Amauri Soares
Pela natureza de classe das instituições, pelo abismo econômico e social existente na nossa sociedade e pelos quase quatrocentos anos de escravidão, o universo da segurança pública é marcado pela naturalização da violência, pela construção continuada de ódio e pelo sentimento de injustiça.
Sem entender a natureza das instituições às quais pertencem, muitos policiais passam a nutrir ódio e desprezo em relação aos setores sociais pobres onde vão atuar, e sua ação descamba para mais violência. Eles também são vítimas dessa violência que reverbera e contradita.
Um ambiente assim, torna-se propício para o desenvolvimento de milícias. E uma pergunta se impõe: como esperar que as vítimas de qualquer tipo de violência sigam confiando no poder público? Como esperar que aceitem a tese de que o Estado é muito punitivista e que é necessário diminuir o número de presos? É nessa dolorosa curva que nós da esquerda perdemos o debate para a direita, inclusive para a extrema direita, que promete institucionalizar e colocar na lei os métodos milicianos. Nos bairros empobrecidos é mais barato pagar a milícia do que pagar imposto. E a milícia cumpre o que promete.
O estabelecimento da milícia
policiais corruptos com setores da sociedade dispostos a pagá-los para fazer justiça com as próprias mãos, com o respaldo de autoridades influentes nas esferas de poder.
Não existe milícia sem três elementos:
1 – Policiais que se corrompem, desviando-se da função pública para ganhar “um por fora”, com o uso do cargo e dos instrumentos de trabalho;
2 – Setores da classe média ou da pequena burguesia dispostos a pagar “um por fora” a policiais corruptos para eles “limparem a área”, ou seja, expulsarem ou matarem pessoas indesejadas na região que esses setores atuam;
3 – Autoridades das instituições e dos poderes do Estado.
A composição com dois desses elementos (policiais corruptos e setores sociais dispostos a pagá-los) existe há muito tempo no Brasil, e não chegava a adquirir a influência que passou a ter nos últimos anos ou décadas. Faltava o terceiro sujeito social para formar o que no Brasil de hoje se chama de milícia, e este elemento veio de dentro dos aparatos de poder do Estado, seja de dentro das próprias instituições de segurança, das esferas de governo dos estados, ou de instituições federais, como deputados, senadores etc., ou de todos esses lugares ao mesmo tempo.
Cobertura institucional
Com a participação de autoridades na partilha e cobertura institucional para o “negócio”, policiais corruptos se tornaram mais poderosos e passaram a intimidar todos os comerciantes dos bairros a “participar do rateio”, ou seja, pagar tais policiais e a organização criminosa que os protege. Se antes alguns poucos comerciantes pagavam os profissionais de segurança para trabalhos específicos ou para patrulhas mais frequentes e havia um pacto de silêncio entre eles porque as corregedorias das instituições algumas vezes apuravam e puniam, agora, com o respaldo de autoridades, essa estrutura se generaliza e se expande.
Diversos outros setores das comunidades onde a milícia se instala passam a ser coagidos a pagar uma espécie de imposto para ter a “segurança” que só a milícia pode oferecer.
Esse arranjo de policiais corruptos e autoridades se torna o elo dominante da milícia, privatiza as funções do Estado segundo o interesse financeiro e eleitoral do próprio grupo, e constitui uma espécie de “Estado paralelo” por dentro do próprio Estado oficial.
O “Estado paralelo” dos traficantes tinha uma tênue influência dentro das instituições de segurança, pagando propina para alguns policiais. A milícia é muito mais poderosa, pois está bem instalada nas esferas de poder do Estado e tem capacidade até para subordinar o poder do tráfico, que por vezes combate e por vezes se torna sócia majoritária, passando a gerenciar também o tráfico de entorpecentes e de armas em algumas regiões. Exemplo disso, viu-se na apreensão de 117 fuzis feita na casa de um dos presos por executar Marielle Franco e Anderson Gomes. Uma apreensão desse porte indica um esquema bem organizado de tráfico internacional de armas.
Cabe destacar, antes de prosseguir, que milícia é o termo brasileiro para definir a organização criminosa descrita acima. Em outros países, esse termo é usado para definir organizações sociais ou militares com objetivos diferentes, e até mesmo com filosofia oposta.
Precisamos entender por que perdemos o debate da segurança na sociedade, destrinchar todos os motivos que levaram Bolsonaro a ser eleito presidente da República e eleger quase todo mundo que lhe copiou na ignomínia. Precisamos achar uma forma diferente, mais didática, para apresentar nossas posições sobre as questões de segurança pública e reverter a situação sem abrir mão das nossas posições.
