Antônio Gonçalves Filho
O Sistema de Seguridade Social brasileiro estabelecido pela Constituição Federal de 1988, composto pelas políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social é, sem dúvida, fruto da luta de classes e tem como característica a primazia do Estado como garantidor de direitos aos trabalhadores. Em decorrência disso, tem sido alvo constante de alterações no contexto das contrarreformas neoliberais.
No atual momento, no qual enfrentamos a maior crise sanitária dos últimos cem anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil tem cumprido um papel fundamental ainda que carente de financiamento e estruturação.
A existência de políticas sociais, de um modo geral, é atribuída à constituição da sociedade burguesa e decorrente do modo de produção capitalista, porém, como afirma Behring (2006), constata-se que o estabelecimento da questão social se dar ao mesmo tempo em que os trabalhadores assumem um papel político relevante e até revolucionário.
Demanda por direitos
No Brasil, a demanda social por direitos ganhou força no final do século XIX e início do século XX, decorrente, dentre outros fatores importantes e estruturais, do processo de industrialização e do surgimento da classe operária brasileira. Greves e manifestações, influenciadas pela experiência sindical anarquista dos imigrantes europeus, contribuíram para conquistas futuras como a Previdência Social, marco na história da proteção social no Brasil.
Há de se considerar a importância da Revolução Russa de 1917, que buscou atender as reivindicações mais imediatas das camadas populares, e da formação, em 1922, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que firmou uma inevitável conjuntura política de bipolarização mundial: de um lado os países capitalistas liberais em crise e do outro a consolidação da União Soviética Socialista.
Liberalismo em xeque
A grande depressão econômica que se inicia em 1929, põe em xeque os fundamentos do liberalismo econômico e instaura uma forte crise de legitimidade do capitalismo. Nesse ambiente, surge a Teoria Geral de John Maynard Keynes (1936), que rompe com a visão de livre mercado, em favor da intervenção estatal na economia. No período pós II Guerra Mundial, o keynesianismo foi tomado como base para a construção do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), demandando do poder público, além da regulação da economia, o incremento das políticas sociais, visando garantir a universalização dos direitos fundamentais dos cidadãos, dentre eles, saneamento básico, saúde, educação, moradia, transporte e lazer. Tem início, portanto, o que se costuma denominar de “a era de ouro” do capitalismo nos países centrais.
O novo pacto social do pós-guerra possibilitou transformações nas políticas de saúde de diversos países, como a implantação do National Health Service no Reino Unido, em 1948, primeiro sistema estatal em país capitalista. Trata-se de uma das resultantes do Relatório Beveridge de 1942, que também fundamentou o Welfare State, assim como as reformas canadenses de 1974 e aquelas resultantes da queda das ditaduras de Portugal (1974) e da Espanha (1975). Na Itália, as mudanças no sistema de saúde demandaram três décadas para que se concretizassem, dada a correlação de forças políticas.
Além da Revolução Russa, outros processos revolucionários também buscaram implementar políticas universais de saúde ao longo do século XX. Na China, em 1949, foram constituídos os “médicos de pés descalços”, profissionais de saúde sem uma formação clássica em medicina, cuja ação estava voltada para medicina preventiva e promoção em saúde. A Revolução Cubana (1959) implementou o sistema de saúde mais bem estrutura das Américas. Na Nicarágua, a Revolução Sandinista de 1979 dedicou-se à redistribuição da riqueza, bem como à promoção da saúde e da educação.
Brasil, ditadura e atraso
O Brasil, devido ao golpe civil-militar de 1964, sofreu um atraso de décadas na construção de políticas universais de proteção social e só experimentou quando a prosperidade econômica do pós-guerra chegou ao fim.
Nesse período, o sistema de saúde brasileiro estava dividido entre a medicina previdenciária e a saúde pública. A vertente previdenciária estava a cargo dos institutos de aposentadorias e pensões (IAPs), com foco na saúde individual de trabalhadores formais, concentrados nas zonas urbanas. A saúde pública estava sob o comando do Ministério da Saúde. Voltava-se para a população empobrecida, principalmente das zonas rurais, e apresentava ações de caráter preventivo.
O regime civil-militar agravou a situação da incipiente saúde pública brasileira. Sob o argumento que os IAPs estavam insolventes, o governo federal criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), eliminando a gestão tripartite (União, empregadores e empregados), ao mesmo tempo em que incentivou a expansão da iniciativa privada na saúde. Quanto à saúde pública, ocorreu o enfraquecimento do Ministério da Saúde, cujo orçamento, conforme aponta Paim (2008), no período de 1968 a 1972, caiu de 2,1% para 1,4% do orçamento da União. Em contraste com os percentuais ascendentes destinados às forças armadas (18%) e transportes (12%).
No final dos anos 1960 e início a década seguinte, o Brasil cresceu em torno de 11% ao ano, com matriz econômica de cortes de gastos com políticas sociais e entrada de grande quantidade de capital estrangeiro. Ampliou-se a concentração de renda, sem melhoria nas condições de vida da população.
