Gilberto Calil
A vitória do professor Pedro Castillo nas eleições presidenciais peruanas foi inegavelmente uma grande surpresa. Seu partido, o Peru Libre (que se autodefine como “marxista-leninista mariateguista” e como uma “esquerda do campo” que expressa o “Peru profundo”) tinha obtido 3,4% dos votos nas eleições parlamentares de 2020, seu melhor resultado até então. A principal liderança do Peru Libre, o médico e ex-governador de Junín, Vladimir Cerrón, viu-se impedido de concorrer, acusado de corrupção.
A atenção dos setores progressistas se dirigia mais ao Nuevo Peru, partido de centro-esquerda conduzido por Verónica Mendoza, que tivera 18,8% dos votos em 2016 e, em um contexto de profunda crise política, marcada por acusações de corrupção contra os principais partidos, despontava como alternativa viável para romper o longo domínio da direita sobre o poder político no país, ainda que já antecipasse compromissos com a manutenção de uma política econômica neoliberal.
No entanto, Castillo, em uma eleição muito fragmentada, despontou vitorioso no primeiro turno, com 18,9%, seguido por quatro candidatos de direita: a filha do ditador, Keiko Fujimori (13,4%), o “Bolsonaro peruano” Rafael López Aliaga (11,7%), o tecnocrata ultra neoliberal Hernando de Soto (11,6%) e o populista de direita Yonhy Lescano (9,1%). Verónika Mendoza, do Nuevo Peru, ficou apenas em sexto lugar, com 7.9%. O Peru Libre elegeu também a maior bancada, com 37 integrantes entre os 130 eleitos (28,5%).
Um continente em crise, um país em crise
A atual crise mundial impacta fortemente a América Latina. Há uma década, era possível distinguir três modelos de governos claramente distintos: os neoliberais conservadores (México, Peru, Colômbia), os governos progressistas social-liberais (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile) e os governos nacionalistas (Venezuela, Bolívia, Equador). As vitórias de Macri (Argentina), Piñera (Chile) e Bolsonaro (Brasil) sugeriam um deslocamento à direita. Mas logo a insurreição indígena no Equador, o estalido social chileno, o paro nacional colombiano e as vitórias eleitorais da centro-esquerda no México e Argentina mostrariam que a situação é mais complexa e que a crise impacta os diferentes projetos de gestão capitalista na região.
As políticas neoliberais, com ou sem “rosto humano”, produzem intensa instabilidade por todo lado, e a margem de manobra dos poucos governos nacionalistas é muito reduzida.
A pandemia agravou ainda mais a situação e produziu efeitos especialmente dramáticos no Peru, um país assolado pelo desmonte das já reduzidas políticas públicas ao longo da década de ditadura fujimorista (1990-2000) e das duas décadas de governos neoliberais e corruptos que se seguiram. É nesse quadro que o país contabiliza quase 200 mil mortes a maior média de mortes por milhão do mundo (5.865 em 31/7), mais de dez vezes superior à média mundial (542), fruto da insuficiência das políticas públicas e da crença insana da obtenção de “imunidade de rebanho” por meio da contaminação generalizada. A prisão de vários ex-presidentes acusados de corrupção e o suicídio de Alan García (do outrora progressista PARA Aliança Popular Revolucionária Americana) produziram uma crise orgânica, que se expressa no fato de que os quatro candidatos mais votados integram formações políticas recentes e no pior resultado da história do tradicional APRA, com os 9.1% obtidos por Yonhy Lescano.
Ecos de Mariátegui
Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, o incontornável livro de José Carlos Mariátegui (1894-1930), foi publicado há 93 anos e é considerado, com justiça, a primeira grande investigação marxista da realidade latino-americana. A crítica à debilidade e subordinação da burguesia peruana, a análise da fratura produzida entre a capital e o interior e entre o litoral e a sierra, e a reflexão sobre a importância do racismo e da questão indígena, estão entre os temas centrais da problemática matiateguiana, e sua atualidade salta aos olhos quando observamos a recente eleição peruana.
O resultado eleitoral expressa claramente a fratura entre o litoral e a sierra. O equilíbrio observado nos votos totais (50,13% para Castillo e 49,87% para Keiko, uma diferença de apenas 44 mil votos), desfaz-se quando observamos a distribuição regional. Keiko fez 64% no departamento de Lima (atingindo 85% no bairro abastado de Miraflores) e 67% em Callao. Lima e Callao concentram um terço do eleitorado, e deram a Keiko uma vantagem de 2 milhões de votos. Ela venceu com folga também no exterior, com 66%. No interior do país, no entanto, Keiko venceu, por margens mais reduzidas, em apenas sete departamentos (cinco deles litorâneos e dois amazônicos, enquanto Castillo venceu em 16 departamentos, quase todos na região andina, sendo que em nove deles teve mais de 70% dos votos: Puno (89%), Huancavelica (85%), Cusco (83%), Ayacucho (83%), Apurimac (81%), Moquegua (73%), Tacna (73%), Cajamarca (71%) e Madre de Dios (71%). Em alguns distritos, ultrapassou 95% dos votos.
Para além das divisões Lima X Interior e Litoral X Sierra, observa-se também uma expressiva diferença no interior das províncias entre as cidades maiores e a zona rural. Em Arequipa, por exemplo, embora Castillo tenha vencido com 65% no departamento, obteve apenas 41% no distrito capital. Claramente, portanto, a vitória de Castillo é produto do voto andino, indígena e rural. Uma candidatura ausente das redes sociais e praticamente desconhecida dos limenhos, que surpreendeu a “sociedade civil”, mas que conseguiu se identificar com o “Peru profundo”.
Matiátegui apontava que a elite limenha e os setores médios urbanos desprezavam profundamente a identidade indígena, e isso comprovou-se uma vez mais com a escalada de manifestações racistas que pretendiam desqualificar os eleitores de Castillo como ignorantes e ineptos. Castillo foi capaz de produzir uma forte identificação simbólica com esses setores, além de expressar suas reivindicações concretas em um programa que se apresentava como nacionalista radical, ainda que isso tenha sido amenizado no segundo turno.
Vitória eleitoral, luta pela posse e novos impasses
O segundo turno colocava dificuldades adicionais. O peso eleitoral de Lima e Callao, a unificação das candidaturas de direita em torno da filha do ditador e uma agressiva campanha anticomunista dos principais meios de comunicação fizeram diminuir uma vantagem que era expressiva nas primeiras pesquisas. Não faltou sequer um estranho atentado atribuído ao Sendero Luminoso, utilizado pela grande mídia para ampliar o pânico contra Castillo.
Nesse contexto, a alternativa que restava para tentar minimizar a diferença pró-Keiko nas maiores cidades era a aliança com o Nuevo Peru. Para isso, Castillo teve que assumir uma série de compromissos, moderando o programa econômico e aceitando a indicação de um economista vinculado ao Banco Mundial (Pedro Francke) como Assessor Econômico. Já então alguns críticos indicavam que a vitória de Castillo poderia produzir um governo de continuidade neoliberal.
A escassa margem de votos da vitória de Castillo no segundo turno colocou no cenário a possibilidade de um golpe, explicitamente defendido por Keiko, e que poderia se concretizar com a anulação de algumas atas eleitorais do interior. Tal contexto pressionava Castillo a novos recuos para garantir “governabilidade”, mas foram as mobilizações campesinas por todo país que inviabilizaram a concretização da ruptura institucional. A ofi cialização da vitória se deu em 19 de julho, apenas nove dias antes da posse.
Permanece, no entanto, a questão chave: é possível efetivamente romper com o neoliberalismo, ou a “governabilidade” impõe como limite um neoliberalismo com rosto humano, nos moldes do social-liberalismo? Pedro Francke foi indicado Ministro da Economia, e a composição do governo parecia confirmar um recuo das posições mais radicais. Porém, de última hora e surpreendendo muitos de seus aliados, Castillo nomeou um primeiro-ministro tido como radical, Guido Bellido. Parlamentar do Peru Libre e politicamente próximo a Vladimir Cerrón, Bellido foi ferozmente atacado, não apenas pela direita peruana e pela grande mídia, mas também por muitos aliados de Castillo, como se vê na cobertura hostil do diário progressista La Republica e, sobretudo, na momentânea recusa de Pedro Francke e de Aníbal Torre (indicado para o Ministério da Justiça) em tomarem posse, em repúdio à escolha de Bellido.
Para além de críticas justas a declarações machistas e homofóbicas de Bellido, o que parece estar em jogo é se o governo Castillo vai se atrever a realizar nacionalizações e taxar o grande capital, ou se vai se subordinar aos que pretendem conter o governo nos marcos do social-liberalismo.
Em um continente marcado, uma vez mais, pela ascensão de lutas sociais, os resultados dessa disputa no quarto país mais populoso da América do Sul impactarão todo subcontinente.