Desmilitarização das polícias
A desmilitarização das polícias é um elemento importante nas políticas de segurança, pois não faz sentido existirem estruturas militares, com códigos militares, filosofias militares e treinamentos militares para realizar uma função que não é militar.
Segurança pública não é uma função social militar porque a sociedade, e parte dela que se coloca em confronto com a lei, não deve ser considerada como inimigo a se combater.
Segurança pública não deveria ser combate. Deveria tratar de localizar os problemas de rompimento de conduta, identificar os promotores e, usando mais inteligência do que força, aplicar os recursos legais para normalizar as relações sociais em conformidade com os objetivos que interessam à maioria da população.
Diferentemente do que prega a extrema direita, é possível fazer isso até mesmo nos espaços sociais mais conflagrados e mais dominados pelas organizações criminosas. Nada justifica colocar tanques de guerra nas favelas, pois dentro dessas comunidades nunca teve um exército a ser aniquilado. Mesmo que várias dezenas de pessoas estejam armadas nas comunidades “dominadas pelo tráfico”, ainda assim, o que prepondera ali é uma maioria desarmada e sem condição de combater.
A maior parte das pessoas das comunidades empobrecidas não é favorável ao crime e gostaria que o Estado as ajudasse a resolver os problemas sociais e de segurança. Mas, à medida que a polícia atua como se todos fossem potenciais inimigos e usa métodos e técnicas de “combate” que acabam vitimando inocentes, toda a comunidade se volta contra ela.
Mas apenas desmilitarizar as polícias não resolve quase nada. Em diversas partes do mundo, polícias que não são militares atuam de forma parecida com a polícia brasileira. Aqui, as instituições não militares da estrutura de segurança pública estão se militarizando, na forma, no método e na filosofia. Isso vale para setores das polícias civil, federal e rodoviária federal e para muitos guardas municipais. Tem sido cada vez mais comum em quase todas essas instituições a criação de grupos de choque.
Militarização geral
Se defendemos a desmilitarização das polícias militares, uma posição correta, temos que perceber a ocorrência de um movimento inverso: outras instituições têm se militarizado. E agora estamos diante da ameaça de militarização de outros setores da sociedade. Mas chama a atenção especial, a militarização de escolas! A polícia que fracassou na missão de fazer segurança pública, colocou a culpa disso nas professoras e professores, e agora quer assumir a educação.
Essa desmilitarização não acontece porque as classes dominantes no Brasil as querem tal como são. Evidentemente há também o corporativismo das estruturas de comando das instituições, mas esse corporativismo tem apoio fundamental da classe dominante. A burguesia brasileira e parte da classe média alta nunca confiaram no povo brasileiro para realizar um projeto nacional de desenvolvimento. Ao contrário disso, sempre nutriu preconceito, ódio e medo em relação à maioria do povo trabalhador.
Numa sociedade com o nível de desigualdade social apresentada pelo Brasil, a classe dominante se protege atrás de instituições fortes, centralizadas, com capacidade operacional para massacrar o povo se este se rebelar contra sua condição social. Para massacrar o próprio irmão, os policiais precisam estar submetidos a um regime disciplinar de obediência cega, dentro de instituições nada democráticas. Essa é a condicionante principal para que as maiores instituições de segurança pública no Brasil continuem sendo organizações militares, subordinadas ao exército. É a forma mais prática para a classe dominante comandar a partir de cima, sem ter que fazer muitas concessões à classe trabalhadora.
Descriminalização das drogas
É necessário e importante desenvolver formas pedagógicas de mostrar à população que a defesa da descriminalização das drogas não está vinculada à defesa do uso de drogas. Não pode haver culto ao uso de drogas nos programas e na propaganda dos partidos de esquerda. Seria o mesmo que ter culto ao alcoolismo ou tabagismo.
Nossa defesa da descriminalização das drogas está baseada no fato de que a criminalização não resolveu e não pode resolver nenhum dos problemas relacionados à sua existência. Não é a proibição que impede as pessoas de usarem. A ilegalidade cria toda uma logística de produção e abastecimento ao arrepio da lei, potencializando a violência como forma de resolver as contradições da relação social e econômica. Nossa posição pela descriminalização das drogas deve estar acompanhada da informação e da compreensão sobre os efeitos nocivos à saúde.
É preciso descriminalizar, porque a política de combate, ao longo de todas as décadas passadas, provocou apenas mais violência na sociedade, e não impediu e não impede o uso massivo das drogas consideradas ilícitas. A “guerra às drogas”, como está provado, transformou-se numa guerra aos pobres.