Mobilização popular pela saúde
O cenário internacional era de decadência do ciclo de prosperidade econômica e de desmonte do Welfare State. A crise não tardou a chegar ao Brasil, ampliando as tensões sociais e o surgimento de mobilização popular contra a ditadura e por mudanças nas condições sociais. Estudantes, professores universitários, setores populares e entidades de profissionais de saúde passaram a defender mudanças na saúde, culminando com a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976. Em termos internacionais, a Organização o Mundial da Saúde estabeleceu a meta de “Saúde para todos no ano 2000” e, no ano seguinte, em 1978, a Conferência de Alma-Ata, na URSS, elegeu a atenção primária como estratégia central para alcançar esse objetivo.
Outro marco histórico dessa mobilização social que ocorria no Brasil, denominada Reforma Sanitária, foi a criação, em 1979, da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). As proposições elaboradas naquela conjuntura, para além de uma reforma setorial da saúde, apontavam para uma democratização da vida social e do Estado.
O fim dos governos da ditadura possibilitou a realização, em 1986, da 8ª Conferência Nacional de Saúde, durante a qual se reafirmou o reconhecimento da saúde como um direito de todos e dever do Estado, recomendando-se a organização de um Sistema Único de Saúde público, universal, descentralizado e sob o controle social na formulação das políticas de saúde, no acompanhamento e na avaliação.
O movimento sanitarista brasileiro, apesar de limitadas bases políticas e sociais, obteve grandes vitórias na Assembleia Nacional Constituinte, que resultaram no texto constante na Constituição Federal do Brasil de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde de 1990 (Lei 8.080/90). Uma conquista tardia, considerando o contexto econômico mundial.
Frente antineoliberal
O desafio que se estabelece a partir daí para a estruturação do SUS consiste em construir uma força contra hegemônica aos princípios neoliberais reafirmados para os países da América Latina no Consenso de Washington (1989), que indicava disciplina fiscal, com redução de gastos e corte de pessoal; reforma fiscal e tributária para desonerar as empresas, além da privatização de estatais de modo a permitir o predomínio da iniciativa privada em todos os setores da economia.
Os princípios e diretrizes do SUS advindos do texto constitucional e a Lei 8.080/90 são muito consistentes e estruturantes, o mesmo, porém, não se pode dizer das fontes de financiamento. Revisitá-los nos ajuda a compreender as dificuldades concretas na garantia do direito à saúde, ainda mais em um contexto de enfrentamento à pandemia, quando a articulação das ações em saúde é fundamental para salvar vidas.
O princípio da universalização do sistema reafirma a saúde como um direito a ser garantido pelo Estado e não uma mercadoria. A equidade visa reduzir as desigualdades, compreendendo que as pessoas são diferentes, assim como as suas necessidades. Isso significa investir mais onde há mais carência. A integralidade é um princípio que amplia o conceito de assistência em saúde, pois considera a pessoa como um todo e aponta para a integração das ações, por meio da promoção da saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação. Pressupõe ainda a articulação da saúde com as demais políticas públicas.
A visão mercantil da saúde, que se expressa fortemente na oferta pelo mercado dos ditos “planos de saúde” ou “seguro saúde” (saúde suplementar), desconsidera tais princípios e são acionados, na maioria das vezes, apenas quando já há um processo de adoecimento em curso, sem ações de prevenção de doença ou promoção da saúde. E ainda o fazem com grande restrição de acesso tanto pelos valores exorbitantes das mensalidades, quanto pelas notas de rodapé nos contratos, que estabelecem carências e coberturas. Os “planos de saúde” empresariais, diferentemente dos individuais que são submetidos a alguma regulação no reajuste dos preços, ganharam muito espaço no último período e são os mais vendidos atualmente, pois estão livres para aumentar mensalidades, sem regulação pelo Estado.
Organização do SUS
Os princípios organizativos do SUS estabelecem que a gestão pública deve ser descentralizada, com distribuição de competências entre municípios, estados, Distrito Federal e União, e os serviços organizados por região geográfica (regionalização), com níveis crescentes de complexidade (hierarquização) e sob controle e participação da sociedade.
Obtivemos grandes avanços nos últimos 30 anos com a implementação desse modelo de assistência em saúde. Aumentamos a cobertura vacinal, reduzimos as mortalidades infantil e materna, estabelecemos uma política eficiente no enfrentamento da pandemia do HIV/AIDS, assim como avançamos na alta complexidade tecnológica, por exemplo, no transplante de órgãos. Grande parte dessas conquistas, deveu-se à mudança de uma visão hospitalocêntrica, voltada para a doença, para um novo paradigma voltado para a saúde e a atenção básica.
