Luis Leiria
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) de Portugal é uma conquista da Revolução do 25 de abril de 1974, conhecida no mundo como Revolução dos Cravos, que derrubou uma ditadura de 48 anos. Até ao ano de 1979, quando o SNS foi criado, não havia no país uma saúde pública e universal. Hoje, o SNS é um orgulho nacional, pela qualidade e pelos benefícios reais que trouxe a toda população. Dois exemplos: em 1974, morriam em Portugal 37,9 crianças com menos de um ano de idade por 1.000 nascimentos; em 2019, esse número havia caído para 2,8. Em 1974, a esperança de vida à nascença no país era de 68,2 anos; em 2018 já tinha subido para 80,9 anos.
Nestes seus 40 anos de vida, o SNS sofreu com a onda do neoliberalismo que atingiu o mundo e também Portugal. Foi enfraquecido por reduções de orçamentos, pela abertura de portas aos interesses e negócios privados, pela imposição de gestões privadas em alguns hospitais públicos. Mas, apesar desses recuos, ainda esteve à altura do surto da Covid-19 no país e, com o esforço e a dedicação dos profissionais, demonstrou eficácia superior à de outros países europeus com orçamentos de saúde mais avultados.
Portugal na pandemia
Portugal apresentava, no dia 14 de junho, 36.690 casos confirmados de Covid-19, com 3.519 mortes. No ranking europeu, são 149 óbitos por milhão de habitantes, o que o coloca atrás de (e, portanto, melhor que) Bélgica, Reino Unido, Itália, Suécia, França, Holanda, Irlanda, Suíça e Luxemburgo, citando apenas os países europeus.
O governo do Partido Socialista beneficiou-se de um certo atraso que a pandemia teve ao chegar ao país e preparou-se para o que estava para vir. Assim, no dia 2 de março, quando foi anunciada a primeira infeção por Covid-19 em território luso (dois casos), a Itália, por exemplo, já contava 2.036 casos e 52 mortes.
Apesar de tudo, o governo hesitou quanto ao encerramento das aulas, que só foi decretado no dia 12 de março, quando já havia uma enorme pressão dos pais, que se recusaram a levar os filhos às escolas. A primeira morte em Portugal ocorreu no dia 16 e no dia 18 foram anunciadas as medidas de confinamento, encerramento de todo o comércio, exceto o de bens essenciais, o fecho de teatros e cinemas, adoção do teletrabalho dos funcionários públicos e de todas as empresas e serviços em que fosse possível. Os infetados pela pandemia que não estivessem internados eram forçados a ficar em casa, e foi recomendado que todos os cidadãos não se afastassem do bairro de residência e só saíssem por motivos indispensáveis, como ir à farmácia ou comprar comida.
O governo instituiu uma série de medidas de apoio social: por exemplo, aos pais que tivessem de faltar ao emprego para cuidar dos filhos e aos trabalhadores independentes ou precários que se viram sem rendimentos. Um sistema de layoff foi facultado às empresas forçadas a suspender as atividades. Por esse sistema, em troca de manterem os postos de trabalho, pagam apenas um terço do salário dos trabalhadores, ficando o Estado com o encargo de desembolsar outro terço. O trabalhador perde o restante. No início, não havia medidas dirigidas aos setores mais precarizados, mas acabaram por ser aprovadas, devido à pressão da esquerda.
As medidas de confinamento mereceram uma aceitação geral por parte da população, a que não foi estranha, também, uma grande unidade de todos os partidos com representação parlamentar em torno da única medida disponível para conter o surto da doença e impedir o colapso dos serviços de saúde. Na verdade, quando houve reação, foi para acentuar as medidas de confinamento. A Auto Europa, a maior fábrica do país, não tinha intenção de fechar; mas os trabalhadores faltaram em massa, paralisaram as linhas de montagem e forçaram a empresa a negociar a suspensão das atividades. Nos call centers foram ameaças de greve que obrigaram muitas empresas a ceder e mandar para casa os funcionários que exigiam teletrabalho.
Acertos e erros
O respeito da população ao confinamento e a antecipação com que foram adotadas as medidas permitiu que o resultado de controle da pandemia fosse melhor que o de muitos dos principais países europeus, embora pior do que países como a Grécia, um dos maiores casos de sucesso na Europa. Os principais erros foram não dar a prioridade necessária e óbvia aos lares de idosos onde ocorreu mais de um terço das mortes; a oferta insuficiente de transporte público, que levou muita gente forçada ao trabalho presencial a viajar em trens ou ônibus cheios, onde o distanciamento era impossível; e o confinamento não ter sido estendido a muitas fábricas cuja produção não era essencial.
