Leonardo Cisneros
Neste ano completaram-se cinco anos da resistência em defesa do Cais José Estelita, no Recife. Cinco anos em que um movimento inicialmente auto-organizado de forma espontânea a partir da internet vem conseguindo impor uma derrota a uma poderosa aliança entre o poder político e o “poder imobiliário”, impedindo até hoje que se batesse a primeira estaca de um projeto cujo lançamento estava previsto para antes da Copa do Mundo de 2014. Um projeto bilionário, bancado por investidores estrangeiros e proposto por um conjunto de construtoras hoje encalacradas com a Lava-Jato, e que prometia um “Novo Recife” com 13 torres espelhadas de 40 andares encravadas em um dos principais cartões postais da cidade.
A cultura foi uma das armas centrais nesta luta. Desde o início uma das principais forças do movimento foi a maneira como conseguiu articular uma grande efervescência criativa e, com ela, colocar a defesa do Cais José Estelita e o tema do direito à cidade como tópico de discussão em todo Recife. Isso aconteceu desde a profusão de cartazes e peças visuais até as dezenas de shows nos vários encontros OcupeEstelita, feitos do lado de fora dos armazéns, e durante a própria ocupação do terreno, em 2014.
Nestes cinco anos foram feitas mais de sessenta peças audiovisuais, com destaque para os curtas Velho Recife Novo, de 2012, (https://youtu.be/ HlYNmG1G3d8), Recife Cidade Roubada (https://youtu.be/dJY1XE2S9Pk) e a sátira Novo Apocalipse Recife (https://youtu.be/-YD1UtwFnKc), dentre vários outros (https://www.youtube.com/user/ocupeestelita). Até mesmo uma agremiação carnavalesca surgiu daí, a Troça Empatando Sua Vista, em que foliões saem fantasiados de prédio no meio da multidão. A sátira feita pela troça e a lembrança do poder das construtoras no Recife incomoda tanto que a troça tem sido alvo de espionagem e perseguição policial pelo governo de Pernambuco (https:// goo.gl/AJqmpQ).
Estas foram as armas de uma verdadeira guerra cultural, no espaço virtual e nas ruas, contra uma cultura de cidade que certamente não é exclusiva do Recife, mas que aqui se acentua pela herança colonial: uma cultura que nasce da convergência de uma nova onda de mercantilização da cidade com a cultura nascida na casa grande, de negação da rua, do espaço compartilhado e da mistura; a cultura de uma não-cidade, em que a elite se isola da plebe por trás dos muros dos condomínios e dos shoppings ou por trás dos vidros de suas SUVs.
Essa cultura sustenta uma estrutura de poder colonial, plutocrata, que desde os tempos das capitanias concentra o destino de toda a cidade nas mãos da mesma meia dúzia de pessoas de sempre e que transforma governo atrás de governo em apenas um preposto de seus interesses. Retomando o slogan do Occupy Wall Street, que aconteceu apenas pouco meses antes do primeiro OcupeEstelita, podemos dizer que a luta em defesa deste pedaço de chão encarnou, simbolizou e territorializou uma luta dos 99% contra o 1% e assumiu a dimensão de uma luta pela democracia real, apontando para a necessidade de contestar essa estrutura de poder até hoje intocada.
E foi dessa forma que essa luta pelo Estelita encarnou uma defesa do direito à cidade em sua acepção mais radical. Vejamos as palavras do geógrafo marxista David Harvey (que, aliás, visitou o Cais José Estelita): “O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização.” Ou seja, ele só existe plenamente quando reivindicado como um direito à autodeterminação, à participação real, efetiva, radical no processo de urbanização e no usufruto de todas as possibilidades que a cidade abre. Temos que reivindicar a cidade como um Bem Comum, como uma obra coletiva, como algo criado e mantido continuamente por todas as pessoas que nela vivem. Tratar a cidade como um Bem Comum é negar radicalmente a sua redução a uma mercadoria e as diversas formas de privatização da Cidade.
O principal “produto cultural” do OcupeEstelita foi a própria ocupação e transformação o próprio Cais, tanto nos eventos festivos-políticos de um dia só, quanto na ocupação contínua que criou a Vila Estelita. Os armazéns, que os órgãos oficiais de preservação do patrimônio não quiseram reconhecer como de valor histórico em 2012, foram continuamente reapropriados e ressignificados a cada “ocupa”, ao longo desses cinco anos. Transformaram-se em um mural reescrito em várias camadas pelas mais diferentes lutas que convergem na luta pelo direito à cidade, desde a luta feminista até a luta anti-proibicionista e até mesmo a luta contra o agronegócio. E, desta forma, a própria luta pela preservação do Cais o transformou em um patrimônio cultural a ser preservado.
Desse ponto de vista, a cultura assumiu um papel ainda mais decisivo. A forma mais radical de participação e de criar o comum é a transformação direta da cidade, é ocupar a rua e ressignificá-la.
A cultura foi meio e fim deste processo.