O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e a Estratégia Saúde da Família (ESF) têm sido indispensáveis nesse processo, pois estão mais próximos dos territórios, da população da área adscrita e fortalecem a Unidade Básica de Saúde como porta de entrada do SUS, mesmo diante do sub-financiamento crônico e da má distribuição regional de profissionais médicos, concentrados que estão nas regiões sul e sudeste do país, dificultando a formação das equipes da ESF. O financiamento do SUS sempre foi um grande obstáculo a sua estruturação. A Emenda Constitucional 29 e a Lei Complementar 141/2012 estabeleceram que os estados devem aplicar em ações e serviços de saúde o percentual mínimo de 12% da receita corrente líquida anual, os municípios 15% e o Distrito Federal 12% ou 15% a depender da fonte de arrecadação. Quanto à União, ficou como critério de piso o orçamento do exercício anterior acrescido, no mínimo, da variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior. Entretanto, a Emenda Constitucional 95 (EC95/2016) estabeleceu um novo regime fiscal no âmbito do orçamento fiscal e da Seguridade Social da União para um período de 20 anos, com isso o orçamento anual para a saúde passou a ser o orçamento do ano anterior, reajustado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Impôs, com isso, um teto aos investimentos sociais da União por um período de 20 anos!
Subfinanciamento crônico
O subfinanciamento crônico do SUS possibilitou a implementação de novos modelos de gestão já nos anos 1990, caracterizados pela transferência da gerência de unidades de saúde e de pessoal para Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundações ditas de apoio e no caso dos hospitais universitários, para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), sob o argumento de redução de custos, principalmente com recursos humanos, e desburocratização dos processos administrativos. Tal política dificultou a estruturação de uma equipe perene de trabalhadores em saúde, pois é causa da alta rotatividade na contratação de pessoal; retirou direitos dos trabalhadores pelo processo de flexibilização das relações de trabalho, que se aprofunda ao longo do tempo e abriu as portas para o desvio de recursos públicos.
Com avanços e recuos desde a criação, o SUS possui ainda muitos desafios para a estruturação, seja no que tange à ampliação do financiamento, incompatível com EC 95/2016, seja no tocante à formação e composição das equipes de trabalhadores em saúde e no combate à corrupção.
A pandemia da COVID-19 no Brasil e em diversos países tem explicitado as contradições e a face mais cruéis do capitalismo. As políticas neoliberais colocam o lucro acima da vida, desumanizam e favorecem o genocídio. O mercado, com a sanha pelo lucro, não tem uma saída para a crise que seja do interesse do conjunto da classe trabalhadora. Nos EUA, o número de pessoas que morreram em casa, sem assistência, aumentou enormemente no período da pandemia e muitos trabalhadores que sobreviveram estão pedindo falência pessoal após os gastos com o tratamento hospitalar.
Pandemia e saúde pública
Ao mesmo tempo, a pandemia demonstra a importância do Estado nacional de um sistema universal de saúde, como o SUS, assim como daqueles que estruturam as suas ações: os servidores públicos. Os acertos que tivemos na condução da política de saúde nessa crise sanitária, deveram-se, em grande parte, aos trabalhadores de carreira do SUS e os diversos erros, aos seus algozes.
Ao todo já foram identificados sete coronavírus humanos, sendo que dois deles já causaram pandemias no século 21 anteriormente à COVID-19, a SARS (2002- 2003) e a MERS (2012). Sabia-se que uma nova pandemia, muito provavelmente, seria causada por um novo coronavírus, mas não houve empenho nem tempo suficientes para que avançássemos na descoberta de uma vacina ou um tratamento eficaz contra a doença. Os cientistas e profissionais de saúde tiveram que aprender a lidar com a doença ao longo do processo de expansão da pandemia, fato que impossibilitou o salvamento de muitas vidas.
Para agravar as dificuldades inerentes ao processo, o governo federal no Brasil, na figura do presidente da República, buscou minimizar a doença e apontou uma “saída mágica”, por meio da indicação do uso em massa da hidroxicloroquina, sem que houvesse evidências científicas para isso. A postura negacionista e anticiência levou a duas trocas no comando do Ministério da Saúde, com grande impacto na condução da política de saúde nacionalmente, ficando a cargo dos governadores e prefeitos a busca pelas soluções possíveis.
Desarticulação a partir de cima
A desarticulação entre a União, estados e municípios pode-se perceber na linha de frente do atendimento aos doentes, com ausência de um protocolo de atendimento confiável, falta de equipamentos de proteção individual, de respiradores artificiais e medicamentos, além da carência de profissionais capacitados para atendimento em UTI. Esses fatores contribuíram para a alta mortalidade tanto de pacientes assistidos, quanto de trabalhadores em saúde que os assistiam. O Brasil é líder mundial em número de mortes de profissionais de saúde pela COVID-19.
O SUS, reconhecida a sua importância, poderia ter sido uma referência mundial no combate à pandemia, mas o sucateamento e os boicotes políticos limitaram muito as ações em saúde. O cenário futuro é incerto pelos riscos de diversas ondas de contaminação e mortes até à descoberta de uma vacina eficaz ou a obtenção da imunidade de pelo menos 70% da população. E a luta política deve seguir na defesa de uma rede de proteção social, que permita o necessário isolamento social, e na defesa do SUS, um importante conquista da classe trabalhadora.