Milton Temer
Neste centenário da Revolução Bolchevique, duas questões se colocam para os que se veem atolados na maré de ceticismo e desesperança.
A vitória dos bolcheviques foi um raio em céu azul? Terá sido produto de acaso histórico num país atrasado e sem cultura política?
Ela tem valor referencial para os que entendem, hoje, ser fundamental a superação do regime capitalista, como forma única de a humanidade não caminhar para uma barbárie irreversível?
As duas questões podem ser respondidas simultaneamente. E com otimismo, a despeito do momento atual, obscuro e pantanoso, de ascensão de populismos de direita xenófobos e da ressurreição de ideologias que julgávamos definitivamente soterradas com a derrota do nazifascismo na II Guerra Mundial.
A Revolução de 1917 não foi produto de acaso ilógico e seus ensinamentos continuam pertinentes na conjuntura que atravessamos. Ela é produto de um longo processo de rupturas insurrecionais, daquilo que Marx e Engels deixaram claro no Manifesto Comunista de 1848, ao afirmarem que a história da humanidade é a história da luta de classes.
A Revolução Russa é o mais consistente capítulo de uma série que não se encerrou da longa caminhada de escravos, servos, povos colonizados, proletários, oprimidos e explorados em seus confrontos com patrícios, nobres, aristocratas e capitalistas.
A Revolução Francesa
Em 1789, o poder absoluto do monarca na França é abolido, a partir do ato simbólico da Queda da Bastilha. Mas o regime não é alterado em sua essência. Luís XVI perde seus poderes absolutos, mas é mantido numa espécie de monarquia constitucional. Amplia-se apenas o poder legislativo dos Estados Gerais, o parlamento pluriclassista que havia sido convocado pelo próprio Luís XVI após séculos de repouso forçado. Convocação imposta por pressão de segmentos da própria nobreza na busca de alternativas políticas e econômicas ao imobilismo do regime feudal ao desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais.
No entanto essa tratativa por cima, acordada pelo acerto de nobres e cleros, não era suficiente diante do que reivindicavam os participantes do Terceiro Estado burgueses, intelectuais e dissidentes do clero e da nobreza. Em 1792, pressionado pela aristocracia recalcitrante, Luis XVI parte para a cartada suicida da busca de apoio militar externo visando sufocar todo o processo e restabelecer o regime anterior. Terminou guilhotinado, abrindo o caminho para a proclamação da República, no mesmo ano.
É onde pontificam Robespierre, Danton, Saint Just, Marat, Desmoulin, numa primeira fase de iniciativas e propostas absolutamente renovadoras, antes que Danton mergulhasse em tenebrosas transações com os setores da burguesia que se aliavam com representantes do regime anterior para impedir o avanço do proletariado de então, liderados pelos jacobinos.
É dessa fase que retiramos o pensamento democrático mais avançado que a Humanidade tinha conhecido até então, elaborado por uma geração que beirava os 30 anos.
Estão lá, em discursos, resoluções e propostas da avançada Constituição de 93, apresentado por Robespierre, em aliança com essa vanguarda extraordinária, até hoje mantidos no terreno da esperança quanto à sua realização plena. De pronto, a ideia de que comercialização de alimentos só pode se dar com o excedente do que for destinado à garantia de sobrevivência de toda a sociedade; o conceito de lei não como instrumento de repressão social sobre os desprotegidos, mas como meio de punir o opressor, o agiota.
“Não lhes tiro qualquer lucro honesto, qualquer propriedade legítima. Só lhes tiro o direito de atentarem contra a de outrem. Não destruo o comércio, e sim a pilhagem do monopolizador; só os condeno à pena de deixarem seus semelhantes viverem”, bradava Robespierre na justificativa de estabelecer o caráter social da propriedade no texto constitucional.
Imposto Progressivo, democratização dos meios de comunicação (sim, mesmo com uma mídia artesanal, distribuída mão a mão). Pauta importante que convivia com propostas de democratização do parlamento e da própria democracia, com o controle social direto. Tratando tanto das sessões com galerias liberadas, quanto do salário dos parlamentares, do indispensável voto aberto e da imunidade dos mandatos.
Está lá no Preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos, proposta dos jacobinos: “A sociedade é obrigada a prover a subsistência de todos os seus membros; seja fornecendo-lhes trabalho, seja garantindo os meios de subsistir àqueles que estão impossibilitados de trabalhar”.
Esse conjunto de propostas, elaboradas meio século antes de Marx e Engels produzirem o Manifesto Comunista, nos permite compreender o ódio que a França burguesa sempre teve por Robespierre e Saint Just. Até hoje não há praça, rua ou lugarejo público de Paris homenageando esses gigantes.
“Ah, mas não se pode homenagear quem promoveu o Terror no processo revolucionário”, justificam os falaciosos do campo pós-moderno da esquerda. É a mentira transformada em verdade pela repetição caluniosa.
O Terror começa com o Comitê de Saúde Pública, proposto pelos moderados girondinos, sob a liderança de Danton. Sim, o Danton que Vajda transforma em mártir num de seus filmes. E que a burguesia francesa festeja, assim como os renegados de esquerda de todo o mundo.
E por quê?
Porque Danton é quem inicia o processo degenerativo da frente revolucionária ao se lançar em secretas transações com a aristocracia exilada. A aristocracia que os algozes de Robespierre, dentro da Convenção, viria a ser a aliada principal para o retrocesso do 9 Thermidor, de 1794, cuja primeira decisão foi a anulação da Constituição de 93, após a execução sumária de Robespierre e Saint Just.
Mas a restauração consequente das idas e vindas posteriores ao período napoleônico (que completa o ciclo de consolidação do Estado burguês, estendendo a queda do feudalismo ao restante da Europa) não calou definitivamente a consciência revolucionária do proletariado.
O século da I Internacional
Em 1830, em 1848 e na Comuna de Paris, em 1871, com ditaduras internas ou com auxílio estrangeiro ostensivo, a burguesia se viu obrigada a repressões e concessões crescentes como forma de garantir sua hegemonia, na França e na Alemanha, principalmente.
E o que tem a ver com isso a Rússia, distante e ainda sob o jugo da servidão no campo? Tudo. Não fosse apenas pela longa disputa do anarquista Bakunin com Marx, pela hegemonia teórica nos movimentos revolucionários na Europa Ocidental, mobilizações camponesas também chamavam a atenção do “Mouro” alemão. E Isaac Deutscher, o autor mais importante da Revolução Bolchevique, não minimiza: “A Revolução? É todo um século de trabalho revolucionário que a preparou”.
Sim, do começo do século XIX ao seu final, isso está muito bem relatado no “Revolução inacabada”, de Deutscher, historiador fundamental da empreitada bolchevique.
Primeiro, com os decembristas que se levantaram em armas contra o czar, em 1825. Oriundos de uma elite aristocrática intelectualizada, tiveram contra eles toda a nobreza parasita do czarismo. Era um momento de luta no campo, porque as cidades, pouco povoadas, tinham peso político pouco relevante.
Mas, como quase todos os revolucionários do século XIX, os russos não contavam com uma classe revolucionária em que se projetassem. Terminam batidos, sem avanços significativos.
Antes de 1850, novos revolucionários vanguardistas entram na rinha os raznotchinstsy, em sua maioria filhos de funcionários e padres, todos oriundos de uma burguesia que se afirmava muito lentamente. Por sua ação, obrigam o czar Alexandre II a ceder à pressão de uma aristocracia necessitada de alguma reforma, na sua pretensão de modernizar a agricultura, ou de se lançar na indústria e no comércio, sem os riscos de uma insurreição.
O czar decreta o fim da servidão no campo, isolando uma vez mais as vanguardas revolucionárias. Tratava-se, no entanto, de medida que, como a bolsa-família no Brasil, atenuava, mas não resolvia estruturalmente o drama. Os servos eram liberados, mas não tinham acesso à terra, que se mantinha sob propriedade concentrada. Ou seja; tinham que lutar, com meios parcos, por uma sobrevivência que, bem ou mal, a servidão lhe garantia.
