Gilberto Maringoni
Queria ter feito como Tintin, que foi ao país dos sovietes. Esse é o título de uma história em quadrinhos de 1928. Nela, o personagem de Hergé e seu cãozinho Milu traçam um quadro de puro preconceito em relação à Revolução Russa, então com 11 anos de idade, no início da coletivização e dos planos quinquenais.
Cheguei atrasado. Viajei por um mês, em maio deste ano, e não há mais sovietes. Eu me limitei a duas cidades, Moscou e São Petersburgo (a antiga Lenin grado), o berço da revolução.
Quem for para lá em novembro, esperando assistir às comemorações pelos cem anos da chegada dos bolcheviques ao poder pode se decepcionar. “O tema central de todos os eventos comemorativos deve ser a ideia de reconciliação”, escreveram os repórteres Ilya Barabanov, Taisia Bekbulatova, Natalia Korchenkova no jornal Kommersant, em 20 de dezembro de 2016. E seguem adiante: “A Sociedade Histórico-Militar Russa, que centralizará as iniciativas oficiais das comemorações, afirma que as festividades devem ser marcadas pela ‘reconciliação entre descendentes dos brancos e vermelhos’”. Citando fontes da entidade, o periódico diz que “O centésimo aniversário da Revolução coincide com cem anos do Patriarcado (A Igreja Ortodoxa Russa recuperou o posto do Patriarca em 1917), por isso este aspecto também não será esquecido”. O governo vê nos eventos de outubro daquele ano um tema incômodo para maiores celebrações.
Apesar disso, vale tentar saber o que resta dos 74 anos de vigência do regime socialista (1917-1991) e das profundas transformações operadas nesse país de 145 milhões de habitantes e classificado como a sexta economia do mundo.
O czar e Stálin
“São Petersburgo é a cidade do czar e Moscou é a cidade de Stálin”, define Nadya Bobyleva, uma arquiteta de 29 anos. A classificação parece certeira.
A primeira foi construída sob a batuta de Pedro, o Grande (1672-1725), o modernizador do império que almejava erigir um Estado nos moldes do absolutismo europeu. O czar decidiu implantar São Petersburgo como capital no Noroeste da Rússia, às margens do Rio Neva e próximo ao Mar Báltico. Uma localização estratégica diante da Europa e do mundo nórdico.
Para realizar o plano urbanístico da cidade, Pedro contratou arquitetos franceses e italianos que desenharam um centro urbano em quase tudo semelhante a Paris. Berço da revolução, a cidade é pontuada por marcos das disputas de outubro de 1917, como a Estação Finlândia na qual Lenin chegou em abril daquele ano, o antigo instituto Smólni que abrigou os bolcheviques a partir do segundo semestre, pelo cruzador Aurora que disparou seus canhões na manhã da tomada do Palácio de Inverno e pela Fortaleza de Pedro e Paulo, em cujos cárceres vários revolucionários foram trancafiados desde o final do século anterior. Apesar de inegavelmente bela, há um ar de déjà vu em tudo aquilo. São Petersburgo não prima pela originalidade arquitetônica.
A cidade monumental
Moscou é radicalmente diversa. Pode-se não a apreciar, mas não se conhece nada igual.
Stalin e o governo soviético, entre os anos 1920-50, fizeram da capital o modelo de uma metrópole moderna e planificada, a um custo humano brutal, em um país agrário que teve a mais rápida passagem para uma sociedade industrial em toda a história.
Mais de 200 estações de metrô um dos maiores do mundo foram construídas entre 1935 e 1970, sem poupança interna, sem crédito externo e sem tecnologia para tanto. As estações boas parte revestida de mármore e com detalhes em bronze e aço formam uma obra de arte singular, numa urbe com um eficiente serviço de transporte público. Há uma profusão de estátuas e altos relevos de Lênin e de outros dirigentes, bem como de soldados e guerrilheiros, mulheres e homens em quase todas elas.
A antiga Meca do socialismo tinha que exaltar a grandiosidade dos trabalhadores em cada esquina. E assim foi feito. A concepção oficial era a de construir “palácios para o povo”. A iniciativa tinha suas razões. O país exibe inúmeros palácios aristocráticos pré-revolução, com uma ostentação quase agressiva de fausto e riqueza. Daí as estações terem requintes de luxo.
As marcas físicas da Era Soviética estão por toda parte. Além do metrô, podem ser vistas em edifícios e em boa parte dos mais de 250 parques públicos e áreas verdes da cidade.
O centro da metrópole surpreende pela monumentalidade. Em geral, quem vai a Paris se derrete diante da avenida Champs-Élysées e de outras largas vias abertas pelas reformas de Haussmann, depois da Comuna, nos anos 1870. Moscou vai além: existem pelo menos 10 ou 12 artérias com mais de 70 metros de largura.
Há uma espécie de brutalismo socialista a dominar o horizonte. No livro Stalinist architecture (Laurence King Editor, 1992), os arquitetos Alexei Tarkhanov e Sergei Kavtaradze apontam: “Logo após a Revolução, surgiu a ideia da construção de superedifícios, que teriam o papel de marcar o novo papel do proletariado como classe dominante, tanto no país e no exterior”.
O desenho de um novo plano urbanístico destinado a superar a acanhada cidade traçada nos primórdios do século XIX, após a invasão napoleônica começou a ser debatido no início dos anos 1920. Só se transformou em projeto na primeira metade da década seguinte. O objetivo era possibilitar que a capital de 3,5 milhões de habitantes fosse capaz de abrigar até cinco milhões nas três décadas seguintes.
A partir daí, começaram a pipocar nas áreas centrais edifícios de estilo eclético, que tinham em comum a aparência imponente e uma noção de solidez e perenidade. Nem todos primam pelo bom gosto, mas expressam a ideia de um poder duradouro.
A maioria deles está situada em pontos estratégicos, a exemplo das Sete Irmãs, unidades gigantescas espalhadas por bairros centrais e destinadas a abrigar órgãos públicos e a Universidade de Moscou.
A zeladoria urbana enfrentou sérios problemas de degradação nos anos 1980-90, com a crise econômica vivida pelo país. Isso mudou. Há uma recuperação constante de edifícios históricos, áreas verdes e vias radiais, que fazem do lugar um canteiro de obras interminável. Embora o transporte público cubra toda a extensão urbana com bilhetes a um dólar o sistema parou de crescer nas últimas três décadas. Mesmo assim, não é nada que se compare à estação Sé, em São Paulo, em horários de rush.
Sofrimento e bem-estar
Para uma população que enfrentou sofrimentos indizíveis entre a revolução e o início dos anos 1950 fome, guerra civil, coletivização da agricultura e a invasão alemã, a sensação de bem-estar chegou apenas no segundo pós-guerra (1945).
A partir daí, uma tarefa gigantesca foi colocada pela administração pública: zerar o déficit habitacional, meta atingida em menos de uma década. Edifícios de apartamentos foram construídos em bairros por vezes distantes do centro e podiam não ser bonitos ou da melhor qualidade. Mas ninguém ficou sem teto.
E mais: nos anos de Nikita Khrushchev (1953-64), o governo decidiu valer-se de um ativo relativamente barato e abundante a terra e possibilitar a cada família trabalhadora a posse de uma casa de campo, ou dacha. Existem até hoje, aos milhares, nos arredores da capital. São construídas em terrenos minúsculos e boa parte não está em boas condições. Mas seu uso é intenso. Isso torna as saídas da cidade um inferno nos finais de semana.
Hoje, um problema social está prestes a explodir. Sob a alegação de risco de desabamento, a prefeitura aprovou no início do ano uma lei determinando a paulatina demolição das antigas moradias e sua substituição por prédios novos. Há uma desconfiança generalizada por parte da população. Várias dessas construções estão situadas em áreas valorizadas e dois problemas se colocam: o receio de gentrificação dos bairros, com expulsão dos pobres para áreas ainda mais distantes, e a impossibilidade da compra das novas unidades.
Moscou é muito mais segura do que Rio de Janeiro, São Paulo ou qualquer outra metrópole brasileira. Mas nem sempre foi assim. Boris Yeltsin (1991- 1999) e seu primeiro-ministro, o ultraliberal Yegor Gaidar, levaram o PIB a desabar quase 50% em relação à década anterior. A tensão social explodiu e a criminalidade também.
Um ex-KGB no comando
A Rússia dos anos de Vladimir Putin deixou aquele período para trás. Centralizador, autoritário e partidário de um desenvolvimentismo conservador, Putin inviabilizou a oposição ultraliberal, escanteou a esquerda mais radical e controla firmemente o parlamento. Seu grupo não dá sinais de sair do poder tão cedo. Voltar a ter a estabilidade social de décadas anteriores foi algo obtido nem sempre com boas maneiras.
O consultor político Evgeny Minchenko, no texto Politburo 2.0 e a Rússia pós-Crimeia, encontrável na internet, chama a atenção para um detalhe da atual organização institucional. Putin e mais dez dirigentes entre eles o primeiro-ministro Dmitri Medvedev comandam o país de forma muito semelhante ao antigo poder soviético. O presidente não seria um líder unipessoal, mas um árbitro de interesses setoriais.
A popularidade do ex-agente da KGB é alta internamente. Ele é visto como o homem que devolveu à Rússia o orgulho nacional e colocou ordem na casa no bom e no mau sentido da expressão. Se há contes tações pontuais e por vezes explosivas ao autoritarismo governamental, a política externa é unanimidade nacional.
As ações na Ucrânia e na Síria são vistas como a reafirmação das glórias da II Guerra Mundial, quando, praticamente sozinha, a ex-URSS derrotou o nazismo em seu território.
Aliás, se há algo que Putin maneja com maestria é o nacionalismo russo. Não por outro motivo, os festejos do Dia da Vitória (9 de maio) seguem merecendo toda a atenção e o empenho oficial. É um sentimento concreto e real. O desfile espontâneo de familiares pela Avenida Tverskaya em direção à Praça Vermelha nesses dias, com os retratos de seus mártires, funde-se com a emulação patriótica de construção do Estado.
E este último recuperou sua proeminência econômica. Responsável por mais de 55% do PIB, o poder público recuperou as empresas públicas de energia e concentrou investimentos na indústria bélica. Na Rússia, as Forças Armadas e o setor militar, pelo próprio histórico do conflito contra o nazismo, se tornaram fator de orgulho. Isso é potencializado pelo contraste com o sucateamento ocorrido nos anos Yeltsin.
Há problemas sérios que não são enfrentados. A alíquota fiscal para pessoas físicas é única 15%, o que torna o sistema tributário regressivo numa economia na qual a desigualdade social aumenta aceleradamente. Embora tenha vivido uma recessão nos últimos cinco anos, a recuperação tem sido lenta, mas de certa forma segura, por força da recente elevação dos preços do petróleo.
Não é apenas Putin quem goza de altos índices de aprovação. Sorte semelhante tem Stalin. Para 38% dos russos, ele é a figura mais importante da história mundial, segundo pesquisa do Centro Levada, divulgada em junho último.
Etnicamente, há uma divisão clara: brancos eslavos compõem as classes alta e média; imigrantes da Ásia Central formam o contingente de trabalhadores de menor qualificação, trabalhando em restaurantes, construção civil e serviços pesados de limpeza urbana. Esses, em geral, não têm proteção social alguma e vivem o inferno de ausência de regras trabalhistas.
O país não é mais o dos sovietes. Há problemas imensos na cena atual. Mas para quem se formou politicamente tendo o socialismo como norte, a viagem vale a pena. Até para que o senso crítico seja afinado.