Desirée Ramos Tozi
Oprocesso de impeachment da Presidenta Dilma, a violência escancarada contra as mulheres e o feminicídio crescente, o aumento da ofensiva do genocídio da população negra, a destruição acelerada do meio ambiente e a desterritorialização de povos tradicionais têm mostrado que precisamos enfrentar a história de violência do povo brasileiro. Precisamos investir em ferramentas de produção de novas narrativas e transformação de mentalidades, algo que se cria com políticas públicas eficazes, sistemáticas, contínuas e articuladas.
Uma nova mentalidade precisa vir acompanhada de lideranças que abracem a luta e o combate contra o racismo, o machismo, o sexismo e qualquer tipo de opressão. E novas narrativas vêm articuladas por campanhas, novas instituições e governos que tenham a capacidade de elaborar e implementar políticas que fomentem ações que nos permitam refletir, lembrar e superar as memórias da violência e dos processos traumáticos de tortura a que fomos expostos desde a “fundação” da Nação; a escravidão, as ditaduras, o racismo estrutural e sistemático.
Essas violências, que fomos naturalizando ao longo do tempo, tornando-as corriqueiras e parte do nosso cotidiano, trazem consigo marcas de nossas desigualdades e registram nos corpos a história de opressão a que a massa de trabalhadoras e trabalhadores nunca deixou de viver. As violências culturais que vivemos deixam registros simbólicos em nossa cultura material e no que se pode chamar de “infrapolítica”, termo cunhado por James Scott (2013), que são linguagens indiretas e secretas, desenvolvidas pelos oprimidos, para contestar o status quo sem a compreensão direta dos aparelhos de repressão. Essa infrapolítica se torna, muitas vezes, o que se convenciona chamar de “cultura popular”, expressões artísticas que os oprimidos utilizam – através da performance, da música e da imagem – para processar a experiência da realidade vivida, revivendo, por meio da cultura, memórias da dor e de formas de superação da condição do sofrimento. O registro da opressão através da cultura, expressa nos nossos corpos – como discutem Judith Butler (2019), Bell Hooks (2019), Lelia Gonzalez (2019), em suas obras magistrais -, traz a violência como linguagem e torna o corpo um objeto histórico e cultural.
Nessa perspectiva, o corpo se torna objeto de políticas de patrimônio e de memória, traduzindo esse olhar sobre ele como documento em iniciativas e programas que dialogam com a ideia de reparação histórica coletiva e individual. O objetivo é, assim, valorizar a experiência vivida e reparar os indivíduos que sofreram e sofrem os efeitos do racismo, do sexismo, do machismo, cujas existências limitam suas possibilidades de dignidade e bem-estar, como os mestres da cultura popular e dos saberes populares, as
lideranças de povos e comunidades tradicionais.
Para que essa ideia de reparação se torne ação estatal, é necessário reposicionarmos o entendimento de que Cultura é desenvolvimento econômico, como tem sido na história das políticas culturais no Brasil, reduzindo o campo para uma exploração financeira das artes, do turismo e da cultura popular. Precisamos caminhar em direção à compreensão de que as políticas de Cultura são, enquanto princípio, ferramentas para a garantia dos Direitos Humanos, promotoras de dignidade e o desenvolvimento social. O viés econômico da cultura passa, então, a ser o meio de promoção desses princípios, e não a sua finalidade.
Agregar, a esse conceito amplo de cultura, a noção de interseccionalidade, muito bem traduzida e sistematizada por Patrícia Hill Collins (2020), pode contribuir para adensar nosso entendimento sobre os efeitos das desigualdades vividas pelo povo brasileiro ao longo dos processos históricos, inclusive para melhor compreender e valorizar as formas e expressões que traduzem as diversas relações sociais (inclusive entre seres de diferentes ontologias) e que atravessam as linguagens e instrumentos de produção humana, muito além do universo de produção das artes.
Esse reposicionamento carrega consigo a possibilidade de articular o campo da cultura e outras políticas setoriais como Educação, Ciência e Tecnologia, Assistência e Desenvolvimento Social, Saúde, e todas aquelas que os gestores desejem articular, na medida em que a noção de cultura extrapola o conceito relacionado apenas às linguagens artísticas e performáticas. Trazer a cultura como base, e não como finalidade, permite que as políticas setoriais dialoguem com as diferentes formas de organização social, considerando que as diversidades culturais passam a ser chaves para elaboração, implementação e avaliação das políticas públicas.
Esse deslocamento de foco da cultura e da diversidade cultural possibilita recolocar também o lugar das políticas afirmativas e de promoção da equidade, que passariam a ter uma posição de transversalidade, para além das abordagens similares adotadas em alguns orçamentos públicos – o combate ao racismo, ao sexismo, ao machismo passa a ser tomado como princípio da gestão, não apenas como metas ou objetivos a serem alcançados. Esse movimento reverbera ainda para as políticas dirigidas aos povos e comunidades tradicionais (PCT) e aos povos indígenas: por esse entendimento, as políticas públicas precisam ser geridas ‘para’ e ‘com’ eles, com a perspectiva de preservar suas identidades, modos de vida e territórios ancestrais e políticos, garantindo, com isso, sua existência e seus direitos. A inserção dos PCTs no escopo de políticas públicas vem sendo a principal fonte de questionamento dos limites da burocracia estatal, na medida em que suas diversas formas de organização social e política impõem desafios à diversificação dos critérios, instrumentos e resultados da gestão pública e da própria legislação. A burocracia brasileira fica “em xeque” ao ser confrontada com uma sociedade onde as desigualdades e a racialidade cultural têm sido a chave para a distinção entre o certo e o errado, e demonstra que seu modelo atual apresenta dificuldades de promover diferentes resultados, a partir de diferentes premissas. É o próprio conceito de democracia, que alimenta a burocracia, que precisa ser ampliado.
É necessário repensar a cultura e reduzir a exploração financeira das artes, do turismo e da cultura popular
Nesse sentido, a ampliação e aprimoramento dos instrumentos de gestão pública, em uma nova gestão pautada pelos princípios de promoção das diversidades e combate às desigualdades, deve priorizar as formas de participação social nas políticas públicas. Instituições como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) teria, nesse cenário, de encabeçar a promoção das diversidades, dada sua descentralização no território, a estabilidade de instrumentos de preservação e salvaguarda de políticas de patrimônio e memória, para além do campo setorial da cultura. A Fundação Cultural Palmares, por sua vez, mesmo fragilizada, poderia emergir como instituição gestora de instrumentos de proteção e promoção de direitos relacionados aos territórios negros, compondo com outros órgãos do governo federal estratégias de preservação das identidades, tecnologias sociais e modos de produção coletivos, tradicionalmente conduzidos por comunidades negras.
Ambas, Iphan e Palmares, poderiam constituir-se em instituições catalisadoras dessa noção ampliada e integrada de cultura. Para tanto, o Sistema Nacional de Cultura consolidado, um Ministério da Cultura forte e articulado à Casa Civil, precisa dar o suporte para essa abordagem transversal das políticas culturais.
As experiências do Programa Cultura Viva e as iniciativas fomentadas pelos recursos facilitados pela Lei Aldir Blanc, Brasil afora, demonstraram a capacidade transformadora da descentralização das políticas públicas. Quanto mais próximo do local onde se vive e onde se dão as relações sociais, mais fortes são os resultados de conexão que a cultura pode promover. Se tivéssemos um sistema nacional de cultura consolidado financeiramente e estruturado nas “pontas”, teríamos condições de mensurar os resultados do incentivo dessas iniciativas e o impacto da chegada de recursos para o fortalecimento dos sentidos comunitários de cuidado.
“É preciso colocar a cultura para a cesta básica brasileira”. É preciso, mais do que nunca, ampliar essa afirmação de Gilberto Gil, trazendo a cultura como princípio de nossa existência, capaz de promover o respeito, a justiça e a equidade entre os povos.
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Desirée Ramos Tozi é historiadora, ekedi do Ilê Icimimó Aganju Didé, terreiro de candomblé tombado pelo IPHAN em Cachoeira, Recôncavo da Bahia, e doutora em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA