José de Albuquerque Salles
Coube a mim, nesta troca de ideias, “o quadro da situação política, econômica e social da Rússia em 1917”, o que, como todos sabem, é mais complexo do que se pode fazer num simples artigo. Mais ainda agora, em que a abertura de fontes primárias, até recentemente “classificadas”, lançam novas luzes sobre estes eventos e seus protagonistas.
Por outro lado, já existem formidáveis obras publicadas por historiadores consagrados, como Moshe Lewin, Marc Fero, Tibor Szamuelly e Daniel Aarão Reis. Não tentarei repeti-las; além do talento, me falta a vontade, pois seria total carência de bom senso querer competir, em poucas páginas, com a riqueza de seus trabalhos.
Meus objetivos serão mais modestos. Contando com o bom coração dos editores, extrapolei um pouco o tema que me foi dado e, tentando oferecer algo com um mínimo de interesse, abordei a evolução do quadro e suas relações com a ação da vanguarda.
Os assuntos ligados a 17 me dizem muito, pois bem jovem morei lá pela primeira vez, falando o idioma, andando por onde queria, conversando com as mais variadas pessoas, desde o povão até dirigentes do Partido Soviético e da KGB, com intelectuais filiados ou não ao partido e até com a famosa Kantemírovskaia Divísia, responsável pela defesa de Moscou e as invasões da Hungria em 1956 e da Tchecoslováquia em 1968.
Menciono que, na época, infelizmente, só percebi parte da história.
Queria começar saudando a própria realização do debate e de forma tão democrática. Só um partido sério se propõe a analisar a gloriosa Revolução de Outubro com tal liberdade e critério.
“A Caesar, o que é de Caesar!”. Com pleno direito, esta Revolução se insere, de igual para igual, entre as grandes sagas/experiências da Humanidade, tais como as lutas milenares dos cristãos, judeus e muçulmanos por suas culturas e crenças, a resistência dos milhões de indígenas das Américas ao extermínio, a Revolução Francesa, a luta do povo vietnamita e outras poucas com tal significado.
Em se tratando do quadro da época, que peculiaridades contribuíram para a ocorrência de acontecimentos de tal magnitude e onde menos esperavam os mais credenciados teóricos da revolução mundial, inclusive os russos e os demais marxistas?
Em poucas palavras, frequentemente subestimamos a excepcionalidade do quadro formado e o ajuste fino de sua percepção pelos bolcheviques.
Foram fortes e mundiais as aragens da democracia e da revolução, nas décadas que antecederam 17. Debilitaram ou varreram da História impérios seculares, como o dos Habsburgos, o otomano, o russo, o chinês, o persa e o marroquino. Fortaleceram organizações social-democratas e revolucionárias. Resultaram, entre outros acontecimentos, em uma guerra mundial, após um século sem um conflito que envolvesse várias das principais potências, e contribuíram para a Revolução de Outubro, a República de Weimar, a revolução húngara de 1918 (Bella Kun) e nas Astúrias em 1934.
Como ensinaram Hilferding e, principalmente, Lenin, os monopólios que já existiam, em medida menor, desde os primórdios do capitalismo, passaram a exercer uma função qualitativamente diferente de estruturação/dominação da reprodução do capital, do relacionamento entre as potências imperialistas e destas com o mundo colonial.
Cresceram impetuosamente a população urbana e o número de pessoas que passaram a viver de salários. Estes fatos foram assinalados, na virada do século XIX/XX, pelo então jovem político conservador Winston Churchil, que preveniu o parlamento britânico que, se o sistema político conservador-liberal de dois partidos ruísse, ele seria substituído por um sistema político baseado em classes sociais. (Hobsbawm, The age of empire, p.113).
Como comentou Hobsbawm referindo-se a estes anos:“Há períodos quando toda a maneira com que o homem apreende e estrutura o universo se transforma em um curto espaço de tempo”. (Hobsbawm. Idem. p. 243).
