Por Pedro Charbel*
Cria do Grajaú, extremo sul de São Paulo, Guilherme Simões tem uma trajetória ligada à transformação social de quase duas décadas. Coordenador nacional do MTST, maior movimento social urbano do país, e militante do movimento negro periférico, Simões tem contribuido com a expansão e fortalecimento da luta urbana e anti-racista em todo o Brasil.
Em 2023, no âmbito do Ministério das Cidades, tornou-se o primeiro Secretário Nacional de Periferias do governo Lula, sendo responsável pela articulação de políticas públicas para a melhoria da qualidade de vida nas periferias. Como sua entrevista à Jatobá revela, esse esforço tem se dado de modo indissociável do combate aos efeitos desiguais da crise climática, marcadamente no que diz respeito à redução de riscos.
Pedro Charbel: A realidade da vida nas cidades brasileiras mostra que a questão climática não é algo distante e que seus efeitos são sentidos de modo desigual por quem menos contribui para ela, marcadamente as pessoas mais pobres, negras e periféricas. Ainda assim, recorrentemente, o debate sobre crise climática parece ficar muito distante dessas populações. De que modo colocar a periferia no centro do debate contribui para uma abordagem mais popular e transversal para a crise climática? Que papel a Secretaria de Periferias tem tido nesse sentido?
Guilherme Simões: A criação da Secretaria de Periferias vem acompanhada de um desafio importante de atualizar a leitura sobre o que são as periferias urbanas no Brasil e quais são as suas principais necessidades. Nesse sentido, foi muito feliz a escolha do governo de alocar, dentro da Secretaria de Periferias, a agenda de prevenção de riscos – uma agenda que comumente estaria num outro espaço institucional. Isso aponta para o papel que esses territórios, suas populações, e as próprias políticas públicas para esses lugares, têm quando o assunto é emergência climática.
A crise climática não é um problema do futuro, como muita gente vinha projetando até pouco tempo, não é sobre “vamos viver uma crise”, ou sobre “o aquecimento global vai mudar a realidade em algum momento”. Nós já estamos vivenciando isso, e os últimos anos foram de bastante comprovação de que a emergência climática é um dado da atualidade. Ao mesmo tempo, a discussão do combate às desigualdades não é um tema passado. Tem gente que também insiste nessa ideia equivocada de que o combate à desigualdade é uma agenda ultrapassada, é populismo, é extemporâneo. A própria pressão do mercado para controlar as políticas sociais tem o princípio de que o combate à desigualdade é um tema secundário, antigo. Não é. Nem o combate à desigualdade é tema do passado, nem a emergência climática é um tema do futuro: ambas são agendas extremamente atuais, contemporâneas e que precisam andar juntas.
Quando a gente fala de adaptação climática, de resiliência e da própria emergência climática, nós estamos falando de uma atualidade em um contexto sócio-histórico e socioeconômico, em que os principais atingidos pela emergência climática são justamente aquelas populações mais empobrecidas, vulnerabilizadas, que vivem, de modo geral em nosso país, nas periferias dos grandes centros urbanos. Então, nada mais oportuno do que a gente discutir e enfrentar a crise climática a partir da perspectiva das pessoas que vivem nas periferias.
Charbel: O que isso significa na prática? Que tipos de diálogos e formulações vocês têm desenvolvido com as pessoas que estão vivendo nesses territórios e já transformando e adaptando esses espaços?
Simões: Os agentes coletivos e organizados nesses territórios possuem acúmulos que são muito importantes. Assim como nas terras indígenas ou nos territórios quilombolas existem saberes ancestrais que ajudam a conduzir ou elaborar políticas menos conflitivas com a natureza, também nos territórios periféricos existe um saber acumulado, um saber da resiliência, que tem muito a ver com a forma como essas populações lidam com o avanço da crise climática à revelia de uma atuação historicamente tímida, para não dizer outra coisa, do Estado. Essas populações estão vivenciando o avanço da crise climática ao longo dos anos, e elas estão também, de alguma maneira, se adaptando, construindo formas de lidar com esse avanço.
