Nas cidades, transições sociotécnicas rumo a um sistema de baixo carbono devem ser socialmente justas. No entanto, a pouca articulação na implementação de políticas habitacionais, de transporte e ambientais nos distancia desse horizonte
urante o regime ditatorial, o planejamento urbano centralizado não permitia às cidades o controle do planejamento no território, o que intensificou a geração de grandes periferias nas grandes cidades. Com a Constituição de 1988, os municípios passaram a ser responsáveis por esse planejamento, o que inclui questões relativas a habitação, transporte, infraestrutura e meio ambiente. O olhar segmentado para cada um destes setores, no entanto, marca as políticas públicas até os dias atuais e dificulta o desenvolvimento de realidades urbanas menos desiguais e mais harmônicas com o meio ambiente.
Nas cidades, transições sociotécnicas rumo a um sistema de baixo carbono devem se dar a partir de uma interação entre tecnologias, infraestruturas, ciência e política, e devem ser, necessariamente, socialmente justas. A pouca articulação na implementação de políticas habitacionais, de transporte e ambientais, no entanto, nos distancia desse horizonte e faz com que seja mais difícil promover melhorias reais na qualidade de vida das pessoas, especialmente daquelas que residem nas periferias urbanas.
O programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado em 2009, é exemplo disso. Em sua ideia inicial, há a previsão de implantação de redes de transportes e infraestrutura no entorno dos conjuntos habitacionais, mas, na maioria dos casos, isso não ocorreu. A nova versão do projeto tem a chance de corrigir falhas e aprimorar dispositivos que promovam essa necessária coordenação. De modo geral, o grande desafio é vencer a lacuna existente entre a ideia de transição e justiça social e as práticas de planejamento e gestão para implementação desses conceitos na vida cotidiana.
No campo da geografia urbana, já na década de 1970, o geógrafo inglês David Harvey ressaltou, em sua obra “A justiça social e a cidade”, que além do papel que os sistemas de transportes têm na organização e estruturação do espaço urbano, eles também podem reproduzir a segregação e a desigualdade social. Nesse sentido, é importante ressaltar que a falta de interdisciplinaridade nas estruturas institucionais que formulam as políticas de desenvolvimento urbano e que orientam as práticas de planejamento não apenas dificulta a promoção de uma transição justa, como também pode aprofundar a exclusão e desigualdade.
No caso da Política de Mobilidade Urbana (PNMU), ainda que se estabeleça o direito ao acesso universal à cidade, equidade no acesso aos transportes públicos e ao espaço urbano, o que se verifica é que os mais de 5.000 municípios brasileiros não têm os mesmos recursos técnicos e financeiros, e tampouco a mesma capacidade política e institucional, para aplicar suas diretrizes com êxito. Consequentemente, a exclusão social nos transportes é reproduzida indistintamente nos municípios brasileiros.
Apesar dessas dificuldades, é possível identificar avanços ao longo dos anos, como no caso da tarifa social, que estabelece a redução da tarifa dos transportes públicos para pessoas de baixa renda. Do mesmo modo, é válido ressaltar que as formulações ao redor da tarifa zero, originalmente discutida nos anos 1980 durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, em São Paulo, também têm ganhado fôlego. O transporte, assim como a moradia, a educação e a saúde, é um direito social que deve ser assegurado pelo Estado segundo nossa Constituição. Zerar tarifas é um passo importante para diminuir desigualdades e colabora significativamente com o objetivo de reduzir emissões de efeito estufa.
Nesse sentido, a Coalizão Mobilidade Triplo Zero, uma rede organizações e movimentos sociais pela mobilidade urbana sustentável e justa, tem como pedra fundamental de sua luta três pontos: 1. tarifa zero: como forma de garantir o direito à cidade e acesso às oportunidades; 2. zero emissões: a fim de garantir melhor qualidade de vida e saúde nas áreas urbanas e combater a contribuição do setor dos transportes urbanos para as mudanças climáticas; e 3. zero mortes por acidentes de trânsito: visando acabar com as mortes no trânsito por meio do aumento da segurança viária para todos os modos de transportes, em particular os mais vulneráveis, a pé e de bicicleta.
O Instituto MDT (Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte) lançou, em 2017, um manifesto pela criação do SUM – Sistema Único de Mobilidade Urbana Sustentável, inspirado no bem sucedido modelo nacional de saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde). A proposta visa consolidar o direito ao transporte público como forma de ampliar o acesso às oportunidades e consequentemente reduzir a exclusão social promovida pelos transportes. Além disso, entre as diretrizes do manifesto estão a integração entre planejamento urbano e planejamento da mobilidade como forma de reduzir o uso do transporte individual e, ainda, a transformação da frota de veículos públicos em “frota limpa”, com uso de combustíveis não poluentes e o estímulo aos transportes ativos visando o equilíbrio ambiental e respeito à saúde e à qualidade de vida.
Contudo, um dos maiores desafios para esses movimentos é a falta de articulação governamental entre os diversos níveis – municipal, estadual e federal – para implementação de planos e medidas estratégicas para a transição do atual paradigma de planejamento da mobilidade urbana. No âmbito narrativo, a PMNU, a Política Nacional de Habitação e a Política Nacional do Meio Ambiente apresentam coerência entre si, no entanto, isso não garantiu a produção do espaço de forma equilibrada e justa, e o território urbano segue, de modo geral, se configurando de forma excludente, desigual e insustentável do ponto de vista ambiental. Faltam mecanismos explícitos nas políticas para que a justiça social e ambiental seja devidamente contemplada nos processos de desenvolvimento urbano.
A falta de articulação entre os diversos setores que compõem o espaço urbano, em suas dimensões social, ambiental e econômica, se reflete tanto na configuração físico-territorial das cidades, quanto no seu acesso. A integração e coordenação entre as políticas públicas para os diferentes setores urbanos é fundamental para chegarmos a soluções reais às questões mais complexas da sociedade brasileira. Parte fundamental desse processo deve ser o reconhecimento dos interesses e saberes populares por meio da participação popular: a gestão democrática e o controle social são, talvez, primeiros passos necessários para que as políticas públicas possam de fato materializar a justiça social e promover maior harmonia com o meio ambiente.
Danielle A. Angelo
Graduanda do Programa de Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC (UFABC)
Priscila da Mota Moraes
Doutoranda do Programa de pós-graduação em Planejamento e Gestão Territorial da UFABC
Rafael Siqueira
Mestre do Programa de pós-graduação em Planejamento e Gestão Territorial da UFABC
Ricardo C. L. Ramos
Docente Assistente Mestre I da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie