POR UM HIDROGÊNIO REALMENTE VERDE E SOCIALMENTE RESPONSÁVEL
Quão verde pode ser a produção de hidrogênio depende da eletricidade empregada e do restante do seu ciclo de vida, sendo fundamental dar centralidade à perspectiva das pessoas que habitam a área onde se pretende desenvolver esta energia
Délcio Rodrigues
Diretor Executivo do Instituto ClimaInfo
Lucas Cravo de Oliveira
Coordenador de Advocacy na esfera federal do Instituto ClimaInfo na área de Energia
A transição dos combustíveis fósseis para fontes renováveis de energia é necessária e urgente para que possamos limitar o aquecimento global a no máximo 2°C, de modo a evitar os piores cenários climáticos futuros. Hoje, temos tecnologias para a geração de eletricidade de baixíssima emissão de carbono, como a solar e a eólica, o que nos permite vislumbrar uma nova economia da produção baseada na eletrificação total de sistemas e processos. No entanto, restam atividades de difícil eletrificação, como o transporte rodoviário de cargas a longas distâncias, os transportes internacionais ou nacionais de longas distâncias marítimos e aéreos, a produção de aço e de cimento, entre outras.
O hidrogênio verde, ou H2V, é hoje a mais promissora alternativa para a descarbonização destas atividades. Este vetor energético é produzido em escala industrial a partir de combustíveis fósseis e não renováveis, como o gás natural fóssil, nada verde. Mas é possível produzi-lo por meio da eletrólise, o que permitiria “esverdear” sua produção, isto é, reduzir as emissões de carbono do processo praticamente a zero. Na eletrólise, uma corrente elétrica separa as moléculas da água (H20) em hidrogênio (H2) e oxigênio (O2). Se a eletricidade empregada na eletrólise vier de fontes renováveis de energia como a eólica e a solar, o hidrogênio produzido teria baixíssima emissão de carbono, seria o que chamamos de hidrogênio verde, o H2V.
Belo Monte é exemplo de que nem toda fonte de energia renovável é verdadeiramente sustentável – Foto – Tv Brasil
Por ser capaz de substituir os combustíveis fósseis na produção de calor, no acionamento de motores e turbinas, na substituição do carvão mineral na siderurgia, na produção de fertilizantes etc., o H2V pode contribuir em muito para a segurança energética global e para o combate à emergência climática no século 21. Suas vantagens potenciais sobre os combustíveis atualmente utilizados é evidente: ele pode praticamente zerar as elevadas emissões de carbono dos combustíveis fósseis, como gasolina e diesel, e tem vantagens ambientais também na substituição dos biocombustíveis. Estes, apesar de terem origem orgânica e não fossilizada, emitem carbono e outros poluentes à atmosfera, impactam a biodiversidade e muitas vezes levam ao desmatamento da vegetação nativa. Ou seja, em um cenário que envolve aquecimento global e crise energética, o uso do H2V pode ser uma saída promissora e menos impactante para a segurança energética global.
O quão verde pode ser um particular sistema de produção de hidrogênio depende da eletricidade empregada e, também, do restante do seu ciclo de vida, sendo necessário contabilizar o carbono na mineração dos insumos utilizados, no transporte, emprego e descarte final. No caso do Brasil, é bem provável que a maior parte do H2V produzido no futuro, tanto para consumo interno quanto para exportação, seja oriundo de fontes eólica e solar de energia, mas ainda é necessário desenvolver tecnologias para sua produção em larga escala, tecnologias de uso e infraestrutura de distribuição.
Faz-se necessário, sobretudo, que o país esteja atento à necessidade de seguir legislações e protocolos nacionais e internacionais de proteção aos eventuais grupos sociais afetados pelos projetos eólicos e solares. Afinal, qualquer empreendimento público ou privado que envolva geração de energia pode impactar comunidades e pessoas que habitam em áreas de interesse e/ou próximas a fazendas solares e parques eólicos, e carecemos de regulação capaz de impor boas práticas sociais às empresas produtoras de energia, que vêm colecionando desrespeitos aos direitos das comunidades afetadas pelos seus projetos.