Os desenvolvimentos revolucionários nas ciências naturais, com Plank, Einstein e outros, o desenvolvimento da geometria não euclidiana, a utilização de grandezas infinitesimais na matemática e o surgimento de novos campos do conhecimento abalaram a visão estável de mundo da burguesia florescente. “Tudo que era sólido, dissolvia-se no ar!” (Manifesto Comunista, Marx, 1848).
Talvez nada ilustre tão bem a crise de identidade por que passou a sociedade burguesa, neste período, como a história da arte de 1870 a 1914: tanto a criação artística como seu público perderam as referências. Mas por que outubro de 17 teria ocorrido justamente na Rússia?
Temos que começar pela constatação de que a milenar Rússia sempre foi pródiga em monumentais contrastes e era palco de poderosos fatores que a tornaram um dos “elos mais fracos” da cadeia imperialista. Desde a sua conquista pelos mongóis de Temugin e dos sábios Ogedei e Kublai, ao ressurgimento das antigas cidades, a Ivan Grozni (o Terrível), a Pedro Veliki (o Grande), até a muito longa, antidemocrática e contraditória dinastia dos Romanov. Ao lado do secular reacionarismo do regime, a bela Perspectiva Nevski, em Piter (como é chamada São Petersburgo/Leningrado, desde sempre, carinhosamente, por seus habitantes), antecedeu ao igualmente belo Champs Elysées.
Diversos historiadores consideram que a Rússia foi o país onde mais rapidamente se desenvolveu a economia nas últimas décadas do século XIX, em particular após o fim da servidão, em 1861, e da grande fome de 1891.
Nos últimos dez anos do século, a extensão das ferrovias dobrou e nos últimos cinco dobrou a produção de carvão, ferro e aço. Entre 1860 e o início do século seguinte, a colheita líquida de grãos aumentou 160% e a exportação se multiplicou por cinco a seis vezes. Com isto, a Rússia, que tinha uma produtividade na agricultura que era metade da norte-americana e de pouco mais de um quinto da inglesa, e utilizava grandemente a força humana, em relação à tração animal, passou a ser dos maiores exportadores de grãos do mundo. Simult aneamente houve a elevação de impostos cobrados na agricultura e um deslocamento de recursos da agricultura para financiar o início da industrialização moderna nas cidades. Tudo isto exigiu um imenso sacrifício dos camponeses, aumentou sua exploração e, em muito, seu descontentamento.
Conforme a ótima contribuição de Lenina Pomeranz, o autor Tibor Szamuely, em sua excelente obra The Russian Tradition, destacou como elemento importante do quadro russo do século XIX o excepcional papel democrático que desempenharam a intelectualidade, filhos de funcionários, camadas médias, militares, clérigos e até alguns filhos de nobres. Suas sucessivas gerações ficaram conhecidas como os Homens dos 40 ou “Geração dos Pais”, após o livro de Turgueniev, Pais e Filhos, os “Homens dos 60” ou “Geração dos Filhos”, e assim por diante, dos 60, 70 e 80. Chernichevsky destaca, com grande repercussão, em sua novela O que deve ser feito? a temática do revolucionário modelo, do homem novo, tão valorizada, um século depois, na construção da sociedade socialista.
Esta intelligentsia desempenhou um papel tão preponderante que contribuiu fortemente para que a atitude crítica em relação à autocracia se tornasse quase uma unanimidade nacional, excluída a direita. Todos os grandes autores, pintores e diretores teatrais, como Tolstoi, Dostoievski, Checov, Tchaikovski, Stanislavski, Kandinski e Malevitch se opuseram à autocracia.
Pessoas que em outros países europeus seriam de centro-direita, na Rússia de então se posicionavam pela democracia.
E era crescente o interesse pelo marxismo. Em sua obra The age of capital, Hobsbawm (página 263) traz a informação sobre a leitura da edição russa do Capital. Enquanto a primeira edição alemã (1867), de mil exemplares, levou cinco anos para ser totalmente vendida, os primeiros mil exemplares da edição russa (1872) foram vendidos em menos de dois meses.
Além das grandes mudanças internacionais e russas da segunda metade do século XIX, acontecimentos de transcendental importância ocorreram na Rússia nesses primeiros anos do século XX, restringindo imensamente o apoio e a área de manobra da autocracia.
O primeiro foi a guerra russo-japonesa de 1904/5. Em vez da esperada vitória, o czar sofreu vergonhosas derrotas terrestres e marítimas. O povo, que não apoiou a guerra, ficou revoltado com a inflação, o desabastecimento, a fome mesmo, dela decorrentes.
A revolução de 1905 também teve papel essencial.
Começando pelo fuzilamento de uma passeata pacífica em inícios de 1905, o movimento se desenvolveu em três intensas ondas de massas ao longo daquele ano.
Surgiram os comitês locais e por profissão, os sovietes, que rapidamente se multiplicaram.
O czar se viu obrigado a lançar um hábil manifesto onde falava pela primeira vez em uma assembleia representativa e na liberdade de palavra e de organização. O manifesto conseguiu dividir o movimento e quatro Dumas/assembleias se sucederam com limitadíssimos poderes. De toda forma, a revolução de 1905 foi uma riquíssima experiência política e organizativa para os trabalhadores russos.
Ainda foi realizado um arremedo de reforma agrária, numa tentativa de formar uma camada média rural, típica do capitalismo.
A participação da Rússia na Primeira Guerra foi, ao mesmo tempo, uma forma de enfrentar a falta de apoio interno à autocracia e uma reação eslava à ocupação pelos alemães dos Balcãs, com risco de prejuízo para o comércio exterior da Rússia, que escoava pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos.
Com apoio popular inicial e algumas vitórias contra austríacos e italianos, a guerra, com suas sangrentas e humilhantes derrotas face aos alemães, trouxe imensos problemas para a sobrevivência da autocracia.
A inflação, o desabastecimento e a fome nas cidades, as perdas de milhões de soldados, que eram os camponeses fardados, a falta de alimentos e armas nas frentes da guerra, tornaram insustentável a situação do czar.
E, neste processo, veio a ocorrer um caso exemplar de quando os de cima não conseguiam continuar dominando, como vinham fazendo, e os de baixo não mais aceitavam que assim continuasse. O czar se viu obrigado a renunciar e o príncipe Miguel achou mais prudente não aceitar a sucessão.
A Revolução de Fevereiro de 17, sem que nenhum partido a tivesse programado, foi sangrenta e a quarta Duma, meio a contragosto, assumiu o poder, sem, contudo, proclamar a república até setembro.
Foi concedida a anistia, declarado amplo direito à organização e à palavra e … nada mais foi feito. Foi tudo adiado até a vitória na guerra. Com isto, o governo provisório selou seu curto e instável destino.
A história de 17 foi a da transformação da Rússia autocrática no país mais democrático da Europa, a da não solução dos crescentes problemas do povo, a da crescente radicalização e exponencial organização das massas de operários, soldados e camponeses, a da crescente estruturação da hegemonia dos bolcheviques. E das sucessivas crises do regime e o ulterior aguçamento das contradições.
Os partidos procuraram contribuir para a organização do povão, mas a imensa vaga de sovietes e de outras organizações de diversos tipos que se formaram não se subordinava a partidos políticos, nem a suas próprias federações ou organizações nacionais, não tendo sido tampouco o resultado de uma ação organizada por qualquer deles, como bem observa Daniel Aarão Reis.
O número crescente dos conflitos no campo, que constituíam em sua maioria ocupações de terras, dava a medida da revolução agrária realizada localmente pelos próprios camponeses: em março de 17, foram 49; em abril, 378; em maio, 678; em junho, 988; e entre 1º de setembro e 20 de outubro, foram 5.140 conflitos (conforme Daneil Aarão Reis, as revoluções russas e o socialismo soviético, 2003, Editora UNESP. pág.63).
Impulsionadas por estes fatores, amadureceram no quadro político de 17 as condições para uma nova crise revolucionária. No entanto, esta situação não evoluiu linearmente, e sim com avanços e recuos, com seguidas crises.
No desenvolvimento do quadro econômico, social e político de 17, a atuação dos bolcheviques teve decisiva influência.
A importância desta atividade foi ainda maior, pois se apoiou no essencial do método de Marx, a análise do novo que brotava a cada dia. Mais nesta análise do que na repetição de afirmações do fundador do marxismo em relação à possibilidade da revolução socialista em um só país, como a Rússia. Como a conjuntura não evoluiu linearmente, também as bandeiras dos bolcheviques não avançaram permanentemente, como se imagina, para posições cada vez mais radicais. Quando chegou à estação Finlândia, Lenin encontrou a direção local, em particular Kamenev e Stalin, em posição diferente da sua e considerando que a posição leninista de articular proximamente a revolução democrática com a socialista era só um sonho da emigração afastada da realidade russa (já então começavam a emergir as divergências entre a posição de Lenin e a de Stalin, que posteriormente se desenvolveram com extraordinário vigor em torno da questão da Constituição da URSS, do burocratismo e das nacionalidades, nos últimos anos da vida de Lenin (conforme LEWIN, Moshe, em Lenin´s last strugles). Em julho, face à derrota da aventura militar de Kerenski, quando os trabalhadores e soldados das guarnições da região de Petersburgo (já haviam tirado o “São” do nome) se entusiasmaram pela tomada, já, do poder; os bolcheviques foram firmes em demonstrar que seria prematuro. Neste mesmo mês realizou-se o sexto congresso bolchevique, na clandestinidade, e Trotski e Kamenev foram presos. Neste congresso, não se retirou a bandeira de “todo o poder aos sovietes”, mas está passou a ter um papel mais discreto.
Ao mesmo tempo como reflexo desse quadro em evolução e de uma brilhante flexibilização da tática bolchevique, três resoluções do Comitê Central, em 6, 12 e 13 de setembro, respectivamente, enfatizam orientações diferentes, “Sobre os Compromissos”, “Os bolcheviques devem assumir o poder” e “Marxismo e Insurreição” (Daniel Aarão Reis. Manifestos Vermelhos. 2017, Companhia das Letras, pág. 44).
Para a evolução do quadro culminando com a vitória de outubro, foi indispensável, já em setembro, ter sido compreendido que a insurreição armada seria a única forma adequada de luta para a vitória da revolução.
Importante assinalarmos, para posterior reflexão, que, na preparação concreta da insurreição, Zinoviev e Kamenev, que tinham se manifestado contra sua realização no Comitê Central, decidiram denunciá-la publicamente. E o tratamento dado pelo CC a este ato de indisciplina se limitou a uma crítica, não os afastando do partido, nem mesmo da direção.
Cabe ainda assinalar que, diferentemente do que se pensa e se diz comumente em relação ao quadro de 17, ambas as revoluções, embora não tenham sido resultado de eleições, nem de decisões de órgãos eleitos com estes poderes, foram amplamente democráticas. Não acrescenta muito chamar qualquer das duas de golpe de estado, e isto principalmente porque representaram os interesses mais profundos do povo, explicitados por múltiplas manifestações. E uma diferença que normalmente se esquece é que a Revolução de Fevereiro foi sangrenta e a de outubro, praticamente não. Segundo Lenin, “mais leve que levantar uma pluma”. A tomada do Palácio de Inverno se deu no dia seguinte da ocupação, quase sem luta, dos principais órgãos do Estado, e com uma resistência escabreada e logo vencida.
Com esta capacidade de ajustar talentosamente sua política à evolução não linear do quadro, os bolcheviques passaram, de minoritários nos principais sovietes e congressos de operários, soldados e camponeses, a ser a força hegemônica neles e a estruturar uma aliança com os movimentos nacionalistas não russos. Passaram, em pouco tempo, de um pequeno partido de poucos milhares de membros a um partido de massas com centenas de milhares de militantes.
O programa multilateral que representava os interesses de uma ampla frente de classes e camadas foi indispensável para o apoio quase unânime à Revolução logo no dia seguinte à insurreição, no 2º Congresso dos Sovietes de Operários e Soldados, e para sua boa relação com os movimentos nacionalistas. Esta competente iniciativa realçou o caráter radicalmente democrático de outubro de 1917.