A crise sanitária abriu caminho a uma profunda crise econômica, com graves consequências sociais. Trouxe à tona a crise estrutural do capitalismo e as profundas desigualdades que marcam a sociedade portuguesa. Seus fundamentos estão na fragilidade de uma economia excessivamente dependente do exterior e movida pelo trabalho precário e mal pago. Apesar das medidas sociais, o governo recusou-se a proibir as demissões, medida decretada em outros países. No curto prazo, a crise reduziu em mais de 8% o total das rendas do trabalho, antecipando uma recessão pesada com previsões de mais de 10% de taxa de desemprego já no fim do ano. Em apenas três meses, a pobreza mostrou a sua face em plena capital do país.
Quem governa Portugal já não é a “geringonça”
O governo de Antônio Costa aumentou a popularidade durante a crise da pandemia. Mas, ainda antes de terminada essa fase, estourou um escândalo envolvendo novas revelações sobre a negociação de venda de um banco privado, o Novo Banco, oriundo da falência do centenário Banco Espírito Santo, a um fundo abutre estadunidense, o Lone Star. O acordo de venda, negociado já pelo governo de Costa em 2017, mantido secreto, foi agora tornado público devido à insistência de partidos como o Bloco de Esquerda (PCP e Bloco votaram contra esse acordo). Dessa forma, os portugueses ficaram sabendo que o governo está mesmo obrigado a investir no banco quase 4 bilhões de euros e, mais incrível ainda, que o Estado terá de dar ao banco mais verbas a título de compensação pelos supostos problemas causados pela pandemia.
Justamente quando é mais necessário reforçar o Serviço Nacional de Saúde e combater a crise econômica, o governo já jogou e pode vir a jogar novamente nas mãos dos especuladores verbas preciosas.
Perguntará o leitor: mas afinal que governo é esse? Portugal não era governado por uma coligação de esquerda que conseguiu reverter o ciclo de austeridade do governo anterior, da direita? De onde vem então esse serviço prestado a mais aberta especulação financeira?
Quem não acompanha de perto o cenário político luso tem facilmente a ideia de que como o primeiro ministro é o mesmo, Antônio Costa, do Partido Socialista, o governo saído das eleições de 4 de outubro de 2015 e o que resultou das eleições seguintes, de 6 de outubro de 2019 são a mesma coisa. Mas não são. O primeiro ficou conhecido como o governo da “geringonça”, o segundo marcou, justamente, o fim da “geringonça” e deixou de ser condicionado pelos partidos a sua esquerda.
O que foi a geringonça
Segundo o dicionário, uma geringonça é uma “coisa malfeita ou construção com pouca solidez.” São sinônimos de geringonça: engenhoca, caranguejo lá. O apelido do governo nascido das eleições de 2015 foi inventado por um dos líderes da direita, prevendo que a sua “pouca solidez” seria a curto prazo comprovada. A esquerda gostou do epíteto, e resolveu adotá-lo, e tornou-se um hábito falar do governo da geringonça. A “pouca solidez” não se confirmou.
A “geringonça”, na verdade, teve um sucesso razoável: por um lado, conseguiu evitar que os partidos da direita, o PSD e o CDS, se mantivessem no governo e prosseguissem o caminho do empobrecimento do país e do corte de salários e aposentadorias. Por outro lado, pôs fim a esse ciclo de pobreza, repondo o que fora retirado a trabalhadores e aposentados, abolindo os impostos extraordinários e repondo até os feriados que tinham sido abolidos. A retomada do crescimento econômico e a redução do desemprego, apesar do aumento do trabalho precário, deram um novo ânimo e uma outra respiração ao país.
Mas então por que esse nome de “geringonça”? Porque o governo se baseou num tipo de acordo nunca feito antes. Ao contrário do que muitos pensam, o governo da “geringonça” não foi uma coligação entre o PS, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português. Nem Bloco, nem PCP tinham ministros no governo. O que houve, sim, foram acordos entre o PS, por um lado, e o PCP, o PEV (Partido Ecologista Os Verdes, um satélite do PCP) e o Bloco de Esquerda, que deram as bases de sustentação parlamentar ao primeiro-ministro António Costa, garantindo a aprovação do primeiro orçamento de Estado e abrindo o caminho para a aprovação dos seguintes.
“O Bloco de Esquerda não pode integrar governos que subscrevem” compromissos com que o Bloco não concorda, em que “o povo não foi ouvido” e que “não permitem romper totalmente com a austeridade”, esclareceu a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, à época, referindo-se ao Tratado Orçamental da União Europeia, que força os países a ter déficits inferiores a 3%, e à negativa do PS de reestruturar a dívida pública do país.
Em muitas oportunidades, os partidos da geringonça votaram contraditoriamente. Nas questões europeias, nas questões referentes ao sistema financeiro e especificamente no exemplo citado no início deste artigo, o da venda do Novo Banco Bloco e PCP votaram contra o PS, que se assegurou do apoio da direita para prevalecer. O mesmo nas leis trabalhistas, para dar outro exemplo relevante.