A quantidade de drogas circulando e sendo consumida na sociedade só tem aumentado e os conflitos entre as polícias e os traficantes pobres têm provocado a morte tanto de crianças e jovens pobres quanto de policiais (também pobres). É irracional manter a atual política de “combate às drogas”, pelo simples fato de que o Estado não consegue ou não tem interesse de combater os grandes controladores desse comércio, que estão no sistema financeiro, nas instituições do Estado (inclusive no Congresso Nacional) e mesmo em setores de cúpula de instituições de segurança e de fiscalização.
Como explicar que uma quantidade imensa de drogas consideradas ilícitas entre todos os dias de caminhão, de navio e de avião em nosso país, e que o “combate” vá ser feito nas periferias das cidades? Não se previne o tráfico no atacado e depois se vai correr atrás, no varejo? Não seria mais óbvio perceber que as grandes quantidades só são produzidas, embaladas e distribuídas porque em alguns ou em vários locais da fiscalização os patrões do tráfico estão corrompendo funcionários e autoridades? São respostas que precisamos exigir das autoridades.
Menos cadeia e mais educação
Evidentemente estamos ainda longe do dia em que vamos convencer a maioria da população de que é preciso mudar a forma de abordagem sobre a questão das drogas em nossa sociedade. A descriminalização precisa vir acompanhada (quando não precedida) de um conjunto de outras políticas públicas para que o impacto da mudança das leis seja absorvido pelo desenvolvimento de políticas de acolhimento e de oportunidades para os jovens dependentes e ou funcionários do tráfico.
Muitos dos atuais praticantes do pequeno tráfico estão nessa função por ser a forma que encontraram para pagar o próprio consumo. Outros tantos pagam as drogas que satisfazem a sua dependência praticando pequenos furtos, enquanto outros adquirem armas e passam a praticar roubos mais violentos.
Descriminalizar as drogas é a forma de, em poucos anos, diminuir bastante a população carcerária, pois, como as estatísticas provam, uma grande proporção dos jovens que está presa ou é acusada de tráfico de pequenas quantidades, ou porque praticaram outros crimes para alimentar o vício.
Crimes mais graves, como homicídios praticados por conta de conflitos em virtude do tráfico de drogas, deixariam de ocorrer. Naturalmente, não se deve defender a liberdade de assassinos, mas descriminalizar as drogas iria contribuir também para a diminuição futura de homicídios.
Para essa mudança de política de segurança pública e inclusive de abordagem à questão das drogas, é necessário um conjunto de outras políticas públicas, na geração de empregos, na geração de renda, na educação e na cultura. A julgar que o trabalho hoje é alienado e faz pouco sentido para quem o realiza (salvo raras exceções), é difícil tirar um jovem do mundo das drogas e do tráfico (onde há violência, mas há também muita adrenalina e até um certo glamour) oferecendo um salário mínimo para ensacar produtos num supermercado.
É evidente que projetos na área da cultura, meio ambiente, esportes e educação demandam por recursos públicos, mas podem ter mais êxito. Precisamos convencer a sociedade, a começar pela classe trabalhadora, que diminuir a quantidade de pessoas presas não é sinônimo de ampliar a liberdade para a violência e a criminalidade, mas o contrário. E nós não estamos conseguindo fazer esse convencimento.
Cadeias e penitenciárias
Seria possível realizar trabalho de “ressocialização” de presos, se a finalidade fosse essa. Há um cinismo nas instituições do Estado e em camadas da sociedade quando se afirmar que o objetivo das prisões no Brasil seria ressocializá-los para que deixassem de delinquir. Esse é, na maioria dos casos, um discurso hipócrita, pois na prática as penitenciárias sempre foram construídas longe das vistas da sociedade, atrás de morros, em lugares sombrios para que a sociedade esquecesse da existência dessa condição social.
As penitenciárias ficavam, historicamente, um pouco para além dos leprosários em termos de segregação social. Depois, os leprosários foram desfeitos (felizmente), mas as penitenciárias permaneceram lá. Mas, mesmo que a política oficial seja de segregação social, algumas autoridades intermediárias, com apoio de servidores públicos interessados, apesar de tudo e de todos, conseguiram fazer trabalhos notáveis em algumas instituições carcerárias. Isso mostra ser possível melhorar muito as possibilidades de humanização e recuperação pelo menos de uma parte da população carcerária. Mas não há como se fazer em escala significativa, a não ser pelo investimento de muito mais recursos para o setor. Custa mais caro reeducar um adulto do que educar uma criança. A questão é outra vez o volume da riqueza socialmente produzida que se vai dispor em benefício da sociedade. Só os ignóbeis e ou ignorantes afirmam que isso é ajudar bandido em detrimento da sociedade, pois isso é ajudar a sociedade em benefício dela própria.
