Carlos Serrano Ferreira
Em um país dependente como o Brasil não é possível uma política externa independente dos ditames dos países centrais. Apenas a ruptura completa com a cadeia imperialista garantiria isto, como provou a Rússia Soviética e provam a China Popular e Cuba socialista. No entanto, mesmo na dependência há espaços de maior ou menor autonomia, que dependem de condições mínimas de desenvolvimento econômico, estabilidade política e capacidade militar. Sob esta base governos desenvolvem esse potencial em seu limite ou desperdiçam estas possibilidades. A política externa do Barão do Rio Branco (1902-1912) é celebrada até hoje por consolidar nossas fronteiras e impedir a intervenção de potências imperialistas, em um tempo em que as margens de autonomia, reduzidas em um país agrícola (a participação da indústria no PIB era entre 8-9%), foram utilizadas ao máximo.
Até os anos 80 a margem de autonomia foi crescente. Em 1985, a indústria brasileira chegou ao máximo de participação do PIB (21,6%), a indústria bélica ao seu auge de exportações e, em 1988, se conquistava o domínio completo do ciclo nuclear e se construía o setor informático. Esse desenvolvimento e a diversificação das relações econômicas, políticas e diplomáticas levou ao que Moniz Bandeira intitulou de rivalidade emergente com os Estados Unidos. Se em 1950 metade de nossas exportações era de café e 50% era comprado pelos EUA, que detinha “cerca de 40% do intercâmbio externo brasileiro”, hoje em dia “nosso maior parceiro comercial é a China, e o nosso principal produto, tanto no caso das exportações como no das importações, não ultrapassa 10% do total”, com a participação dos EUA nas exportações caindo a uma média de 17%.
Contudo, o fator político levou a importante variação na política externa. A grande burguesia brasileira renunciou nos anos 50 a um projeto independente de desenvolvimento, aceitando uma posição associada e dependente do capital internacional, temerosa diante da mobilização de massas e do risco de revolução. Porém, refletindo distintas frações burguesas, se intercalam duas tendências: uma de inserção subordinada e alinhamento automático com os EUA; outra, subimperialista, que procura diversificar a dependência entre polos imperialistas e o fortalecimento internacional do Brasil, garantindo uma posição de intermediário entre os países centrais e demais países periféricos. Como bases da primeira estão as burguesias compradora e financeira, ligada às velhas elites agrárias decadentes, com interesses fundidos aos norte-americanos. No segundo caso se encontram os setores da construção civil; de petróleo e gás nacionais (Petrobrás); parte de multinacionais que se utilizam do país como ponta de lança para penetração na América do Sul; e, mais recentemente, parte do agronegócio, que enfrenta restrições nos mercados imperialistas.
Devido ao processo de desenvolvimento se consolidou uma tradição diplomática que busca utilizar ao máximo os potenciais de autonomia nacional ainda que na dependência, desde a Política Externa Independente até o governo José Sarney (1985- 1990), com o hiato do ditador Castelo Branco.
A corrente servil é mais antiga. O chanceler Raul Fernandes (1954- 1955) declarava que “o Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos Estados Unidos”. Entre os pontos mais baixos simbolicamente está o chanceler Celso Lafer que, em 2002, se descalçou num aeroporto dos EUA para inspeção de segurança. Não por acaso este foi chanceler do tucano FHC, que representou o auge do neoliberalismo brasileiro, desconstruindo os instrumentos de poder nacional com privatizações, desindustrialização e financeirização da economia. Em nível internacional se subordinou ao imperialismo americano; promoveu o Mercosul enquanto regionalismo aberto, a serviço das multinacionais; assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que impede o direito de defesa nuclear de países periféricos e não desarmou as potências imperialistas; entregou a base de foguetes de Alcântara (MA) aos EUA, medida anulada por Lula; e negociou a Alca, que destruiria o tecido produtivo brasileiro.
Já o governo Lula expressou o subimperialismo brasileiro. Aproveitando-se do boom das commodities teve instrumentos, e vontade, de realizar uma política externa ativa a serviço da expansão dos campeões nacionais da construção civil, do agronegócio e do petróleo. Ainda que sem grandes instrumentos de poder militar, se beneficiou do poder simbólico do grande líder operário Lula e do giro à esquerda na América Latina, e pôde exercer influência diplomática com aparência progressista. Apostou na integração política e de defesa regional, apresentando-se como o representante local, para negociar uma posição melhor na relação de dependência com os diversos polos imperialistas, para o que o Brics também colaborou. Ampliou a representação no mundo, em particular na África. O caráter subimperialista fica claro na ocupação militar do Haiti, servindo aos interesses americanos e do grande empresariado nacional, como no travar da integração econômica sul-americana, apostando no BNDES como instrumento de penetração dos interesses da burguesia nacional.
O retorno dos tucanos à direção da diplomacia, no governo ilegítimo de Temer, com o senador José Serra – que saiu sob a alegação de problemas de saúde e acusações na Lava-Jato e o senador Aloysio Nunes Ferreira, é ainda mais nocivo que no período FHC, pois se dá em meio à depressão econômica gerada pela política recessiva do governo.
Contudo, o governo de Michel Temer não pode ser acusado de incoerente. As suas políticas externas e interna estão concatenadas, voltadas para a mesma lógica de desnacionalização, desindustrialização e inserção subordinada. Conseguiu reduzir o peso da indústria brasileira aos patamares de 1910. Com operações da Polícia Federal e leis desconstrói os últimos setores com capacidade de concorrência internacional, bases do subimperialismo brasileiro, abrindo o mercado nacional para as corporações estrangeiras. O caso mais grave é a Petrobrás, alvo eterno de sabotagem do imperialismo americano, ampliada após a descoberta do pré-sal. Como mostrou o Wikileaks, em 2009 o então presidenciável José Serra assumiu o compromisso com representantes de petrolíferas americanas de acabar com o regime de partilha do pré-sal, o que Temer cumpriu.
Impulsionado pelo giro à direita no continente, os tucanos desconstroem os avanços da integração sul-americana, aproximando o Brasil dos países da Aliança do Pacífico, aposta dos EUA de alternativa à finada Alca. Para isso articula setores do empresariado sob o argumento de criação de um corredor articulado às “cadeias globais de valor” do Pacífico. Age de forma agressiva, sob o discurso reacionário e desequilibrado “antibolivariano”, desmontando o Mercosul, apostando no isolamento da Venezuela e apoiando os “esquálidos” golpistas, impedindo a presidência rotativa pro-tempore e depois a suspendendo do bloco.
Falar grosso com os vizinhos é a tônica desde o início, com notas agressivas frente às preocupações de vários países, como Cuba e El Salvador, sobre o processo de impeachment. Um exemplo de desprezo pela Bolívia foi a nomeação de Eduardo Saboia como chefe de gabinete de Aloysio Nunes. Ele realizou operação de fuga para o Brasil de um senador de oposição boliviano acusado de corrupção, sem autorização governamental. Contudo, cede frente à União Europeia, acelerando o acordo com o Mercosul que só trará prejuízos à economia da região, sem contrapartidas de abertura de mercados, e retorna à proposta de entrega da base de Alcântara aos EUA.
A ação consciente e ativa de aprofundamento da dependência pelo governo Temer o torna, definitivamente, o ponto mais baixo da diplomacia brasileira.