Os narodniks, que surgiram na sequência, se empenham na tentativa de mobilizar esse campesinato para a revolta contra os grandes proprietários. Mas como a consciência social anda sempre mais lentamente do que a realidade social, esses camponeses se recusavam a seguir a vanguarda populista. E, não raro, entregavam seus quadros à polícia czarista.
É aí que passa a proliferar a ação vanguardista isolada dos revolucionários, com os sucessores dos narodniks, os narodnovoltosy, nos quais o terrorismo político substitui o populismo dos seus predecessores. Eles fariam a revolução pelo campesinato, e a despeito dele.
Nesse grupo, que não contava com mais de uma vintena de participantes, vamos encontrar o irmão mais velho e inspirador de Lenin, executado como um dos responsáveis pelo atentado que matou Alexandre III, em 1881.
Experiência frustrada do ponto de vista revolucionário, a ação desse grupo serviu de base para a produção teórica de Plekanov, Lenin, Martov e seus companheiros. Eles começam a entender que, com a industrialização que se implementava na Rússia, uma classe operária se juntava ao campesinato para formar a base social necessária ao desmonte revolucionário do regime czarista. E que, ou esses segmentos se integravam, ou não haveria extinção do regime czarista.
E não só em 1917 eles vêm à tona. Já em 1914, haviam dirigido lutas em barricadas nas ruas de Petrogrado, que não resultaram em ruptura revolucionária por conta da mobilização militar geral para a guerra que eclodia.
De fevereiro a outubro
Em 17 de fevereiro, o fim do czarismo era decretado. Mas o governo da parceria do príncipe Lvov com Kerensky se mantinha nos limites materiais e políticos do regime derrubado. Continuava subjugado pelo capital financeiro das potências europeias e mantendo toda a estrutura de classes que dava hegemonia à aristocracia e à burguesia nascente.
É quando chegam as Teses de Abril, em que Lenin, sempre racional, sempre preocupado em não sucumbir ao doutrinarismo estéril, surpreende seus camaradas com a proposta de preparação de uma ruptura insurrecional contra o governo conciliador.
O episódio final é mais que conhecido. A despeito de um contratempo com o truculento general Kornilov, que obrigou Lenin a um retorno à clandestinidade, em agosto, e das vacilações de Kamenev e Zinoviev futuros quadros da oposição esquerdista da direção revolucionária já no poder a revolução se concretizou. Todo o poder passou aos sovietes.
O que veio na sequência, uma prolongada guerra civil contra russos brancos apoiados por 17 exércitos estrangeiros, que terminou por eliminar toda uma geração de quadros do proletariado conscientes e consolidados, só veio a confirmar a solidez da proposta de Lenin.
A Rússia atrasada, dando os primeiros passos no processo modernizador burguês, se transformou na segunda maior potência do mundo, a despeito dos 30 milhões de homens e mulheres que perdeu durante a II Guerra Mundial, para além da destruição material de metade do seu território.
O que me permite concluir que o stalinismo, com seus crimes abomináveis, não foi a tragédia maior do chamado socialismo dito real. A estagnação política, ideológica e econômica do período Brejnev, com o fortalecimento de uma burocracia oportunista, autoritária e já se projetando no consumismo do capitalismo ocidental, tem uma responsabilidade bem maior na liquidação da URSS.
Mas os que veem aí o fim do socialismo ou a negação definitiva de uma sociedade livre e igualitária se enganam. Pois esse fim, eles anunciam desde o Thermidor da Revolução Francesa; com a restauração do segundo Napoleão, após 1848.
O socialismo, como alternativa salvacionista para uma sociedade ameaçada pela barbárie crescente, assim como sua fundamentação teórica elaborada por Marx e Engels, na sequência de Robespierre e Saint Just, sempre ressuscitará enquanto houver opressores e oprimidos, enquanto houver a burguesia em seu confronto permanente com o mundo do trabalho.
A despeito, portanto, de quaisquer vontades e anseios, continuam valendo as consignas do passado revolucionário pioneiro: “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!” Não tendes nada a perder, a não ser os grilhões explícitos, ou os mais dissimulados, gerados pelo avanço tecnológico sob controle do grande capital privado.