está mais intensa. E isso não é só para enfrentar a pandemia.
Podemos ver no horizonte um mundo pós-pandemia na nossa região? Um grande problema da América Latina foi a eliminação da cooperação em saúde que a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) promovia. Em abril de 2019, Jair Bolsonaro (Brasil), Sebastián Piñera (Chile), Mauricio Macri (Argentina) e Iván Duque (Colômbia) deram um tiro de misericórdia na Unasul. Com isso, desmoronou todo o processo de cooperação. Além disso, o vírus não tem fronteira, a circulação é intensa entre esses países, e nós estamos até hoje sem um mecanismo de coordenação. A mesma coisa valeria para a aquisição de vacinas. Se tivéssemos o conselho de ministros da época da Unasul, poderíamos ter feito uma frente ampla de compra. Teríamos 12 países negociando fortemente com a indústria farmacêutica, segurando os pagamentos e recebendo imunizantes para toda a região. O Brasil está sendo salvo por dois institutos públicos de 120 anos de idade: a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan. Isso porque são dois institutos do SUS e não agem pela lógica do mercado. Mas, apesar disso, o governo federal brasileiro não liderou as ações adequadamente, e todas as estruturas interestaduais continuaram na mesma operação antipopulação e pró-enfermidade
Uma vida voltada à Saúde Pública
Paulo Buss é médico, doutor da Ciência pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, instituição que presidiu entre 2001-08. Foi secretário executivo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (1979-83) e presidente da Federação Mundial de Saúde Pública (2008-10). Representou o Brasil no Comitê Executivo da Organização Mundial da Saúde (2008-2011) e participou da direção de outros organismos de saúde internacionais. É autor e organizador de diversos livros, entre eles Diplomacia da Saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho (juntamente com Luiz Eduardo Fonseca), disponível para baixar na página da Fiocruz.