Se a justiça climática envolve necessariamente os territórios de povos indígenas quilombolas, e outros povos tradicionais, a transição energética deve ser pensada a partir da necessidade do consentimento das pessoas que podem ser atingidas pelos empreendimentos. Afinal, possuir em sua análise de ciclo de vida (ACV) uma baixa emissão de poluentes não é suficiente para garantir a inexistência de impactos socioambientais na produção do H2V.
Vale ressaltar que a Resolução 76/300 de 2022 da Assembleia-Geral das Nações Unidas reconheceu os efeitos das mudanças climáticas e da crise energética enquanto implicações para o gozo efetivo dos direitos humanos. Afirmou, principalmente, que as violações incidem mais em segmentos da população que já se encontram em situação de vulnerabilidade, como os povos indígenas.
Além disso, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é direito dos povos indígenas, dos povos quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais, a consulta livre, prévia, informada e consentida a partir de protocolos adequados antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos.
Também no âmbito internacional do qual o Brasil faz parte, destaca-se a Recomendação Geral 39 (GR 39) da Convenção CEDAW da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Acordo de Escazú. A primeira traz a importância de que mulheres e meninas indígenas tenham participação significativa nos processos de consulta prévia e fonte de informação para a definição de instrumentos hábeis ao exercício da autonomia perante as decisões que afetam suas vidas. Já o supramencionado acordo que está em vias de ser ratificado pelo Brasil, se apresenta como o primeiro tratado da região sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais da América Latina e Caribe. Todos esses dispositivos têm como horizonte garantir mais transparência sobre informações ambientais, acesso a mecanismos de justiça e efetiva participação social: elementos que são deixados de lado ou manipulados pelas empresas em muitas situações nas últimas décadas.
Nacionalmente, destaca-se a Resolução nº 5, de 12 de março de 2020 que, alinhada com os padrões inter-americanos, dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para uma Política Pública sobre Direitos Humanos e Empresas. Afinal há uma clara assimetria de poder econômico entre as corporações, sejam públicas ou privadas, e pessoas atingidas, sendo estas o elo mais frágil e, portanto, demandante de proteção jurídica.
Planta piloto de produção e aplicabilidade de hidrogênio verde foi inaugurada na Coppe/UFRJF em 2023 – © Tânia Rêgo/Agência Brasil
A necessidade de consentimento dos povos indígenas, quilombolas ou povos e comunidades tradicionais, deve ser assumida como base para qualquer proposta de transição energética no Brasil. Principalmente, porque a relação entre as crises energéticas e os direitos humanos nos revela que as mudanças climáticas põem em risco a habitabilidade e a existência territorial de toda a sociedade, mas de modo mais incisivo estes povos e comunidades, que têm seus direitos, territórios tradicionais e fontes de subsistência profundamente ameaçados.
Baixa emissão de poluentes não é suficiente para garantir a inexistência de impactos socioambientais
Do mesmo modo, é importante observar que muitas vezes a proposta de construção dos equipamentos de energia renovável é feita para as regiões norte e nordeste com o intuito de abastecer outras regiões do país, como a região sudeste; ou mesmo como um novo ciclo de commodities de exportação para meramente abastecer necessidades do mercado internacional, como o da União Europeia e do Reino Unido. É urgente portanto dar centralidade à perspectiva das pessoas que habitam a área onde se pretende desenvolver os empreendimentos.
Além disso, deve-se considerar que a tecnologia utilizada hoje em dia exige abundância hídrica para realização da eletrólise de materiais como cobre, platina, ouro e níquel, o que envolve atividade minerária. E, também, não se pode ignorar a característica altamente inflamável do Hidrogênio que coloca desafios técnicos para seu armazenamento e transporte; na implantação de usinas solares e eólicas necessárias para a instalação das centrais de produção de H2V.
O desafio, portanto, é estimular a oferta de H2V levando em consideração a análise de todo o seu ciclo de vida e, principalmente, que os caminhos para descarbonizar a energia e a economia estejam alinhados ao consentimento e propostas dos povos originários e demais comunidades tradicionais, responsáveis pelo cuidado da natureza e dos bens naturais há séculos em nosso território. A transição energética deve ser feita com respeito aos direitos humanos, culturais, territoriais e à autodeterminação dos povos.