A Caravana Periferia Sem Risco tem sido uma estratégia importante de escuta e aproximação dos territórios nesse sentido, de conhecer pequenas intervenções que a própria comunidade realiza para lidar com os problemas de alagamento, por exemplo. Temos que incorporar essas iniciativas que acontecem nos territórios, que já estão acontecendo e ganhando cada vez mais força. É essencial valorizar esses saberes e incorporá-los na política para sair daquela política de cima para baixo que estamos acostumados no Brasil, pensada nos gabinetes, em forma de planilhas, de números, de equações, que desconsideram muitas vezes as pessoas e as relações sociais, sobretudo em territórios tão dinâmicos como esses. Eles crescem muito rápido, mudam muito rápido, então não é possível pensar uma política num ciclo de um ou dois anos, depois ir lá e implementar de cima para baixo. Enquanto tudo isso está sendo pensado e elaborado, as coisas já estão acontecendo e estão mudando no território.
Evidentemente que considerar esse saber prático, do território, não significa desconsiderar o saber técnico, científico, acadêmico. Temos que fundir bem esses acúmulos para construir política pública. Fazer isso torna a política mais eficiente e também aproxima o poder público do território, da população, e isso é fundamental. Afinal, hoje em dia, infelizmente, nós vivemos uma crise institucional, uma crise da relação entre o Estado e a sociedade, especialmente em territórios mais empobrecidos. Então qual é a forma da gente se reaproximar? A participação social, sim, mas a participação social que considera de fato o que está sendo feito, e não só uma escuta formal.
Charbel: Os Planos Comunitários de Redução de Risco são um exemplo disso?
Simões: Sim, acredito que os Planos Comunitários de Redução de Risco e Adaptação Climática são uma das grandes inovações que a gente está construindo. Uma formulação, elaboração e metodologia desse tipo de plano não existiu a nível federal. Em outras instâncias, de alguma maneira, de forma mais ou menos rudimentar, de forma mais ou menos incipiente, existem experiências, mas a gente está tentando criar uma média de acúmulos para que isso possa ser oferecido como política pública. Agora, em parceria com universidades públicas, estamos desenvolvendo experiências piloto nesse sentido.
As pessoas, especialmente os agentes coletivos organizados, estão construindo uma realidade, estão construindo políticas públicas em potencial, que tem tudo a ver com a caracterização que se faz da crise climática nesses territórios. As pessoas estão entendendo a crise climática, estão percebendo que, ano após ano, o nível da água aumenta, o tempo da seca aumenta! E não estão entendendo isso porque o jornal está dizendo, ou porque foi ter aula em algum canto, mas porque a realidade está dizendo. Ao perceber isso, não ficam alheias, elas estão reagindo, construindo formas e se planejando coletivamente em muitos casos.
É claro que, do ponto de vista do papel do poder público, isso é complementar a outras ações, não se pode terceirizar o problema. Esses Planos Comunitários se combinam com estratégias mais “globais”, como no caso dos Planos Municipais de Redução de Riscos. Nestes, em cooperação técnica com a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e com gente que já ajudou a conceber essa outra estratégia, temos uma leitura dos territórios de acordo com seu grau de risco para a indicação dos tipos de intervenção necessárias. Em alguns lugares, aponta-se a necessidade de uma mega obra de engenharia, por exemplo; em outros, um mega paredão de contenção de encosta; ou identifica-se que cabe uma solução mais simples, que envolva mais a participação das pessoas, como uma escadaria hidráulica, por exemplo, um jardim filtrante, algo mais relacionado à adaptação de baixa complexidade, etc. Mas ainda que o Plano Municipal de Redução de Risco e o Plano Comunitário sejam estratégias diferentes, a participação social tem um peso muito significativo em ambas, e as duas se conectam de modo muito importante. O processo participativo permite uma melhor leitura territorial.
Charbel: Você citou alguns exemplos do que se convencionou chamar de Soluções Baseadas na Natureza, como jardins de chuva e escadarias hidráulicas. Além de mais orçamento, o que falta para esse tipo de iniciativa ocorrer em maior escala no país?
Simões: Temos que quebrar o preconceito de que esse tipo de intervenção seja rudimentar a ponto de não ter capacidade de ganhar escala, de ser uma política pública de peso. Por isso, foi uma grande vitória criarmos a ação orçamentária de soluções baseadas na natureza para as periferias. Embora não esteja no patamar que a gente deseja ainda, é uma grande vitória, justamente porque tende a estimular e induzir governos estaduais e municípios a adotarem essa mesma estratégia. E esse é o papel do governo federal.
O nosso desafio também é dar uma tinta no nosso contexto socioeconômico às soluções baseadas na natureza, já que esse termo não nasce aqui, vem de um debate de um contexto global. Por isso, a importância grande disso estar na Secretaria de Periferias, junto da agenda de combate às desigualdades e da agenda de resiliência climática de periferias. Nas periferias é onde as pessoas mais sofrem, mas é também onde nós temos mais condições de mobilizar recursos humanos para adotar as soluções baseadas na natureza com base em saberes locais, em saberes territoriais.
A gente já visitou mais ou menos uns 200 territórios periféricos no país todo, e tem crescido muito a mobilização em torno desse tema. Se mobiliza muito, especialmente os mais jovens, com diversos tipos de ações. Às vezes, são ações mais conceituais mesmo, de querer entender a crise, estudar, viajar, fazer intercâmbio… E muitas vezes são ações práticas: fazer um telhado verde, uma escadaria hidráulica… É sobre intervir na realidade com os recursos que se tem de forma organizada e crítica. Nesse sentido, o Prêmio Periferia Viva é muito interessante porque ele dá visibilidade a uma amostra de tudo isso. Premiamos 178 iniciativas, algumas delas estatais inclusive, para que se saiba que não é só a comunidade que faz esse tipo de iniciativa.
Charbel: E em relação a medidas estruturais, como o programa Periferia Viva encara a questão da crise climática?
Simões: Nesse caso, nós estamos falando de uma mobilização orçamentária significativa, mais de 7 bilhões de reais em obras de infraestrutura, sem contar ações complementares. E o grande diferencial aqui é justamente a articulação da perspectiva territorial, da participação e da integração das políticas públicas. Em geral, se elaboram políticas temáticas, setoriais, que muitas vezes têm uma dificuldade, de dialogar precisamente por isso. Com o Periferia Viva, nós estamos falando de uma política multissetorial, com uma perspectiva territorial, a partir do que as pessoas estão precisando, desejando, e de como elas estão interagindo com o território. A política territorial precisa ler o território, ajudar a diagnosticá-lo e aqui a questão climática é transversal. Combater as desigualdades nesses territórios é combater o racismo ambiental e a injustiça climática de modo geral. Urbanizar favelas, promover regularização fundiária, recuperação ambiental, dar o devido tratamento às encostas, integrar serviços públicos, e por aí vai, é combater a desproporção dos impactos dos efeitos da crise climática sobre as populações periféricas.
Charbel: Você comentou sobre a importância de dar contornos nacionais a certos debates que vem acontecendo a nível global, mas de que modo, no sentido contrário, a abordagem local e territorial pode contribuir com os espaços internacionais de negociação? Como foi a atuação da Secretaria de Periferias no contexto do G20?
Simões: Felizmente, a política de prevenção ganhou mais espaço nesse governo. Não preciso nem falar em comparação com o governo anterior, mas mesmo em relação aos governos do campo progressista de antes. Tem ficado evidente que isso é importante, mesmo do ponto de vista pragmático, é mais barato prevenir do que lidar com o desastre. É mais eficaz para a administração pública investir mais em prevenção do que só na resposta. Nesse sentido, temos atuado internacionalmente ao lado de nossos amigos da Secretaria de Defesa Civil, que é quem cuida da resposta. E foi assim que atuamos no G20, dentro do grupo de trabalho focado em redução de riscos, que foi criado no ciclo anterior, sob a presidência indiana.
Com a presidência do Brasil neste ano, houve um grau de prioridade importante nesse tema. E a gente propôs uma priorização que foi assentida pelo grupo, que é o combate às desigualdades para redução de vulnerabilidades, entendendo justamente esse conceito que a gente está trabalhando. O combate à desigualdade é uma forma importante de reduzir riscos, é uma forma fundamental de mitigar os efeitos de eventuais desastres, de lidar com os efeitos da crise climática. Ou seja, quanto mais acesso a direito as pessoas têm, mais moradia digna, mais as políticas públicas são acessíveis para essas populações, menos suscetível a risco e, portanto, menos passível a desastres advindos de eventos climáticos essas pessoas estão.
Nós conseguimos construir o consenso ao redor dessa proposta, o que embalou uma declaração ministerial inédita a partir dessa prioridade. Foi uma grande conquista para nós, e do ponto de vista diplomático, mostra que o Brasil é um país atualizado no tema. Do ponto de vista global, para se discutir crise climática, é preciso que o Brasil esteja sentado à mesa e temos posições importantes e autênticas como essa. Quando nós estamos falando de combate à desigualdade, nós estamos falando justamente de levar direito para as pessoas que, historicamente, têm esses direitos negados, e essa é uma contribuição importante para os debates internacionais.
*Editor-Chefe da Jatobá.
**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.