POR UMA JUVENTUDE CLIMÁTICA À BRASILEIRA
A construção da luta climática no Brasil precisa ter um caráter diferente da europeia e se dar a partir de pautas críticas para a sobrevivência dos setores mais vulnerabilizados da nossa sociedade.
Júlia Hara Medeiros: jovem militante ecossocialista, atuante na luta por justiça climática e social desde 2019 através do Jovens pelo Clima de São Paulo e outros espaços de juventude e socioambientais.
Rafaela Martins: indígena do povo Guarani Mbya, articuladora e apoiadora de saúde indígena, estudante de Gestão Hospitalar e uma das referência da juventude indigena do Jaraguá, em São Paulo.
Jahzara Ona: Estudante de Geociências na Universidade de São Paulo, técnica em meio ambiente, formada em escola pública periférica. Tem 19 anos e integra o Jovens pelo Clima.
Grazielle Garcia: Ativista sócio-ambiental e comunicadora social. Foi co-fundadora do Jornal O Clima e da Agência experimental estudantil Comunica XP, é cofundadora do Jovens pelo Clima.
Faz pouco tempo que existe no Brasil, e mesmo no mundo, um movimento que se autointitula como “juventude climática”. No entanto, a urgência do tema das mudanças climáticas, e o notável protagonismo jovem nesta pauta, fez com que esse pequeno e jovem movimento ganhasse holofote nos últimos anos.
A juventude brasileira está posicionada de maneira singular para liderar o debate climático, com sua composição plural, tradições de luta diversas, e fincada em um território de enorme biodiversidade em agudo perigo. Mas para isso, precisamos enfrentar nossas contradições.
O movimento organizado de jovens para combater as mudanças climáticas tomou proporções globais a partir do protesto solitário da jovem sueca Greta Thunberg em agosto de 2018, que aos 15 anos entrou em greve escolar toda sexta-feira para pressionar políticos a agirem de forma incisiva sobre a emergência climática. Greta inspirou milhares de jovens estudantes ao redor do mundo a fazer o mesmo, numa proliferação surpreendente.
Em março de 2019, mais de 1.4 milhões de jovens em 128 países entraram em greves escolares numa sexta-feira, em nome do clima. Em setembro do mesmo ano, a chamada Greve Global pelo Clima foi provavelmente o maior ato climático que já tivemos no Brasil, impulsionada por toda a destruição que o primeiro ano de governo Bolsonaro infligiu à natureza. Coletivos focados na luta climática se multiplicaram, com o protagonismo de uma juventude mais elitizada que não costumava estar nas ruas.
Essa movimentação orgânica e global, a partir do exemplo de Greta, aponta com nitidez uma juventude ciente da urgência de se pautarem as mudanças climáticas no debate público, carente de um espaço onde se visse representada e que pudesse transformar sua ansiedade climática em ação concreta.
No entanto, existe uma conhecida dificuldade da juventude climática em traduzir sua luta para o contexto do território – um desafio que não pode ser desconectado do surgimento do movimento no Brasil, importado da Europa, a partir de um acúmulo e método europeu. Aqui, termos como “pegada de carbono”, “mitigação e adaptação” e mesmo “justiça climática” não ressoam com uma população que luta todos os dias para sobreviver sob camadas de opressão inimagináveis pelo cidadão médio na Europa. A luta climática no Brasil se traduz na luta diária dos povos indígenas, dos atingidos por barragens, dos camponeses, na falta de água e transporte público em grandes centros urbanos, nas enchentes que matam e desabrigam centenas em periferias todos os anos. A construção da luta climática no Brasil precisa, necessariamente, ter um caráter diferente da europeia e se dar a partir de pautas críticas para a sobrevivência dos setores mais vulnerabilizados da sociedade.
Este diagnóstico já tem sido feito por muitos coletivos, militantes e pesquisadores da área, que lidam diariamente com as contradições inerentes a se falar de clima. Há, no entanto, uma tendência positiva de descentralização do debate, que vem extrapolando ambientes acadêmicos e pouco representativos, e sendo cada vez mais apropriado por movimentos históricos e enraizados.
Exemplos disso foram o decreto de emergência climática feito no Acampamento Terra Livre de abril de 2023, a partir da perspectiva dos povos indígenas; e a centralidade da pauta climática na Marcha das Margaridas em agosto de 2023, protagonizada pelas trabalhadoras rurais.
Também têm se fortalecido os coletivos de jovens que buscam aprofundar a pauta climática nos seus territórios, como a Rede Jandyras, que surgiu como proposta de fortalecer a participação de mulheres amazônidas na região de Belém do Pará na agenda climática, a rede JACA no Rio de Janeiro, que reúne jovens do estado para incidir na política climática, incluindo aqueles atingidos por projetos destruidores de mineração, e a Perifa Sustentável, projeto de educação ambiental nascido nas periferias de São Paulo.
Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 (COP28), em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos – Midia Ninja/Flickr
Apesar desses avanços e do consenso de que é fundamental democratizar e aterrissar cada vez mais a pauta climática nos territórios brasileiros, na prática, ainda há muito a caminhar na construção política coletiva do dia a dia. Nos falta uma rede que conecte todos esses movimentos e coletivos, capaz de formular e incidir na política de forma conjunta. A juventude climática hoje ainda é um movimento hegemonicamente branco e elitizado, agindo de forma isolada dos outros movimentos sociais. Precisamos ampliar esse perfil social para um movimento com maioria negra e indígena, pois são justamente esses setores que são mais diretamente afetados pelas mudanças climáticas. Afinal, não há distribuição democrática dos impactos do clima: eles recaem desproporcionalmente sobre essas populações que historicamente foram vulnerabilizadas pelo sistema. Por isso, é urgente que essas juventudes estejam mobilizadas, engajadas e atuantes nos espaços que construímos.
A territorialização do debate do clima torna as pautas mais concretas. Criar sínteses coletivas elaboradas e adequadas para realidade brasileira a partir dos sujeitos que mais sofrem com suas consequências, aumenta a legitimidade e capacidade de ação do movimento climático.
Outra consequência da importação da Europa é o método com foco na ocupação e disputa de espaços institucionais, tanto internacionalmente quanto a nível nacional: presença em COPs (Conferências das Partes sobre Mudanças no Clima) e outros espaços do Sistema das Nações Unidas articulações pela criação e participação em conselhos ligados ao poder público, criação de plataformas climáticas em eleições e cobranças de lideranças políticas, etc. Sem dúvida, estes são espaços e mobilizações importantes, tanto para trazer visibilidade à causa, quanto para conquistar melhorias concretas e imediatas na vida da população. A grande falha desse método, no entanto, é sua miopia: mobilizações em torno de políticas internacionais e públicas são insuficientes e ineficazes sem um combate organizado à estrutura econômica que hoje dita o desenvolvimento da nossa sociedade.
As limitações da via institucional são nítidas. Na COP, considerada o principal evento anual onde autoridades se reúnem para firmar compromissos de combate às mudanças climáticas, a juventude (e demais representantes da sociedade civil) é impedida de sentar à mesa de negociação de onde todo ano saem acordos insuficientes para controlar o tamanho da catástrofe climática, firmados entre representantes de Estados e grandes empresas. No Brasil, a Cúpula da Amazônia que reuniu em Belém representantes de 15 países para debater desmatamento ilegal, combate ao crime organizado e financiamento externo para o desenvolvimento sustentável local, foi antecedida por um evento da sociedade civil que debateu estes mesmos temas, mas não viu suas recomendações e demandas incorporadas na genérica e frustrante declaração final da Cúpula. Nosso papel nesses espaços, em geral, é simplesmente dar um verniz de legitimidade para políticas muito pouco representativas das demandas da juventude.
Não é destes espaços, dentro do sistema que dita as regras do jogo hoje, que vão sair políticas capazes de lidar com o tamanho do desafio que temos. Seja a nível subnacional ou internacional, estas instâncias estão impregnadas por representantes da classe dominante, cujos interesses vão diretamente contra o tipo de transformação estrutural que é necessária para enfrentar as mudanças climáticas e garantir vida digna à população. Mesmo quando é possível ter avanços concretos de direitos, estes são conquistas facilmente reversíveis em uma correlação de forças desfavorável, como vimos tantas vezes no governo Bolsonaro. E sabemos que não há tempo para pequenas e lentas mudanças na linha do tempo da destruição da vida na Terra. É tudo para ontem.
Mais de 8 mil indígenas, de 200 povos do Brasil, participaram da 18ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), em 2022 – Midia Ninja/Flickr
Isso quer dizer que, além de avançar no enraizamento territorial e na expansão do perfil da militância, é preciso denunciar a incapacidade do capitalismo de superar sua contradição com a natureza, apontar a necessidade de ruptura com o atual modelo de acumulação, exploração e desenvolvimento, e ampliar espaços de elaboração coletiva das bases da sociedade, conectando-os cada vez mais através de uma rede de movimentos agindo de forma unitária.
O desafio que está colocado para a juventude é dar nome ao “sistema” no slogan “Mudar o Sistema, Não o Clima”. É avançar numa análise do sistema capitalista para entender como ele consegue de fato ser superado, e o que deve surgir no seu lugar. Para isso, o engajamento da esquerda radical e ecossocialista nessa luta também é fundamental.
Em resumo, a mobilização da juventude climática tem sido fundamental para trazer visibilidade para o maior desafio da nossa geração: garantir um planeta habitável com condições de vida dignas para todas as espécies vivas. Para avançar nessa missão, temos a tarefa de aterrissar ainda mais a luta climática na realidade brasileira, colocando os mais afetados no centro da construção de alternativas, expandir sua rede de ação coordenada, e avançar na sua práxis anticapitalista.
A certeza de que as mudanças climáticas estarão cada vez mais em pauta, e com efeitos mais catastróficos, torna nossa ação exponencialmente mais urgente. O papel da juventude como motor do debate climático tem sido e vai continuar sendo central para denunciar os verdadeiros culpados, dar voz à geração que mais vai sofrer as consequências e lutar pelo nosso futuro.