Mudanças estruturais
As resoluções duradouras para os problemas na área de segurança pública dependem de mudanças estruturais no conjunto das relações sociais brasileiras. É preciso uma sociedade sem desigualdades para se poder democratizar a fundo as instituições de segurança. Mas muita coisa se pode fazer, mesmo remando contra a maré, para mitigar os altos índices de criminalidade, violência e políticas de encarceramento.
O problema ficou maior, ou as soluções mais distantes, porque a maioria da população brasileira nesse momento, está se posicionando ao lado das políticas opostas às necessidades reais.
A maioria da sociedade brasileira está apostando na política de ódio como forma de diminuir os índices de criminalidade e de violência. Ou seja, acredita que matando, prendendo mais e por mais tempo, negando os mais elementares direitos humanos se vai diminuir a criminalidade. Essa é uma posição equivocada, inclusive porque em médio e longo prazos trará resultado oposto ao que diz pretender.
É preciso que os três níveis de governo (federal, estadual e municipal) invistam mais recursos nos serviços públicos essenciais, incluindo a segurança pública. Especialmente na segurança pública, os recursos precisam vir acompanhados da mudança de filosofia e de método. E não se trata de mudar só as polícias, pois todo o sistema de persecução penal e as demais estruturas do Estado precisam ser democratizadas.
Há três décadas achávamos que o estabelecimento de concursos públicos, o fortalecimento de aparatos como o Ministério Público e a Defensoria Pública poderiam nos tirar do fisiologismo, clientelismo e atraso das instituições do Estado. A operação Lava Jato e seus métodos mostram que estávamos errados, que esses institutos por si só não garantem a democratização. Foi de dentro dessas estruturas públicas e pela mão de uma geração de “concurseiros” que a classe dominante conseguiu promover um golpe de Estado, subordinar ainda mais o Brasil aos interesses do imperialismo, e normalizar o arbítrio como método.
Fim dos superpoderes
Numa próxima Constituinte, será necessário ter como referência que toda instituição pública, sem exceção, deva estar subordinada ao controle social, feito pelas bases da sociedade e não pelos integrantes dos aparatos de poder. É preciso quebrar os superpoderes de alguns segmentos dentro das instituições de justiça e segurança: desmilitarizar para diminuir o superpoder dos comandantes militares; extinguir o inquérito policial para acabar com o superpoder dos delegados; criar uma polícia desmilitarizada e com carreira única; submeter as prerrogativas de promotores e juízes ao controle social, desencastelando e dando transparência aos seus atos. O segredo necessário à investigação e ao processo, não atrapalha o controle social e a transparência em todos os outros aspectos.
O controle social deve valer para definir sobre a estrutura, os métodos e a prática de todas as instituições públicas, inclusive sobre o tipo de trabalho e quais os trabalhos que as polícias devem fazer. A polícia deve trabalhar subordinada às leis e ao controle social, em todos os lugares.
Aqui no Brasil, na iniciativa que ficou conhecida como “polícia comunitária”, o controle social foi impedido de prevalecer, pois prevaleceu o poder de mando dos comandantes e chefes das instituições de segurança. O choque principal dentro das instituições de segurança quando o assunto era “polícia comunitária” se dava justamente porque a maior parte dos policiais (especialmente dos comandantes) tinha medo do controle social que as comunidades buscavam exercer sobre o trabalho da polícia. Era comum os policiais pretenderem ter os Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs) apenas como instrumento para apoiar e informa-los sobre quem eram e como agiam os “delinquentes” dos bairros. Ou seja, no geral, a polícia queria as lideranças comunitárias como informantes e não como controle social.
Hoje, a polícia comunitária não vai além de manuais empoeirados em algumas prateleiras. Ela foi sabotada e enterrada, e tem prevalecido a política de ocupação militar, pela força, dos bairros pobres. Mesmo sabendo-se que parte dos policiais nasceu e cresceu nos bairros pobres, eles aparecem nesses territórios como se fossem uma tropa de ocupação estrangeira. Não tem solução para a segurança pública a não ser revertendo essa situação, não importa o quanto custe.
Só outros governos que não os atuais podem começar a fazer isso. Somente outra proposta de sociedade pode humanizar as relações sociais, o que inclui ter uma polícia educada ou reeducada para fazer segurança pública e não para ser capitão do mato do aprofundamento da segregação social.
A boa vontade dos policiais é necessária, mas não basta, pois além de boa vontade é preciso entender, “mesmo com o risco da própria vida”, que segurança pública deve ser a realização dos princípios estabelecidos pela declaração universal dos direitos humanos.