Mesmo dessa forma “especial”, foi a primeira vez que o Partido Socialista um partido ligado à social-democracia europeia fez um acordo de governo com os partidos à sua esquerda. Isso não se explica por posições “mais à esquerda” do líder do PS, que em congressos anteriores do partido se destacara pelos ataques desferidos ao Bloco de Esquerda, mas pelo pragmatismo: era a única possibilidade de o PS governar. A matemática eleitoral a isso obrigava: para ter votações majoritárias, o PS tinha de contar com os votos do PCP e do Bloco de Esquerda. Se um falhasse, era o suficiente para perder a maioria. Essa matemática se explica pelo maior peso que os partidos à esquerda do PS tiveram no resultado eleitoral, somando quase 20% o PCP subiu de 7,9% (em 2011) para 8,2%, e particularmente o Bloco de Esquerda, que quase duplicou a votação, passando de 5,1% para 10,1%.
O fim da “geringonça”
Como dissemos acima, Antônio Costa fez os acordos da “geringonça” por ser essa a única forma de chegar a primeiro- -ministro. Mas nunca se sentiu confortável com as concessões que foi fazendo à sua esquerda. Na parte final do mandato, só pensava em obter maioria absoluta para governar com maioria parlamentar, sem depender do voto de qualquer outro partido. Acontece que essa maioria, no sistema político português, é difícil de ser obtida por um só partido. E há uma má recordação da última maioria absoluta de um só partido, a do PS de José Sócrates (2005-2009).
A obsessão da maioria absoluta levou Antônio Costa a momentos de desorientação, como foi o caso da Lei de Bases da Saúde. O Bloco de Esquerda apresentara uma proposta elaborada pelo criador do SNS, o já citado Antônio Arnaut, e pelo médico João Semedo, ex-coordenador do Bloco. O PS, ignorando a iniciativa do seu militante histórico, avançou com uma lei própria e foi negociá-la com a direita. Esse processo durou meses, até que o PS desistiu e regressou às negociações com a esquerda, ainda a tempo de aprovar uma lei que reforçou o SNS num momento que se revelaria decisivo.
O mesmo final feliz não ocorreu, porém, com as alterações ao Código do Trabalho, votadas pelo PS junto com o PSD e contrariando sempre os interesses dos trabalhadores. O Bloco também criticou a “obsessão do déficit” do Ministério das Finanças, que preferiu perseguir o déficit zero a fazer investimentos que o país precisava.
Nas eleições de outubro de 2019 o PS subiu, como se esperava, mas ficou a oito deputados da maioria absoluta (foi de 32,3% para 36,4%). A direita teve uma das maiores derrotas da história, o Bloco de Esquerda manteve os 19 deputados, descendo ligeiramente na votação (de 10,1% para 9,5%) e o PCP teve uma queda importante, perdendo 5 deputados (de 8,2% para 6,3%). Outros partidos entraram no Parlamento. Somando tudo, os partidos da “geringonça” tinham uma maioria mais folgada, sendo que, para fazer maioria, o PS precisaria apenas do apoio de PCP ou Bloco, não precisando mais da soma dos dois. Mas não era isso que Costa queria.
Iniciadas as negociações, verificou-se que o PCP não aceitava se comprometer com um novo acordo escrito, enquanto que o Bloco pretendia a renovação do acordo em novas bases. Não se tratava já, como ocorrera quatro anos antes, de impedir o governo da direita. Um novo acordo teria, portanto, de ter bases políticas mais ambiciosas. Ainda assim, a proposta do Bloco começava pela revogação de normas trabalhistas introduzidas pela direita no código do trabalho, contra as quais o PS, na altura, votar. Mas o PS pensava diferente e recusava-se a mexer nelas (por exemplo, a redução do valor das horas extras). Por isso, interrompeu e encerrou as negociações. Catarina Martins, a coordenadora do Bloco, anunciou então que o PS tinha posto “um ponto final à existência do modelo de acordo político que ficou conhecido como geringonça”.
Com mais margem de manobra que antes para negociar, Antônio Costa optou por manter um governo minoritário só do seu partido, sem qualquer acordo parlamentar de sustentação, tendo que negociar a maioria a cada votação parlamentar. Esse é o governo atual.
Sem os acordos que o vinculavam a compromissos firmados, com mais margem de manobra perante os partidos à sua esquerda, o Governo do Partido Socialista governa ao centro. Para cada política acertada, como foi em grande parte a do distanciamento social que impediu o morticínio ocorrido em outros países, há uma política de favorecimento à especulação financeira, imobiliária ou aos interesses do patronato em matéria de legislação trabalhista.