Cenário regional se alterou significativamente. A maioria dos analistas previa, no início de 2019, que o governo Maduro cairia em poucas semanas. Um ano depois, o preferido dos mercados, Maurício Macri, foi o maior derrotado. A Bolívia vive um golpe brutal. Chile e Equador enfrentam levantes populares e as ruas da Colômbia se agitam. Nesse quadro, como se comporta o governo brasileiro?
Gilberto Maringoni
Do início ao final de 2019, a situação política da América do Sul se transformou significativamente. Se em janeiro, a grande pergunta era saber quantas semanas duraria o governo de Nicolás Maduro, em um continente pautado pela supremacia da direita e da extrema-direita, um ano depois o quadro é outro. Maduro segue no poder e as ameaças que o rondavam se enfraqueceram (o que não significa dizer que a situação interna seja tranquila). Um dos faróis do ultraliberalismo no continente caiu, o governo Maurício Macri, na Argentina. Um golpe brutal, com características miliciano-fundamentalistas derrubou o governo Evo Morales, numa Bolívia em rebelião popular. O outrora tranquilo Chile enfrenta manifestações inéditas num lugar tido como vitrine dos ajustes estruturais. O Equador assistiu um levante que colocou o direitista Lenin Moreno contra a parede e o Peru se instabilizou em um enfrentamento entre duas facções direitistas, o fujimorismo no Congresso e a alta finança na Presidência. Ivan Duque, o reacionário governante da Colômbia se viu derrotado em eleições municipais nas grandes cidades e tem protestos populares crescentes diante de si. No Uruguai, o resultado eleitoral foi inusitado: deu empate, com vitória final para a direita neoliberal encabeçada por Lacalle Pou, gerando uma situação que se desenhará melhor ao longo de 2020 e pela evolução da crise econômica em seus vizinhos maiores, Argentina e Brasil. E a grande novidade em termos de articulação continental, o Grupo de Lima formado por 14 países em aliança com a Casa Branca, cujo propósito essencial é isolar a Venezuela se desmoraliza. A instabilidade não é novidade em um continente marcado por abissais desigualdades de classe, étnicas e regionais. A manutenção do que se convencionou chamar de “paz social”, na maior parte das vezes, foi obtida aqui com pesada repressão interna por parte dos aparatos de segurança dos Estados. De tempos em tempos, a tensão social quando não tem o escoadouro institucional de eleições explode, mostrando a fragilidade das estruturas legais de cada país. Também não é surpreendente que tais fenômenos sejam muitas vezes concomitantes em vários locais.
Alinhamento automático
Nesse quadro todo, como se comporta o Brasil? O novo governo brasileiro inaugurou, em janeiro de 2019, uma diplomacia que vai muito além da submissão total a Washington, marca de pelo menos duas administrações anteriores, a de Eurico Gaspar Dutra (1946-50) e a de Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-67). Bolsonaro colocou o Brasil como extensão das diretrizes globais emanadas pelo Departamento de Estado, em uma fase de direitização da política externa dos Estados Unidos. Isso implica um alinhamento passivo e acrítico, que compreende agressividade diplomática para com a China, Irã, Venezuela e aproximação com homólogos ideológicos do presidente brasileiro ao redor do mundo. São os casos, além do próprio Trump, do italiano Matteo Salvini, do húngaro Viktor Orbán e do israelense Benjamin “Bibi” Netanyahu. Todos enfrentam crises em seus países.
Exportando o bolsonarismo
As intervenções políticas do Brasil na América do Sul ao longo de 2019 foram desastrosas. Poucos dias após as eleições de 2018, o já indicado ministro da Economia Paulo Guedes, ao ser interpelado por uma jorna – lista argentina sobre o futuro do Mercosul, respondeu aos berros: “Não é prioridade! Não é prioridade!”. Mesmo a diplomacia do governo Macri, com muita proximidade política ao recém-eleito, ficou surpresa. Ainda antes da posse, o eleito atacou violentamente os profissionais cubanos que participavam desde 2013 do programa “Mais Médicos”. A alegação é que os caribenhos teriam vindo para formar “núcleos de guerrilha” no Brasil. Em 13 novembro de 2018, o governo da Ilha decidiu sair do programa, citando “referências diretas, depreciativas e ameaçadoras” feitas pelo chefe do Executivo eleito. No segundo mês de mandato, Bolsonaro somou-se às articulações dos Estados Unidos, da Colômbia e do Grupo de Lima conjunto de governos que se opõem ao governo de Nicolás Maduro na tentativa de realizar uma provocação à Venezuela, com consequências imprevisíveis. O chanceler e o vice-presidente brasileiro chegaram a ir a Cúcuta, fronteira entre Colômbia e Venezuela, em 23 de fevereiro, para a montagem de uma suposta operação de ajuda humanitária. Era uma tentativa de golpe, que logo malogrou. Dois meses depois, em novo intento, o líder oposicionista Juán Guaidó busca sublevar uma base aérea em Caracas e é rechaçado. Nos dois episódios, o apoio brasileiro foi irrestrito. A tais trapalhadas se somaria a invasão da embaixada venezuelana em Brasília, no mês de novembro. O episódio tem raízes obscuras, mas foi nítido a condescendência do Itamaraty e das forças de segurança brasileiras em reprimir a ação ilegal. Bolsonaro visitou a Argentina, na primeira semana de junho de 2019. Entre carnes nobres e tintos de qualidade, o brasileiro declarou apoio incondicional a Maurício Macri nas eleições. Derrotado Macri, Bolsonaro recusou-se a cumprimentar o novo presidente do terceiro maior parceiro comercial do Brasil. O gesto mostra-se ainda mais inusitado quando comparado às saudações feitas pela Casa Branca. Em relação ao Chile, Jair Bolsonaro investiu pesadamente contra a ex-presidente Michelle Bachelet, alta comissária de Direitos Humanos da ONU, no início de setembro. O ultradireitista acusou Bachelet de ingerência indevida, após esta declarar a “redução do espaço cívico e democrático” no Brasil para a fiscalização de abusos em crimes de direitos humanos. Não contente, atacou o pai, general assassinado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-89), a quem, volta e meia, elogia. O repúdio foi unânime no país, com condenações que foram da esquerda ao presidente direitista Sebastián Piñera. Este alegou não compartilhar “em absoluto a alusão feita pelo presidente Bolsonaro a uma ex-presidente do Chile e, especialmente, a um assunto tão doloroso quanto a morte de seu pai”. Pela somatória de impropriedades continentais, o candidato de direita à presidência do Uruguai, Luis Lacalle Pou, rejeitou o apoio externado por Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais daquele país. No caso do golpe na Bolívia, o Brasil reconheceu o autoproclamado novo governo pouco mais de 48 horas após a renúncia de Evo Morales. Ainda não está clara a influência de Brasília nas violentas mudanças ocorridas no país.
Isolado e inútil
Bolsonaro não tem um projeto definido para o continente. Em maio, ele, Macri, Piñera e Iván Duque (Colômbia) assinaram a Declaração de Santiago, lançando o Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul). Além de declarações vagas, há pouca coisa definida até agora, além da virtual dissolução da Unasul, lançada em 2008, durante o ciclo de governos progressistas na região. A conduta errática e fora dos padrões correntes da política externa brasileira tem levado ao crescente isolamento do país na região. Ninguém tem Bolsonaro como interlocutor sério e todos querem distância do miliciano. Ao tomar partido em disputas internas de outros países, o brasileiro se torna disfuncional às próprias intenções de isolar a esquerda. Aliás, torna-se disfuncional para as duas tarefas que a Casa Branca tacitamente esperava verem cumpridas por Bolsonaro a derrubada de Maduro e a contenção da China na região. Ambas malograram. Em seu malogrado périplo pelo Oriente e Oriente Médio e na reunião do BRICS, Bolsonaro derreteu-se em mesuras com Xi Jinping. Aceitou abrir o mercado brasileiro para a tecnologia 5G chinesa, fulcro da guerra comercial entre o gigante asiático e os Estados Unidos. No fim, fica a pergunta: Donald Trump alardeado como o amigo do peito – precisa dele agora exatamente para quê?